sexta-feira, dezembro 31, 2004

Fim de Ano

Nada mais incômodo que tentar escrever quando tudo está bem e o contentamento corre solto pela alma. A saciedade esteriliza, a felicidade é desinteressante. Ninguém tolera por muito tempo ler sobre cenários de alegria pura, ou satisfação permanente. Por alguma razão hermética, nossa atenção exige contrastes, acorrenta-se aos conflitos de desfecho incerto e às dores de redenção duvidosa. Criar alguma coisa na ausência desses elementos, quando não se é um autor versado e escolado nas tribulações da imaginação, é verdadeiro desafio, uma espécie de alpinismo mental. Se a montanha é o Pão de Açúcar ou o Everest, tanto faz: ambos são colossos para o amador que conta com pouco mais que a própria persistência.

Mas nada de desânimo. O ano prestes a se encerrar, é preciso que se escreva alguma coisa. Afinal, 2004 foi o primeiro ano deste blog, para não dizer o primeiro ano de uma série de outras coisas quase igualmente relevantes, tais como a labuta docente, um maior envolvimento com a espiritualidade, a pós-graduação, o esforço pelo mestrado e, é preciso reconhecer, a tal vida de solteiro de que tanto falam por aí. Cada uma dessas coisas renderia páginas e mais páginas de reflexões e ego trips que não cabem aqui. Este não pretende ser um blog biográfico, por mais que a tentação exista e certos posts sejam frutos diretos de uma ou outra experiência. O mundo já tem diários públicos demais e se algum dia um autor excêntrico quiser escrever sobre este que vos fala, terá que recorrer aos bons e velhos registros em papel. Eles ainda têm a virtude da permanência, coisa que este mar de megabytes dificilmente terá. Há também um quê de solidariedade corporativa aí: na remota possibilidade de algum colega historiador ou jornalista do futuro vir a se interessar por mim, por que lhe dificultar a vida com tecnologia digital ultrapassada?

Por efêmera que seja, essa tecnologia teve sua importância em 2004. Não apenas ela permitiu que este espaço existisse — embora deva agradecer a idéia ao meu prezado amigo Felipe Svaluto e seu combativo Warfare State — mas também proporcionou alguns reencontros inesperados, e não apenas para mim. Afinal, este foi o ano do Orkut e da idéia de que vale a pena usar a Internet para promover relacionamentos interpessoais. Idéia antiga, é verdade, até onde este adjetivo se aplica à Rede; mas provavelmente jamais fora testada com tamanha eficiência. É impressionante como algo que exige um tempo enorme de navegação, impõe limites severos à postagem de textos e dá defeito dia sim, dia não, tornou-se objeto de uma verdadeira febre entre os internautas brasileiros. Quando fui convidado para o Orkut, os perfis ainda eram escritos em inglês e os brasileiros eram aproximadamente 20% do total de usuários; agora, ele praticamente se tornou um clube tupiniquim, inundado por gente de todo tipo e pródigo de comunidades tão díspares quanto “Política e Governo”, “Filosofia” e “Isso Só Acontece Comigo”, “Chocólatras” e “Deixem as Formigas em Paz!”. Chegou-se mesmo a fazer da hegemonia brasileira um motivo de orgulho patriótico, nas primeiras reportagens feitas sobre o fenômeno, o que obviamente foi razão para criar mais dúzias de comunidades no próprio Orkut. Um bom tema de pesquisa para os futuros (?) estudiosos de História Digital ou para os antropólogos mais modernizados, sem sombra de dúvida. No que me toca diretamente, porém, além do entretenimento que proporcionou, o Orkut foi um meio interessante para reencontrar conhecidos que dava como perdidos, e fazer alguns mais. Embora jamais tenha chegado às centenas de contatos que tantos orkutianos ostentam, posso dizer que o site fez bem à minha sociabilidade digital. Ou talvez tenha simplesmente digitalizado um pouco mais a sociabilidade de um grande número de pessoas, ao mesmo tempo criando mais um nicho exclusivista. Afinal, se antes havia os internautas e os não-internautas, agora há também os internautas não presentes no Orkut... Para os que apreciam ver a proverbial metade vazia do copo, eis mais uma nobre causa para a lista de reivindicações de justiça digital: “Queremos uma conta no Orkut!” não daria um bom slogan em passeatas?

Mas estou digredindo. É o que dá tentar escrever sem inspiração ouvindo Strauss, algo da frivolidade dos salões vienenses acaba contaminando o resultado. Tudo bem, a espontaneidade é importante para meu futuro biógrafo e, pelo menos neste post, não me preocuparei muito com a profundidade de idéias, se é que a tive em algum outro. Acredito que há ocasiões em que é saudável, como num rodopio oitocentista ao som de Sangue Vienense, deixar-se levar pelos acordes da mente que tanto relutou a se pôr em ação. Estou certo de que os meus escassos e generosos leitores hão de compreender. Neste post derradeiro de 2004, não há muita substância além da pura vontade de continuar escrevendo. Quem nunca se aventurou a fazê-lo por simples prazer, a despeito da superficialidade momentânea das idéias, que atire o primeiro comentário.

Agora que Strauss cedeu lugar a Bach, lembrei-me de que a questão espiritual teve um papel importante neste ano. Não direi muito sobre isso, pois os mais próximos sabem do que se trata e os não tão próximos não estarão interessados. Mas vale registrar que o papel da confiança em algo transcendente — “fé” é um termo já viciado — no fortalecimento do caráter não pode ser subestimado. Que me perdoem os ateus militantes e suas aguçadas observações sobre a capacidade humana de auto-ilusão, mas em nenhuma outra época as visões materialistas me pareceram tão pobres e insatisfatórias quanto nesta. Há muito que me interesso pelas chamadas questões do espírito, seja pelo ângulo da crença propriamente dita ou pelo da comprovação empírica de seus efeitos e princípios, e é uma lástima que não tenha dedicado mais tempo ao seu estudo como gostaria. Enquanto tenho amigos mergulhando nos polissílabos da metafísica hindu ou nas sutilezas da Escolástica, o mais próximo que consegui chegar do assunto este ano foi compulsar um livro de ética 100% secular e outro sobre o mundo muçulmano de uma perspectiva puramente histórica. Demandas acadêmicas me forçaram a centrar o olhar no mundo sensível e imediato, no labirinto da política mundana e na teia complexíssima do mundo do último século, e a transcendência perdeu a primazia para o terreno. Afora livros já de muito lidos e estudados, apenas Hermann Hesse redimiu minha biblioteca de 2004 com um toque de Eternidade. Naturalmente, nem só de leituras se alimenta a espiritualidade de alguém, as experiências do dia-a-dia a alimentam continuamente, e disso não seria justo reclamar. Mas o estudo faz falta, e num campo tão vasto como esse, nenhuma leitura é demais. Infelizmente, a tendência é o agravamento desta situação espiritualmente insalubre durante o mestrado em História, e espero chegar a um maior equilíbrio no próximo ano. Dentre as resoluções de Ano Novo, esta será uma das primeiras da lista.

Pachelbel e seu “Cânon” me fazem lembrar de reencontros, do passado que invade o presente e volta a fazer parte da nossa vida. Em 2004, ele reapareceu de várias formas, em manhãs outonais rotineiras no trabalho, casamentos badalados, conversas de ICQ ou um simples email via Orkut. É agradável ser lembrado pela vida de que se tem uma trajetória e marcos de referência deixados pelo caminho, que por vezes reaparecem. Mais do que isso, ser lembrado também de que desempenhamos um papel similar para outras pessoas. Vê-las novamente, reconhecer velhos sorrisos, vozes e maneirismos, procurando as inevitáveis modificações impostas pelo tempo a elas e a nós, é uma revigorante jornada na memória. E por que não também no próprio conhecimento de si mesmo? Afinal, freqüentemente estão ali os antigos sentimentos se remexendo no íntimo — uma grande simpatia num caso, uma pequena rivalidade adolescente em outro, para citar apenas alguns —, a velha persona querendo emergir. Reencontrar velhos conhecidos é, portanto, reencontrar primeiro a si próprio, e permite reavaliar até que ponto realmente mudamos, se é que houve mudança. É uma oportunidade singular de reflexão e, claro, de retomada ou aprofundamento de amizades. Uma dádiva.

Agora que a música acabou, e os fogos pipocam aqui e ali, é hora de deixar este post e começar a me preparar para a despedida de daqui a poucas horas. Alguém já disse que o Ano Novo é o aniversário de todos os homens. De certa forma, isso o torna superior a todas as outras comemorações em intensidade e partilha. Que saibamos aproveitar a festa e entrar bem em 2005.

Boas Entradas a todos!

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Ilusão

Maya. É o nome dela. A maior, talvez a única, inimiga da humanidade. Guerras, pestes, fomes e ódios jazem em sua mão esquerda; prazeres, contentamentos, paixões e ambições agitam-se em sua mão direita. Nenhum poder se compara ao seu; nenhum cai tão depressa, ao colidir com uma alma forte.

Pois Maya nada mais é que a ilusão. Por causa dela sofremos; por causa dela fazemos sofrer aos outros; por causa dela nos desviamos a todo momento da senda da verdade, fascinados por brinquedos efêmeros e tentações pueris que nada significam em nossa eternidade. Sim, porque esse é o preço do jogo de Maya: uma infinitude que se desperdiça em não olhar para si mesma.

Os orientais de há muito nos alertam para essa fera gentil, esse demônio suave que nos sussurra belas palavras e nos mata com suas carícias. Os hindus o personificaram em célebre duelo com Buda. Os seguidores do vitorioso Gautama tentam repeti-lo até hoje, sem o mesmo sucesso.

E por que olhar para essa fábula, essa farsa mitológica de uma cultura distante? Porque nada é mais verdadeiro do que a lição nela encerrada. O poderosíssimo Maya, de abraços cálidos e rugido titânico, é mais do que uma figura de lenda, uma deidade das inúmeras que abundam mundo afora, e sobretudo pela terra dos Vedas. Não. Maya é a mais real das forças cósmicas, a mais palpável e também a mais invisível, oculto em sua onipresença. Como o oceano não é percebido pelos peixes até que sejam retirados da água, assim também não enxergamos esse poder de névoa que nos traga. Maya está em toda parte e em lugar algum.

Não é assim com todos nós? Quantas vezes não nos pegamos esquematizando a realidade, generalizando o mundo, encaixando o infindável torvelinho da vida em sisteminhas próprios disfarçados de verdade? Quantas vezes nossas certezas não são desmascaradas pelos acontecimentos, e percebemos, em retrospecto, a leviandade com que nos deixamos acreditar nisso ou naquilo? Quem nunca se percebeu optando por uma tese, um credo, uma impressão menos por ela mesma do que por uma preferência irracional e quase irresistível, tanto mais forte quanto menos refletida? E, no entanto, em tantos momentos, é ela que ditará nossas ações, nossa visão de mundo, nossos valores.

Há poucos séculos, embriagados por uma nova visão luminosa, algumas das grandes mentes ocidentais creram que a Razão seria o guia messiânico da humanidade. Como um novo Moisés, essa Força Titânica nos libertaria do Egito das paixões desenfreadas, das tradições incontestes, dos abortos do caráter. A fé racional elevaria este horda de desorientados perdidos entre tristezas e violências até a sociedade perfeita, de cujos chafarizes poligonais manariam o leite e o mel para os intelectos famintos e os caracteres mal cultivados. “O mal nasce da ignorância”, decretavam os sábios, prontos para ganhar o mundo para as futuras gerações.

Fracassaram inapelavelmente. O mundo avançou, e a humanidade continuou exercendo sua maldade, agora por meios novos. Os próceres da Razão, em seu entusiasmo, não perceberam que a ignorância a que juraram combater, o vazio interno do qual brotavam a selvageria e o egoísmo, não era de números e teoremas, poemas e gramáticas. Suas raízes eram mais profundas. Não podiam ser arrancadas apenas com raciocínios...

Maya, essa ausência presente, não se funda na racionalidade, e não se curva a ela. A razão é mero instrumento, geralmente brandido às cegas no nevoeiro da ilusão. Sozinha, pode bem pouco, solitário machado a lutar com troncos espessos em uma floresta. Pois Maya se entranha no próprio ser do indivíduo, nas suas sensações, nos seus impulsos, nas suas necessidades imediatas, no que prende a atenção no exterior, no superficial, no que satisfaz, para que não se vá adiante. Áreas, portanto, estranhas à linearidade da razão cotidiana.

Que fazer então? Como vencer essa teia, romper a neblina de impermanências que recobrem o mundo? Talvez ousando na escuridão, no abismo onde a ilusão se aloja e reina. Plantar em seu campo até então largado à intempérie da inconsciência, alimentar seus canais com outras águas, rasgar suas brumas com a luz da consciência possível. Aí, sim, jogando suas próprias forças a nosso favor, é que poderemos derrotar Maya, não destruindo-a, mas aquietando-a o bastante para que possamos abrir os olhos e ver... não o que vemos, não o que percebemos, mas o que é.

3 de março de 2004

domingo, dezembro 26, 2004

Desejo

"Cada desejo enriqueceu-me mais do que a posse sempre falsa do objeto do meu desejo. "

André Gide


Viver o desejo sem consumir-se pela sua satisfação, mas também sem desprezá-lo. Permitir-se fincar o pé no presente sem antecipar demasiado o futuro, e deixar-se surpreender pelo próximo minuto, tal como ele é, sem um imaginário “como deveria ser” com o qual ele possa se chocar. Apagar por um pouco toda expectativa, e volver para elas olhos mais livres e penetrantes, não mais embaraçados pelas lentes parciais do desejo. Sentir o apelo delas, mas de fora, ao longe, sem que suas garras toquem o coração. Desprender-se de si mesmo para contemplar o espetáculo caótico de sentimentos, esperanças, esforços e princípios, sem tolher-se pelos “dever” ou pelo querer. Provar com certa alegria o sabor amargo da frustração, quando ela vem, e as dores de crescimento que ela impõe. Gozar com gratidão o prazer disponível, sabendo-o fugaz. Discernir a melancolia das horas alegres, e o consolo oculto nas tristes. E abandonar-se por um pouco à corrente dos acontecimentos, ora gentis, ora cruéis, mas sempre conosco. E jamais esquecer que a vida é um moinho a girar de acordo com nossas ações, e só a negligência enfermiça poderia reduzi-la a uma “ventura” entediada ou uma “tristeza” que não se vai.


Enquanto houver desejo, haverá vontade. Esta é a própria vida.

terça-feira, dezembro 14, 2004

Desejo e percepção

“Impuro e desfigurante é o olhar do desejo. Só quando nada cobiçamos, só quando nosso olhar se torna pura contemplação, é que se abre a alma das coisas, a beleza. Quando observo um bosque que eu quero comprar, arrendar, desmatar, hipotecar, e onde quero caçar, então não vejo o bosque, mas apenas os aspectos que correspondem ao meu querer, meus planos e preocupações, à minha bolsa. Então, ele é constituído de madeira, é novo ou velho, sadio ou doente. Se nada quero dele, porém, olho-o apenas ‘despreocupado’ em sua profundeza verde; só então ele é bosque, é natureza e vegetação; só então é belo.

O mesmo acontece com os seres humanos e seus rostos. Aquele a quem olho com medo, esperança, cobiça, intenções, exigências, não é um ser humano, mas apenas o reflexo turvo de meu desejo. Olho-o, de modo consciente ou inconsciente, com perguntas nitidamente restritivas e adulteradoras. É acessível ou orgulhoso? Presta-me atenção? Posso pedir-lhe um empréstimo? Entenderá algo de arte? Com milhares dessas perguntas observamos a maioria das pessoas com as quais temos alguma coisa a ver, e passamos por conhecedores da humanidade e psicólogos quando conseguimos pressentir em sua aparência, aspecto e comportamento aquilo que serve ao nosso propósito ou a ele se opõe. Mas essa atitude é bem pobre e, nessa espécie de psicologia, o camponês, o vendedor ambulante, o advogado sem causas são superiores à maioria dos políticos e ou dos eruditos.

No momento em que o querer se cala e a contemplação surge, a visão torna-se pura e o ser se abandona, tudo se transforma. A pessoa deixa de ser útil ou perigosa, interessante ou aborrecida, gentil ou grosseira, forte ou fraca. Torna-se natureza, torna-se bela e digna de atenção, como qualquer coisa para a qual a contemplação pura se dirige. Pois a contemplação não é exploração ou crítica — é apenas amor. É o estado mais elevado e desejável da nossa alma: amor gratuito.”

Hermann Hesse, Minha Fé.

quarta-feira, dezembro 08, 2004

Moralidade e cultura

“O relativismo cultural é tão-somente um procedimento antropológico, isto é, metodológico. Não é um argumento moral de que qualquer cultura ou costume é tão bom quanto qualquer outro, se não melhor. O relativismo é a simples prescrição de que, a fim de serem inteligíveis, as práticas e ideais de outros povos devem ser postos em seus próprio contexto histórico, entendidos como valores posicionais no campo de suas próprias relações culturais, em vez de apreciados por nossos próprios julgamentos morais e categóricos. A relatividade é a suspensão provisória de nossos próprios julgamentos com o objetivo de situar as práticas em questão na ordem cultural e histórica que as tornou possíveis. Não é em nenhuma hipótese uma questão de apologia.”


Marshall Sahlins, Waiting for Foucault, Still, 2002.

Acerto de contas no Chile

Relatório abre nova era na democracia chilena, diz Lagos

CUZCO, Peru (Reuters) - A democracia no Chile entrou em uma nova era quando o governo do país aceitou publicamente que a tortura era uma política de Estado usada durante o regime militar (1973-90), disse o presidente Ricardo Lagos na terça-feira.

"Isso abre uma nova era para o sistema democrático do Chile. De um lado, reconhecemos a responsabilidade de uma instituição e, de outro, mostramos que papel a sociedade civil deve desempenhar", afirmou o presidente a jornalistas antes de participar de uma cúpula sul-americana na cidade de Cuzco, Peru.

Um relatório encomendado pela presidência, que inspirou pedidos de desculpa inéditos da parte dos militares ao ser publicado no mês passado, disse que 28 mil pessoas foram torturadas, a maior parte delas nos anos imediatamente posteriores ao golpe que colocou o general Augusto Pinochet no poder.

O documento conclui que a tortura era uma política de Estado, declarando oficialmente o que muitos esquerdistas já suspeitavam e o que muitas pessoas da direita chilena há muito tempo negavam.

Durante anos, a maior parte dos simpatizantes de Pinochet acreditou que as denúncias de tortura eram uma mentira de militantes da esquerda. Mas, mesmo os mais fiéis desses simpatizantes mostraram-se horrorizados com o relatório, que atesta oficialmente fatos conhecidos desde muito tempo.

Vários dirigentes das Forças Armadas pediram desculpas publicamente pouco antes e pouco depois de o relatório sobre a tortura ter sido divulgado, rompendo com a postura tradicional de negar os abusos.

"Como resultado desse doloroso documento... abrimos um grande debate sobre os direitos humanos... Precisamos olhar para a gravidade desses fatos a fim de que nunca se repitam", disse Lagos, o terceiro presidente de centro-esquerda a assumir o poder no Chile desde o retorno da democracia, em 1990.

(Reportagem de Marco Aquino)

http://br.news.yahoo.com//041208/5/psx6.html

sexta-feira, dezembro 03, 2004

The Day After II: 1ª etapa

Um anexo de email. Em PDF, para dar maior solenidade. A razão de ser de um mês e meio de estudo intenso a um clique de distância.


Glória ou cadafalso?


(Odeio momentos decisivos!)


De quarenta e tantos inscritos, dezenove sobreviveram para a entrevista eliminatória de segunda-feira. Como se esperava, alguns com excelente aproveitamento em prova e projeto, outros apenas em um ou outro, alguns pouco além do limiar da suficiência. E lá embaixo, entre os últimos da lista, alguém que hesitou em passar a página adiante, com o coração afoito. Após um breve suspiro, a sentença...

(Projeto improvisado e sem revisão, citações fora de ordem na prova, resposta apressada entregue no último minuto...)

Aprovado. Primeiro lugar da primeira etapa.

Glória!

(Ao menos, por enquanto...)

terça-feira, novembro 30, 2004

Último dia de aula

O início do ano letivo é sempre um enigma. Não se sabe que tipo de turma está nos esperando, há a preocupação em deixar uma boa impressão inicial, dentre outras que só aparecem às vésperas de entrar em sala. Quando se é um professor em início de carreira, este é um momento de certa solenidade, um verdadeiro rito de passagem pessoal e profissional. São os primeiros alunos que o aguardam, rostos que talvez carregue na memória para o resto da vida. Em um pré-vestibular comunitário, voltado para pessoas de baixa renda que muito provavelmente trazem sérias deficiências educacionais, o senso de responsabilidade é ainda maior. Muitas serão tentadas a desanimar, ou, mesmo que não desanimem, não terão condição de enfrentar a concorrência de igual para igual. Outras, mais capacitadas, sabem que estão em desvantagem em relação à enorme massa de competidores. Não importa o caso; todos precisam do máximo que o professor puder lhes oferecer.

Agora, no último dia de aula, após tantas apostilas, questões e palestras, ei-los diante de mim. Menos de dez, eles que já foram quarenta. Idades entre 18 e 45 anos. Não os verei mais juntos, talvez não torne a vê-los jamais. Do extenso programa exigido pelas provas, menos de um terço pôde ser cumprido com o tempo disponível. E foi tão rápido! Quase dez meses entre a crise do século XIV e a Revolução Industrial. Pouco, comparado à necessidade deles, mas o possível. Penso num relance se não poderia ter aproveitado melhor o tempo, dado este texto e não aquele, sido mais conciso neste ou naquele tópico, enfatizado mais determinado tema. Agora não importa mais. Os terrores da maior parte das provas já faz parte do passado, resta aguardar as que faltam e esperar com ânsia a sentença final: eles no vestibular, eu no mestrado. De certo modo, somos irmãos na luta surda contra um obstáculo implacável e necessário.

Comentamos a prova mais recente, procuro tirar suas dúvidas sobre temas variados. Duas garotas admitem que não foram bem, e em meu íntimo eu lamento... por elas e pela pouca surpresa com que ouço sua confidência. Quisera ouvir palavras confiantes e brados de entusiasmo, mas eles não vêm. Meus alunos, mesmo quando brincam e sorriem, sabem que nada está garantido, parecem mesmo não se permitir muito otimismo. Apenas o melhor aluno da turma, um gari que já é um senhor, parece mais alegre. Diz que, se não passar, não retornará ao curso, por causa dos sacrifícios que teve de fazer no emprego para assistir às aulas. Pergunto se isso significa a desistência de ir para a faculdade (aliás, de História). Responde que estudará sozinho, e à minha maneira eu o abençôo, tocado por sua tenacidade.

Os minutos correm céleres e chega a hora de partir. O professor seguinte aguarda lá fora. Percebo que não ensaiei nada, nem um mísero discurso de despedida. Hora de improvisar. Saem algumas palavras sobre perseverança, manutenção de ânimo e vontade, algumas frases de prudência e consolo antecipado para o caso de ser preciso tentar outra vez, um agradecimento pela atenção dispensada ao longo dos meses para um professor novato.

Aplausos. Um aperto de mão. Fim.

sexta-feira, novembro 26, 2004

The Day After

“Disserte sobre a renovação da história política e suas relações com a História do Tempo Presente, considerando a historiografia sobre um processo histórico determinado.”

Então isto é uma prova de mestrado? Olhei para o singelo papel à minha frente sem saber o que pensar. Passara os últimos 25 dias procurando livros os mais diversos, alguns já esgotados; deixando de me divertir para fichar capítulos; percorrendo a bibliografia indicada pelo edital como um áugure em busca de um presságio... para redundar nessa questão — o primeiro obstáculo entre mim e meus planos acadêmicos para o próximo biênio.

Não era uma questão difícil, pelo contrário. Na verdade, era quase um presente. Afinal, três parágrafos abaixo dela, havia uma bastante específica sobre a Revolução Russa, tema que não era uma das obviedades do programa. Certamente o mundo desabou sobre os ombros de alguém naquela sala de mais de 40 candidatos em disputa por míseras nove vagas. Mas não sobre os meus. Se Lênin arrastou consigo as esperanças de algum de meus rivais, não posso dizer que lamento. A necessidade é por vezes algoz da virtude.

Uma das desvantagens de se impregnar de um tema, como eu fiz, é saber demais sobre ele. Quando já se é naturalmente prolixo e detalhista, tanto pior. Isto pode ser bom para escrever tratados acadêmicos, de que o público já espera certos floreios, mas numa prova de apenas três horas de duração pode ser um problema. E foi. Mais vinte minutos, seria uma dissertação irretocável. Sem eles, foi apenas uma resposta promissora encerrada às pressas.

Contratempo irrelevante ou sentença de mais um ano de espera? Quando não se conhecem as preferências da banca, tudo é possível. Sucessos passados não garantem nada, por mais que todas as pessoas digam o contrário. Saber que se está disputando uma vaga na área mais disputada do melhor curso do país, com um projeto concebido no espaço de quinze dias com bibliografia estrangeira não perfeitamente explorada, exige uma dose de humildade. A leitura de projetos alheios já dera ciência de que veteranos de iniciação científica — do tipo que estuda um tema desde o terceiro período da graduação com a supervisão atenta de um professor — são figuras fáceis em concursos desse tipo. Gente que regurgita jargões, tresanda a quadros teóricos e assina o nome seguindo as últimas regras da ABNT. Sem falar na experiência de uma monografia sobre o mesmo tema do projeto.

Pouco importa. O senso de missão cumprida parece imunizar contra qualquer sombra de frustração. Autores e notas de rodapé ancorados na memória ainda não me permitiram sentir plenamente que estou novamente livre para ler um romance, ir ao cinema durante a semana ou qualquer outra atividade menos acadêmica. Talvez porque não esteja mesmo: ainda há uma entrevista caso a primeira etapa seja vencida, e depois dela os sobreviventes ainda terão de ser classificados segundo a média das notas obtidas. Darwin não pensaria num sistema melhor.

Alea jacta est. O momento é de expectativa e, enquanto não vem o desfecho, dou a palavra a uma amiga recém-descoberta, que também sabia falar dos momentos de amplitude.

Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que
a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e
precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e
inúmera...

Cecília Meireles


quarta-feira, novembro 24, 2004

A pobreza americana


Este artigo cita números interessantes. Parece que mesmo a terra mais próspera tem sempre algo a varrer para debaixo do tapete.


The New York Times

23/11/2004
Pobres são ignorados pelos tais "valores morais"
Conservadores pouco se importam com de 12 milhões de famílias

Bob Herbert
Colunista do NYTimes


O ex-senador Phil Gramm, Republicano do Texas conhecido por ser intratável, disse certa vez: "Somos a única nação no mundo em que todos os pobres são gordos".

Esse exemplo particular do conservadorismo piedoso veio à mente quando li o relatório do Departamento da Agricultura mostrando que mais de 12 milhões de famílias americanas continuam lutando, e nem sempre com sucesso, para se alimentar.

As 12 milhões de famílias representam 11,2% dos lares americanos. "Em algum ponto durante o ano", disse o relatório, "esses lares não tiveram certeza de ter comida suficiente para alimentar todos seus membros, por falta de dinheiro ou outros recursos".

Das 12 milhões de famílias preocupadas em ter comida suficiente para colocar na mesa, 3,9 milhões de fato passaram fome em algum momento do ano passado. "Os outros dois terços obtiveram alimentos para evitar a fome usando uma variedade de estratégias", disse o relatório, "tais como comer menor variedade, participar em programas de assistência alimentar federais ou receber comida das despensas da comunidade ou de cozinhas de ajuda emergencial."

Essas são estatísticas lúgubres para um país tão afortunado quanto os EUA. Mas não ouvimos muito falar delas, porque a fome está associada à pobreza, e a pobreza não está nem perto de entrar para o nosso diálogo nacional. Barcos rápidos sim. Cenas de sexo no programa de futebol da segunda-feira à noite, com certeza. A dificuldade de milhões de americanos de se alimentar? Ah, não, isso não.

O que isso diz sobre os valores americanos?

Estamos cercados de pessoas pobres e de baixa renda. (As definições podem ser elásticas e confusas, mas, essencialmente, estamos falando de indivíduos e famílias que não têm dinheiro suficiente para cobrir o essencial --comida, teto, agasalho, transporte, etc.) Muitas trabalham tempo integral e algumas têm mais que um emprego.

Um novo estudo do Centro do Futuro Urbano, um grupo de pesquisa sem fins lucrativos, revelou que mais de 550.000 famílias em Nova York --um quarto de todas as famílias que trabalham no Estado-- teve renda baixa demais para cobrir suas necessidades básicas.

Tivemos uma eleição presidencial duramente disputada, mas este sério problema (que absolutamente não está confinado a Nova York) não fez parte importante do debate.

De acordo com o estudo: "A maioria das famílias de trabalhadores de baixa renda não se conforma ao estereotipo popular dos pobres como jovens, solteiros, funcionários de lanchonetes: 88% das famílias de baixa renda incluem um pai de 25 a 54 anos de idade. Casais formam 53% dessas famílias. Trabalhos indispensáveis, como o de assistente de enfermagem, zelador e funcionário de creche, pagam salário de pobreza."

Em sua introdução, o estudo diz: "O acordo implícito que os EUA oferecem aos seus cidadãos supõe que todo mundo que trabalha duro e obedece as regras poderá sustentar sua família e seguir adiante e para cima."

Se esse era o acordo, foi rompido diversas vezes. Trabalhadores de baixa renda sempre foram alvo de exploração e isso nunca mudou. Steven Greenhouse, do The New York Times, publicou artigo preocupante, na primeira página da edição da última sexta-feira (19/11), sobre funcionários de restaurantes, supermercados, centrais telefônicas e outros que são forçados a fazer hora extra sem receber.

O governo federal não aumenta o salário mínimo desde 1997 e ainda permitiu que algumas empresas se negassem a pagar mais pela hora extra.

O democrata Franklin Delano Roosevelt, em seu segundo discurso inaugural [após ser reeleito presidente em 1936], disse à multidão debaixo da chuva: "O teste de nosso progresso não é se vamos adicionar mais à abundância aos que têm muito; é se vamos prover o suficiente para os que têm pouco demais."

Posso ouvir os políticos de hoje em Washington, rindo à vontade desse sentimento.

Há ativistas e até alguns políticos que trabalham duro para enfrentar uma série de problemas que afligem os trabalhadores e suas famílias. Mas recebem pouca atenção ou recursos dos setores mais poderosos da sociedade. Então, pessoas que trabalham com saúde e não podem pagar um seguro vão continuar esvaziando comadres por uns trocados. E os zeladores vão limpar fielmente a sujeira dos patrões que os ignoram.

São tempos duros para o sonho americano. Mas os tempos mudam, e as pessoas que romperam com o sonho não ficarão no poder para sempre.

Tradução: Deborah Weinberg

segunda-feira, novembro 22, 2004

A Lógica e a Verdade

Esta eu devo ao meu amigo Marco Aurélio e seu excelente blog Plural:

"You can only find truth with logic if you have already found truth without it".

G. K. Chesterton

sábado, novembro 20, 2004

Ágape

Depois de Beckett e seu niilismo, retrocedo na carreira dos séculos nos versos de um poema. E não é qualquer um. Não nasceu das tortuosas ligações de um poeta, nem da dor de um amante traído; não louva ideologia nem pátria; não canta os horrores da morte ou as maravilhas da natureza. Não tem sombras de tristeza nem laivos de monotonia. Gerações inúmeras nele encontraram bálsamo e advertência, e tragédia alguma suplantará a força de seus versos. Frustrações e revoltas empalidecem diante de sua força, e mais centenas de séculos passarão antes que estas linhas tenham esgotado a mensagem que guardam para cada afortunado que as leia “com olhos de ver”. Este poema é, como poucos, pura beleza, um raio de transcendência como o que um dia fulminou seu autor numa estrada para a Síria. Hoje eu o redescobri pela enésima vez, e foi como se fosse a primeira.

Fora com Beckett! É outra a voz que ecoará neste blog agora...

“Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e as dos anjos,
se eu não tivesse amor,
seria como um bronze que soa
ou como um címbalo que tine.
Ainda que eu tivesse o dom da profecia,
o conhecimento de todos os mistérios
e de toda ciência,
ainda que tivesse toda a fé,
a ponto de transportar montanhas,
se não tivesse a amor,
eu nada seria.
Ainda que eu distribuísse
todos os meus bens aos famintos,
ainda que entregasse
o meu corpo às chamas,
se não tivesse o amor,
isso nada me adiantaria.
O amor é paciente,
o amor é prestativo,
não é invejoso, não se ostenta,
não se incha de orgulho.
Nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita, não guarda rancor.
Não se alegra com a injustiça,
mas se regozija com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta.
O amor jamais passará.
Quanto às profecias, desaparecerão.
Quanto às línguas, cessarão.
Quanto à ciência, também desaparecerá.
Pois o nosso conhecimento é limitado,
E limitada é nossa profecia.
Mas, quando vier a perfeição,
O que é limitado desaparecerá.
Quando eu era criança,
falava como criança,
pensava como criança,
raciocinava como criança.
Depois que me tornei homem,
fiz desaparecer o que era próprio
da criança.
Agora vemos em espelho
e de maneira confusa,
mas, depois, veremos face a face.
Agora o meu conhecimento é limitado,
mas, depois, conhecerei como sou conhecido.
Agora, portanto, permanecem fé,
esperança, amor,
estas três coisas.
A maior delas, porém, é o amor.”

(I Coríntios, 13)


Depois do dilúvio, um novo dia.

segunda-feira, novembro 15, 2004

Esperando o vazio

Das inúmeras modalidades de ilusão que afligem a existência, poucas são tão desagradáveis, uma vez expostas, quanto a falsa esperança. O desespero absoluto certamente é também uma ilusão cruel, mas a feliz espera por algo que não virá é particularmente insidiosa. Em Esperando Godot, Samuel Beckett joga com o absurdo dessa situação ao mostrar dois personagens que se consomem num aguardar sem fim: a cada minuto, pode surgir um sinal qualquer que pareça pressagiar a chegada do etéreo Godot - uma expectativa angustiosa que se alimenta de si mesma, enquanto paralisa os outros aspectos da vida ao seu redor. Tudo passa ter a espera como fundo, e ainda está para nascer o artista que consiga retratar os variados estados por que a mente transita enquanto tenta se sustentar no que, afinal, não passa de vácuo.

"Vácuo"... A frustração é sem dúvida a mãe de muitos ódios, bem como a morte de incontáveis amores. Estes, porém, ainda são alguma coisa sólida a que se opor ou ceder; mas a frustração é apenas depressiva. Não se triunfa sobre ela como não se triunfa sobre o nada. Vai contra sua natureza, tediosa demais para empolgar uma luta. No máximo, pode-se esquecê-la por meio de algum objeto, quiçá voltando-se contra sua fonte. Mas, em si mesma, a frustração é vazia. E o vazio é a negação da existência, o único pecado mortal da Criação. Sejam, pois, malditos os que incitam esperas sem redenção, e lançam o vazio onde antes havia alguma coisa. São os verdadeiros inimigos de Deus, os suicidas do Cosmo. Não há perdão para eles, pois não se pode esperar perdão do nada -- pois não é a isso que nos reduzem quando nos aprisionam na não-ação e na expectativa inútil? Deixados de lado, inconscientemente infectados pelo não-ser...

Agora não importa. Em um dia que poderia ser tanto, mas que se reduziu a um buraco no calendário e uma esperança inane, encerro este mergulho na metafísica do tédio com o único poeta capaz de entendê-lo.

O Lamento das Coisas

Triste, a escutar, pancada por pancada,

A sucessividade dos segundos,

Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,

O choro da Energia abandonada!



É a dor da Força desaproveitada

— O cantochão dos dínamos profundos,

Que, podendo mover milhões de mundos,

jazem ainda na estática do Nada!



É o soluço da forma ainda imprecisa...

Da transcendência que se não realiza...

Da luz que não chegou a ser lampejo...



E é em suma, o subconsciente ai formidando

Da Natureza que parou, chorando,

No rudimentarismo do Desejo!


Augusto dos Anjos



quinta-feira, novembro 11, 2004

35 mil torturados no Chile

Um lembrete para os tolos que insistem em louvar o Chile de Pinochet como um modelo para os demais países latino-americanos.
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O GLOBO, 10/11/2004 -

Lagos recebe relatório sobre capítulo obscuro da História do Chile
EFE

SANTIAGO - O presidente chileno, Ricardo Lagos, recebeu nesta quarta-feira um relatório que revela uma das faces mais obscuras da ditadura de Augusto Pinochet e presta dolorosa conta com os torturados pelo regime militar, que agora deixam de ser anônimos.

- Este é um passo histórico. Creio que hoje estamos de verdade vivendo um momento transcendente, são 31 anos em que este crime não foi reconhecido - disse a vice-presidente da Associação de Familiares de Detidos Desaparecidos (AFDD), Mireya García.

Os oito membros da comissão liderada pelo bispo Sergio Valech entregaram a Lagos a compilação de testemunhos de 35 mil pessoas que sofreram nas mãos da ditadura que governou o Chile de 1973 a 1990, entre eles a própria Mireya García.

- Não existiam registros, nem tivemos rosto, nome ou história. Hoje já não somos anônimos, somos pessoas reconhecidas em um informe oficial e isso tem uma transcendência enorme tanto para as pessoas quanto para o país - afirmou a torturada.

Após a reunião com o presidente no Palácio La Moneda, em Santiago, Valech afirmou:

- Trabalhamos com o ontem, onde encontramos um mundo do qual já se havia esquecido, e cremos que o amanhã diz respeito a todos os chilenos.

O documento será analisado por Lagos, que em três semanas tornará público o seu conteúdo e deverá anunciar uma série de medidas de reparação, "para construir uma pátria de unidade, paz e progresso para todos", disse o bispo.

A comissão iniciou seu trabalhos em 11 de novembro de 2003, depois da divulgação do documento de Lagos intitulado "Não há amanhã sem ontem", e recorreu a relatos desde Arica (Norte) a Punta Arenas (Sul), em 110 localidades do Chile.

terça-feira, novembro 09, 2004

Testemunho de um ex-neoconservador

Algumas das coisas mais interessantes que encontro na Internet aparecem por puro acaso. Ora é uma janela "pop-up" que foge à regra e realmente mostra utilidade, ora é um link no canto de uma página... Hoje, os decretos do Absoluto me levaram a este texto publicado em fevereiro na revista The Nation, um dos maiores periódicos da esquerda americana. É escrito por Michael Lind, um dos ex-auxiliares de Irving Kristol, papa dos neoconservadores, arquitetos da atual política externa dos EUA. Trata-se, portanto, da visão de quem já fez parte desse círculo de ideólogos, um verdadeiro testemunho da visão de mundo por eles divulgada e o que está por trás dela. Vale a leitura: http://www.thenation.com/doc.mhtml?i=20040223&s=lind.

O Amor

André Comte-Sponville


Amar é rejubilar-se.
ARISTÓTELES



O amor é o tema mais interessante. Primeiro em si mesmo, pela felicidade que promete ou parece prometer - ou até, às vezes, pelo que ameaça ou faz perder. Que tema entre amigos é mais agradável, mais íntimo, mais forte? Que discurso, entre amantes, é mais secreto, mais doce, mais perturbador? E que há de mais apaixonante, de si para consigo do que a paixão?

Dirão que há outras paixões além das amorosas, outros amores além dos passionais... Isso, que é mais que verdade, confirma minha afirmação: o amor é o tema mais interessante, não apenas em si - pela felicidade que ele promete ou compromete -, mas também indiretamente: porque todo interesse o supõe. Você se interessa mais pelo esporte? É que você ama o esporte. Pelo cinema? É que você ama o cinema. Pelo dinheiro? É que você ama o dinheiro, ou o que ele possibilita comprar. Pela política? É que você ama a política, ou o poder, ou a justiça, ou a liberdade... Por seu trabalho? É que você o ama, ou que você ama, em todo caso, o que ele lhe proporciona ou lhe proporcionará... Pela sua felicidade? É que você ama a si mesmo, como todo o mundo e que a felicidade outra coisa não é, sem dúvida, que o amor pelo que somos, pelo que temos, pelo que fazemos... Você se interessa pela filosofia? Ela traz o amor em seu nome (philosophía, em grego, é amor à sabedoria) e em seu objeto (há outra sabedoria, além de amar?). Sócrates, que todos os filósofos veneram, nunca pretendeu outra coisa. Você se interessa, inclusive pelo fascismo, pelo stalinismo, pela morte, pela guerra? É que você os ama, ou o que é mais verossímil, mais justo, ama o que resiste a eles: a democracia, os direitos humanos, a paz, a fraternidade, a coragem... Tantos interesses diferentes, tantos amores diferentes. Mas não há interesse sem amor, e isso me traz de volta ao meu ponto de partida: o amor é o tema mais interessante, e qualquer outro só tem interesse à proporção do amor que lhe dedicamos ou nele encontramos.

Portanto é ou amar o amor, ou não amar nada - é ou amar o amor, ou morrer. E é por isso que o amor, e não o suicídio, é o único problema filosoficamente sério.

Penso, já entenderam, no que escrevia Albert Camus, bem no início do Mito de Sísifo: "Só existe um problema filosoficamente verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia." Eu assinaria com prazer embaixo da segunda dessas frases; é o que me impede de aquiescer absolutamente com a primeira. A vida vale a pena ser vivida? O suicídio suprime o problema muito mais do que o resolve; somente o amor, que não o suprime (pois a questão se coloca todas as manhãs, e todas as noites), resolve-o mais ou menos, enquanto estamos vivos, e nos mantém em vida. Se a vida vale ou não a pena ser vivida, se vale ou não vale, melhor dizendo, a pena e o prazer de ser vivida, depende primeiro da quantidade de amor de que somos capazes. Foi o que Spinoza percebeu: "Toda a nossa felicidade e toda a nossa miséria residem num só ponto: a que tipo de objeto estamos presos pelo amor?" A felicidade é um amor feliz, ou vários; a infelicidade, um amor infeliz, ou mais nenhum amor. A psicose depressiva ou melancólica, diria Freud, caracteriza-se primeiro pela "perda da capacidade de amar" - inclusive amar a si mesmo. Não é de espantar se ela costuma ser suicida. O amor é que faz viver, já que é ele que torna a vida amável. É o amor que salva; é ele portanto que se trata de salvar.

Mas que amor? E por que objeto?

Porque o amor é múltiplo, evidentemente, do mesmo que são incontáveis seus objetos. Podemos amar o dinheiro ou o poder, já disse, mas também os amigos, mas também o homem ou a mulher por quem estamos apaixonados, mas também os filhos, os pais, qualquer um até: aquele que está ali, simplesmente, que é o que chamamos de o próximo.

Também é possível amar a Deus, para quem nele crê. E crer em si, para quem se ama pelo menos um pouco.

A unicidade da palavra, para tantos amores diferentes, é a fonte de confusão e até - porque o desejo inevitavelmente se intromete - de ilusões. Acaso sabemos do que falamos, quando falamos de amor? Não é que muitas vezes aproveitamos o equívoco da palavra para esconder ou enfeitar amores equívocos, quero dizer, egoístas ou narcísicos, para iludir a nós mesmos, para fingir amar outra coisa que nós mesmo, para mascarar - muito mais do que para corrigir - nossos erros ou nossos desacertos? O amor agrada a todos. Isso, que é mais do que compreensível, deveria nos levar à vigilância. O amor à verdade deve acompanhar o amor ao amor, ilumina-lo, guia-lo, mesmo que seja necessário moderar, talvez, seu entusiasmo. Que é preciso amar a si, por exemplo, é óbvio: senão, como poderiam nos pedir para amar ao nosso próximo como a nós mesmos? Mas amar, muitas vezes, somente a si mesmo, ou por si, é uma experiência e é um perigo. Por que, senão, nos pediram para amar também nosso próximo?

Seriam necessárias palavras diferentes para amores diferentes. Palavras é que não faltam em nossa língua: amizade, ternura, paixão, afeto, apego, inclinação, simpatia, queda, dileção, adoração, caridade, concupiscência... É só escolher, o que não é fácil. Os gregos, mais lúcidos do que nós, talvez, ou mais sintéticos, utilizavam principalmente três palavras para designar três amores diferentes. São os três nomes gregos do amor, e os mais esclarecedores que eu conheço, em todas as línguas: eros, philia, ágape. Já falei longamente deles no meu Pequeno tratado das grandes virtudes. Aqui só posso dar, brevemente, algumas pistas.

O que é eros? É a carência, e é a paixão amorosa. É o amor, segundo Platão. "O que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor." É o amor que toma, que quer possuir e conservar. Eu te amo: eu te quero. É o mais fácil. É o mais violento. Como não amar o que falta? Como amar o que não falta? É o segredo da paixão (que ela só dura na carência, na infelicidade, na frustração); é o segredo da religião (Deus é o que falta absolutamente). Como tal amor, sem a fé, seria feliz? Ele precisa amar o que não tem, e sofrer, ou amar o que já não ama (já que só ama o que falta) e se chatear... Sofrimento da paixão, tristeza dos casais: não há amor (eros) feliz.

Mas como poderíamos ser felizes sem amor? E como, enquanto amamos, não o ser? É que Platão não tem razão acerca de tudo, nem sempre. É que a carência não é o todo do amor. Às vezes também amamos o que não nos falta - às vezes amamos o que temos, o que fazemos, o que é -, e gozamos alegremente, sim gozamos o que não nos falta e nos regozijamos com isso! É o que os gregos chamavam de philia. Digamos que é o amor segundo Aristóteles ("Amar é regozijar-se") e o segredo da felicidade. Amamos então o que não nos falta, aquilo de que gozamos, e isso nos regozija, ou antes, nosso amor é essa alegria mesma. Prazer do coito e da ação (o amor que fazemos), felicidade dos casais e dos amigos (o amor que compartilhamos): não há (philia) infeliz.

A amizade? É como se costuma traduzir philia, o que não deixa de reduzir um pouco seu campo ou seu alcance. Porque essa amizade não exclui nem o desejo (que já não é falta, então, mas potência), nem a paixão (eros e philia podem se misturar, e costumam se misturar), nem a família (Aristóteles designa por philia tanto amor entre os pais e os filhos, como o amor entre os esposos; um pouco como Montaigne, mais tarde, falará da amizade marital), nem a tão perturbadora e tão preciosa intimidade dos amantes... Já não é, ou já não é apenas, o que são Tomás chamava de concupiscência (amar o outro para o nosso próprio bem) e o segredo dos casais felizes. Porque é claro que essa benevolência não exclui a concupiscência: ao contrário, entre amantes ela se nutre dela e a ilumina. Como não nos regozijarmos com o prazer que damos ou recebemos? Como não queremos bem a quem nos faz bem?

Essa benevolência alegre, essa alegria benevolente, que os gregos chamavam philia é o amor segundo Aristóteles, dizia eu: amar é regozijar-se e querer bem a quem se ama. Mas também é o amor segundo Spinoza: "uma alegria", podemos ler na Ética, "que a idéia de uma causa exterior acompanha". Amar é regozijar-se de. É por isso que não há outra alegria além da alegria de amar; é por isso que não há outro amor, em seu princípio, além do amor alegre. A carência? Não é a essência do amor; é seu acidente, quando o real nos falta, quando o luto nos magoa e nos dilacera. Mas não nos magoaria se antes não houvesse a felicidade, ainda que em sonho. O desejo não é a carência; o amor não é a carência: o desejo é potência (potência de gozar, gozo em potência), o amor é alegria. Todos os amantes sabem disso, quando são felizes, e todos os amigos. Eu amo você: alegra-me que você exista.

Ágape? É outra palavra grega, mas muito tardia. Nem Platão, nem Aristóteles, nem Epicuro, jamais fizeram uso dessa palavra. Eros e philia lhes bastavam: eles só conheciam a paixão ou a amizade, o sofrimento da falta ou a alegria do compartilhar. Mas o caso é que um judeuzinho, muito depois da morte daqueles três, pôs-se de repente, numa distante colônia romana, num improvável dialeto semítico, a dizer coisas surpreendentes: "Deus é amor... Amai vosso próximo... Amai vossos inimigos..." Essas frases, sem dúvida estranhas em todas as línguas, pareciam, em grego, quase intraduzíveis. De que amor podia se tratar? Eros? Philia? Um ou outro nos condenariam ao absurdo. Como Deus poderia carecer do que quer que seja? "É um tanto ridículo pretender-se amigo de Deus", dizia Aristóteles. De fato, não dá bem para entender como nossa existência, tão medíocre, tão irrisória, poderia aumentar a eterna e perfeita alegria divina... E quem poderia decentemente nos pedir para nos apaixonarmos por nosso próximo (quer dizer, todo o mundo e qualquer um!) ou ser amigo, absurdamente, dos nossos inimigos? Mas era necessário traduzir esse ensinamento em grego, como hoje, se faria em inglês, para que todo o mundo compreendesse... Os primeiros discípulos de Jesus, porque é dele que se trata, claro, tiveram então de inventar ou de popularizar um neologismo, forjado a partir de um verbo (agapan: amar) que não tinha substantivo usual, o que deu ágape, que os latinos traduzirão por caritas e nós, na maioria das vezes, por caridade... De que se trata? Do amor ao próximo, na medida em que dele formos capazes: do amor a quem nos faz falta, nem nos faz bem (de quem não somos nem amantes nem amigos), mas que está aí, simplesmente aí, e que temos de amar em pura perda, por nada, ou antes por ele, quem quer que seja, o que quer que valha, o que quer que faça, mesmo que fosse nosso inimigo... É o amor segundo Jesus Cristo, é o amor segundo Simone Weil ou Jankélévitch, e o segredo da santidade, se é que ela é possível. Não confundir essa amável e amante caridade com a esmola ou a condescendência: tratar-se-ia antes de uma amizade universal, porque liberta o ego (o que não acontece com a amizade simples: "porque era ele, porque era eu", dirá Montaigne a propósito da sua amizade por La Boétie), libertada do egoísmo, libertada de tudo, e por isso mesmo libertadora. Seria o amor a Deus, se ele existe ("o Theos agapé estin", lemos na primeira epístola de são João: deus é amor), e o que mais se aproxima dele, em nossos corações ou em nossos sonhos, se Deus não existir.

Eros, philia, agapé, o amor que falta ou que toma; o amor que se regozija e que compartilha; o amor que acolhe e dá... Não se apressem muito a escolher entre os três! Que alegria há sem falta? Que dom sem compartilhar? Se cumpre distinguir, pelo menos intelectualmente, esses três tipos de amor, ou esses três graus de amor, é principalmente para compreender que todos os três são necessários, todos os três estão ligados, e para iluminar o processo que leva de um ao outro. Não são três essências, que se excluiriam mutuamente; são antes três pólos de um mesmo campo, que é o campo de amar, ou três momentos de um mesmo processo, que é o de viver. Eros é o primeiro, sempre, e é o que Freud, depois de Platão e de Schopenhauer, nos lembra; agapé é o objetivo (para o qual podemos ao menos tender), que os Evangelhos não param de nos indicar; enfim, philia é o caminho ou a alegria como caminho: o que transforma a carência em potência e a pobreza em riqueza.

Vejam o bebê tomando o peito. E vejam a mãe, dando-o. Ela, é claro, foi um bebê primeiro: começamos tomando tudo, o que já é uma maneira de amar. Depois aprendemos a dar, pelo menos um pouco, pelo menos às vezes, o que é a unia maneira de ser fiel até o fim ao amor recebido, ao amor humano, nunca humano demais, ao amor tão fraco, tão inquieto, tão limitado, e que é no entanto como que uma imagem do infinito, ao amor de que fomos objetos e que nos fez sujeitos, amor imerecido que nos precede, como uma graça, que nos gerou, e não criou, ao amor que nos ninou, levou, alimentou, protegeu, consolou, ao amor que nos acompanha, definitivamente, e que nos faz falta, e que nos regozija, e que nos perturba, e que nos ilumina... Se não fossem as mães, que saberíamos do amor? Se não houvesse amor, que saberíamos de Deus?

Uma declaração filosófica do amor? Poderia ser, por exemplo, a seguinte:

"Há o amor segundo Platão: 'Eu te amo, tu me fazes falta, eu te quero.'

Há o amor segundo Aristóteles ou Spinoza: 'Eu te amo: és a causa da minha alegria, e isso me regozija.'

Há o amor segundo Simone de Weil ou Jankélévitch: 'Eu te amo como a mim mesmo, que não sou nada, ou quase nada, eu te amo como Deus nos ama, se é que ele existe, eu te amo como qualquer um: ponho minha força a serviço da tua fraqueza, minha pouca força a serviço da tua imensa fraqueza...'

Eros, philia, agapé, o amor que toma, que só sabe gozar ou sofrer, possuir ou perder; o amor que se regozija e compartilha, que quer bem a quem nos faz bem; enfim, o amor que aceita e protege, que dá e se entrega, que nem precisa mais ser amado...

Eu te amo de todas essas maneiras: eu tomo, avidamente, eu compartilho alegremente tua vida, tua cama, teu amor, eu me dou e me abandono suavemente...

Obrigado por ser o que és, obrigado por existir e por me ajudar a existir!"



COMTE-SPONVILLE, A. “O Amor’. IN: Apresentação da Filosofia. SP: Martins Fontes, 2002

sábado, novembro 06, 2004

The Biographies of Solitude

Blue the hills, red the fields,
where the kisses and blows were dealt...
How eager they were, marching away,
enlistees in the horde of love.
Farewell the sweethearts
—they never came back.
Welcome, sisters of solitude.

And who will say these lives have been?

Solitude has no biographers.

Nonetheless, hands move across the pages.
Nonetheless, empty pages go from hand to hand.
Nonetheless, papers blow over the landscape
of magical names, the beautiful promises.

One in in snowy Idaho, raging.
One in California sits before her mirror,
considering death.
One takes hot baths in Tennessee,
to calm herself, calm herself down.
In Kansas one scribbles madly.
One walks in a daze in the crowds
on Forty-second Street, barefoot,
her feet bruised, day after day.
In the hospital of the wind.

What the flood has spared is given
into the keeping of the whirlwind.

Day after day the wind
numbering the losses...
"From now on I will love only myself."
"I no longer try to make sense to people."
"It's all a game anyway."
"Back then I still had my ideals.
No sacrifice was too much for me.
I was strong. I felt everything."
"I don't even pity myself anymore."

They bite their lips.
Shrug their shoulders.

"What is there left to protect?"
"Who can you trust?"

How America is immense and filled with solitudes!

Irving Feldman

Sexta-feira, depois das 22h.

Enquanto minhas irmãs se preparam para uma noitada com as amigas e “Godzilla 2000” leva os limites da credibilidade televisiva a um novo patamar, ocorre-me o já recorrente: “Que fazer?” A pergunta tem certo ar clássico, remontando a uma célebre obra de Lênin. Mas a solução que encontro pouco tem a ver com o velho Vladimir: passar o resto da noite lendo sobre Bettino Craxi, uma espécie de mega-Paulo Maluf da Itália dos anos 80. A ambição de um mestrado faz muita coisa com uma pessoa, inclusive passar uma noite de sexta com um corrupto italiano, mas chega um ponto em que nem um doutorado em Harvard se torna convincente o bastante. Resta então vir para o computador clamar por santuário.

A questão é que a criatividade não veio junto. Nesta noite abafada, com a mente repleta das intrigas da política italiana dos últimos 60 anos, compor algo original e interessante parece um feito sobre-humano. Portanto, caro leitor, se quer se instruir ou enlevar, sugiro que procure outro blog por hoje. Ao contrário de algumas pessoas que conheço, não domino a arte de seinfeldianamente escrever bem sobre o nada. Preciso de um estímulo, um incômodo... É bem verdade que o tédio incomoda, mas não é lá muito excitante intelectualmente. Escrever sob sua influência é me arriscar a espantar os meus poucos leitores e desvirtuar os objetivos deste blog. Todavia, já que estou aqui diante do monitor em vez de me refazer para acordar cedo no sábado — que será badaladíssimo com aula durante o dia e política européia à noite —, dar-me-ei o direito de divagar sobre coisas sem importância. Nada de literatura, história, avanços da ciência ou política. Apenas um monólogo sem pretensões.

O último mês foi interessante. Diplomei-me carioca em meu primeiro tiroteio; vi-me às voltas com as dores e prazeres do parto de um projeto acadêmico apressado que quase me afogou com livros e textos variados; fui reduzido à semi-indigência por conta de um computador que precisou ser inteiramente trocado de uma hora para outra, e mais alguns eventos de ordem mais pessoal, ocasionalmente aflitivos, que não preciso detalhar aqui. Um mês de crises, portanto, mas no sentido positivo. Pode ser que ver um caráter positivo em eventos criminais, correria acadêmica e falta de dinheiro seja um sinal de extravagância. Eu poderia citar alguns textos religiosos a favor dessa opinião, mas prefiro dizer que tenho por norma tentar extrair lições de tudo que me acontece. Reconheço ser mais fácil quando não se é atingido no tiroteio, o projeto consegue ser concluído e se tem a certeza de que o débito no banco será saldado no mês seguinte. Não garanto a mesma serenidade filosófica nessas situações. De qualquer maneira, se me foi dado passar incólume por essas crises diminutas, contento-me em procurar ver nelas algo de útil. É o mínimo que se pode fazer com a lucidez que elas preservaram, pois nem todos têm a mesma sorte.

Conheço pelo menos três pessoas que estão verdadeiramente atravessando crises, de graus diferentes, mas graves para todas. Pelo menos uma não possui a sanidade necessária para sair sozinha do abismo em que se encontra, e a cada vez que fico sabendo dos novos lances de seu drama, a palavra “desgraça” como que adquire um novo significado. Pode-se sempre pensar que a grande maioria das pessoas passa por tragédias relativas, incomparavelmente mais suaves do que as suportadas por uma
parcela nada desprezível da humanidade em rincões de dor. Mas não poder contar com a própria razão, não ter pleno controle sobre si mesmo e ainda se ver cercado de pessoas igualmente desequilibradas, mental e espiritualmente, é praticamente uma morte em vida. Dela só se pode tirar lições estando de fora. Não por acaso os deuses gregos, quando queriam punir alguém, tinham um gosto especial por lhe infundir a loucura. Nada se compara a ser prisioneiro de si mesmo.

As outras duas pessoas... Deixo-as em paz neste blog. Não vou profanar sua dor expondo-a aqui — sei que podem estar entre meus leitores. Registro apenas que torço por ambas, confio em que terão forças quando suas respectivas crises chegarem a um desfecho e, de alguma forma, crescerão com elas. Vendo a forma como lidam com os problemas que as afligem, parece relativamente fácil apontar como poderiam melhorar, que características precisariam ser reavaliadas e mudadas. Porém, certas lições não são passíveis de transmissão, só a experiência pode ensiná-las. Só me resta esperar que, tendo me aproximado de ambas por motivos muitíssimos diversos, possa ajudar no que for possível e, quem sabe, testemunhar o amadurecimento que poderão colher.

Duas da manhã, faltam quatro horas e meia para levantar “super bem-disposto”. Basta de divagar por ora.

quarta-feira, novembro 03, 2004

Four More Years...





E aconteceu. Apesar do esforço coordenado de milhões, das centenas de milhares de páginas virtuais e impressas, de todos os debates, do bombardeio permanente de inúmeros analistas ao redor do globo, e mesmo do documentário recordista de vendas de todos os tempos, prevaleceu o slogan, e, num chiste poético do destino, foi Arnold Schwarzenegger o seu profeta: “Four More Years!” com George W.

Os últimos quatro foram quase inacreditáveis. O republicano com fama de idiota, com aspirações de John Wayne, mestre no trocadilho involuntário e generoso fornecedor de gafes que fizeram a delícia da grande imprensa, viu-se repentinamente confrontado com uma catástrofe sem precedentes e jogado no posto de liderança do mundo “civilizado”. Podemos apenas imaginar o que se passou em sua cabeça quando percebeu o que estava acontecendo. Talvez uma pista seja o olhar vago no momento em que soube do ataque ao World Trade Center, quando em visita a uma escola infantil: por minutos que se recusavam a passar, vimos um homem hesitar diante do desconhecido. A experiência do papai não incluía aquilo. Já fora tão difícil chegar ao posto, numa eleição que abalou as bases de uma democracia orgulhosa; mas agora a Terceira Guerra Mundial tinha de explodir, “e logo no meu mandato?” Era o que ele parecia refletir naqueles minutos, enquanto folheava em silêncio um livro de histórias. Enquanto as torres queimavam e o mundo entrava em choque, um homem poderoso tomava consciência de seu destino em uma classe infantil. Nada mais apropriado.

E veio a vingança. O cowboy sacou de suas armas e partiu para o duelo pôr-do-sol. Chega de bobagens! Nada de dúvidas! Vamos combater o mal onde quer que esteja, quem quer que ele seja, sem frescuras legais ou diplomáticas. E ele soube fazê-lo como ninguém: era hora de tomar aquelas medidas que quase todo o mundo, protegidos em sua privacidade, diz serem necessárias, mas não tem coragem de admitir. Fora com os bárbaros talibãs! Fora com os opressores de mulheres e guardiões de terroristas! Fora com os idiotas que falam em direitos humanos enquanto as torres ainda fumegam! Fora com a Convenção de Genebra! Fora com o direito de defesa e a presunção de inocência! Para que um beduíno imundo e nômade precisa de um advogado, quando a liberdade e a democracia estão sob ataque? É preciso levar a liberdade aonde ela nunca existiu, exportar os valores que fizeram dos Estados Unidos da América a nação mais próspera da Terra! Como alguém poderia pensar em recusar essa oportunidade?

E assim pensando foram os novos cruzados, heróicos e galantes em sua busca de justiça, plenos de autoconfiança. Teriam derrotado qualquer um que os confrontasse cara a cara. Sua força e seu poder não conheciam igual. E, como se não bastasse, tinham Deus ao seu lado, como os fiéis de George W. jamais esqueciam. O resultado de tanta valentia e crença na própria retidão foi a queda do Talibã, a esperança fugaz de que tudo que faltava para uma democracia no Oriente Médio era alguém forte o bastante para instaurá-la e, um pouco depois, uma série ridícula de erros de cálculo. Com todo seu poder e suas supostas boas intenções, George W. e sua entourage se esqueceram de que é muito fácil para uma superpotência vencer um combate em que é tudo ou nada; mas que “reconstruir” um país exige um plano. Não basta afastar o vilão, é preciso ensinar seus súditos a serem “mocinhos”. Querer aprender já seria de grande ajuda, mas parece que George W. nem sempre é muito persuasivo. Que o digam os seus aliados europeus, que, mesmo quando mandaram homens para as desforras americanas, sempre foi numa proporção mínima: o país que mais tem tropas no Iraque, depois dos EUA, é a Grã-Bretanha; mas, enquanto os militares estadunidenses chegam a 138 mil, os britânicos têm pouco menos de 9 mil. Não é o que se pode chamar de um apoio muito sólido, convenhamos.

Mas nada disso importa agora. George W. ganhou “four more years” para corrigir seus erros e, Deus seja piedoso, cometer mais alguns. O déficit do país continua aumentando, a distância entre Igreja e Estado vem diminuindo, o sistema de saúde vem sendo privatizado e não faltam inimigos a quem levar a “democracia e a liberdade” com canhões e filiais da Halliburton. É verdade que poderá haver fatores positivos também. Quais, exatamente, é difícil dizer. Contudo, não é a esperança a última que morre? Mesmo que a democracia americana vá antes...

terça-feira, novembro 02, 2004

A complicada arte de ver

Rubem Alves

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso -- porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver-- eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Rubem Alves, 71, educador, escritor. Livros novos para crianças e adultos-crianças: "Os Três Reis" (Loyola) e "Caindo na Real: Cinderela e Chapeuzinho Vermelho para o Tempo Atual" (Papirus). Site: www.rubemalves.com.br
Fonte: Folha online - Sinapse -26/10/2004 -

segunda-feira, novembro 01, 2004

Mais pílulas

"Não há dois tempos iguais de solidão porque nunca se está só da mesma maneira."

Henri Bosco


Fechando a noite: Strangers in the night, Frank Sinatra.

domingo, outubro 31, 2004

Pílula musical

A este domingo calorento, o primeiro digno de uma primavera para lá de tardia , e no qual nada acontece de especial (telefones não tocam, caixas postais se mantêm vazias e amigos desaparecem), dedico a primeira sugestão musical deste novo Divagações:

Boadicea, Enya.

Porque o sublime ainda é o melhor antídoto para as horas tediosas da solidão.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Onde foi parar a imprensa dos EUA, o 4º poder?

Boom de documentários e livros políticos tenta compensar 11/9

Sylvie Kauffmann
Em Paris

(Le Monde, 27/10/2004)

Em 11 de setembro de 2001, Jehane Noujaim estava a bordo de um vôo da linha Londres-Nova York da Virgin Atlantic. O avião já havia decolado quando, de repente, ele recebeu a ordem de retornar. "Nós ficamos por mais de quatro horas sentados dentro do avião, que estava imobilizado na pista", conta, "e, não sei por quê, a tripulação não queria nos dizer o que estava acontecendo".

"Mas, depois de um certo tempo, alguns passageiros começaram a fazer ligações com os seus celulares, e foi assim que nós recebemos a notícia dos atentados, do desmoronamento das torres do World Trade Center. Havia muitas pessoas de Nova York a bordo; várias dentre elas choravam. Eu tive esse sentimento muito forte de que algo importante acabava de acontecer e que isso iria mudar muitas coisas".

Nascida em Washington há 30 anos, de um pai egípcio e de uma mãe americana, criada em parte no Egito antes de fazer os seus estudos em Harvard, Jehane Noujaim, cineasta, co-autora de um documentário que chamou muito a atenção nos Estados Unidos sobre a vida e a morte de uma empresa da idade de ouro da Internet (Start-Up.com), não demoraria a se encontrar no cerne do antagonismo árabe-americano.

Quando ela estava de passagem pelo Egito, ela assistia à Al Jazeera, que ela considerava como uma "força de democratização" no Oriente Médio: "Eu acreditava que era um canal que os Estados Unidos apoiariam".

Mas, quando ela voltava para os Estados Unidos, ela via uma imagem completamente diferente da Al Jazeera, uma imagem transformada em algo "diabólico", enquanto os canais americanos, no momento em que já se falava numa possível intervenção militar no Iraque, lhe davam cada vez mais a impressão de estarem exibindo "jogos de guerra de videogame".

"Eu achava isso muito frustrante", conta Jehane hoje, entre duas escalas nos seus deslocamentos com a campanha de John Kerry, sobre a qual ela está filmando, junto com Alexandra Kerry, a filha do candidato democrata, um novo documentário.

"Nós tentávamos entender a situação, indo dos discursos do Pentágono para as coletivas de imprensa no CentCom --Central Command, o quartel-general do exército americano--, passando pelos relatos dos enviados especiais integrados com as tropas do exército americano, e eu me perguntava: mas, as pessoas no Iraque, onde estão elas? Por que ninguém está explicando o porquê de tudo isso, por que as notícias não estão sendo tratadas com profundidade?"

Então, três semanas antes da ofensiva no Iraque, Jehane Noujaim embarcou a sua câmera e levantou vôo rumo ao Qatar. Lá, ela se deu conta de que o CentCom ficava a 15 minutos de carro da sede da Al Jazeera e decidiu reunir os dois elementos: a cobertura da emissora pan-árabe de um lado, os jornalistas americanos do outro, podendo contar, entre os dois, com a ajuda de um oficial americano encarregado das relações com os jornalistas árabes e que, mostrando-se tão perplexo quanto ela com esta situação, aceitou fornecer o seu auxílio no que fosse preciso.

O resultado dessa cobertura, o documentário "The Control Room, Different Channels, Different Truths" (A câmara de controle, canais diferentes, verdades diferentes), selecionado para o festival de Sundance na primavera de 2004, mostra de que maneira, antes e depois das primeiras semanas da guerra no Iraque, "o público americano teve uma versão da história, e o público árabe uma outra".

Desde a sua estréia, em junho, em Nova York, o sucesso foi imediato. "E eu que achava que eu só poderia exibi-lo no Canadá!", comenta, extasiada, Jehane Noujaim...

Menos polêmico do que o filme de Michael Moore, "Fahrenheit 9/11", por ser um puro documentário, "The Control Room" cumpriu a mesma função na América em guerra: oferecer ao público, imagens, informações e uma perspectiva que os canais de televisão americanos se abstiveram de lhe transmitir.

Outros cineastas tais como Robert Greenwald, o autor de um outro documentário, "Uncovered: the War on Iraq" ("Verdade Revelada - A Guerra no Iraque"), foram motivados pela mesma frustração diante do conformismo dos mais importantes entre os meios de comunicação americanos.

Imprensa covarde
Esse boom dos documentários e dos filmes políticos está sendo acompanhado paralelamente por um debate cada vez mais acirrado sobre a auto-censura que tem sido praticada pela mídia tradicional desde 11 de setembro de 2001, e sobre uma preocupação profissional com a objetividade, tão escrupulosa que ela acaba ocultando a realidade.

Michael Moore acaba de lançar nas lojas 3,5 milhões de DVDs de "Fahrenheit 9/11". Para Paul Krugman, o cronista do "New York Times", por mais criticável, "e por mais tendencioso e repleto de erros" que este filme possa ser, as pessoas vão assistir a ele "para aprender histórias verdadeiras que eles deveriam ter ouvido de outras fontes. Este filme está fazendo sucesso porque os meios de
comunicação respeitáveis não fizeram seu trabalho".

Aliás, ocorre que esses mesmos veículos de comunicação "respeitáveis" transponham, por vezes de maneira involuntária, a linha da respeitabilidade. É o que acaba de fazer a enviada especial do "Wall Street Journal" a Bagdá, Farnaz Fassihi, que, uma vez terminado o seu muito correto artigo do dia, tinha por hábito dar livre curso às suas emoções, escrevendo o que ela pensava realmente em mensagens que ela enviava por e-mails aos seus amigos.

Em 29 de setembro, um destes amigos, sem dúvida movido por um nobre sentimento, clicou sobre o comando "encaminhar". No espaço de alguns dias, o extenso e-mail-verdade de Farnaz Fassihi havia circulado no conjunto daquilo que o presidente Bush chama generosamente de "as Internets", por esta arma, que ele não controla, ser tão poderosa, e suscitou intensos debates no quadro da profissão.

Assim, o que diziam de tão estrondoso as missivas "censuradas" de Farnaz Fassihi (que podem ser encontradas no site www.poynter.org/column)? Elas contavam simplesmente, com a eloqüência e a emoção da carta escrita no calor dos acontecimentos, a vida cotidiana de um repórter americano e dos iraquianos em Bagdá, um relato pontuado pela seguinte constatação, que não deixa dúvida:
"O gênio do terrorismo, do caos e do desastre foi solto e paira sobre este país por causa dos erros americanos, e ninguém consegue enfiá-lo de volta na sua lâmpada".

A direção do "Wall Street Journal" apoiou publicamente a sua enviada especial, cujas reportagens que têm sido publicadas no diário não foram nem um pouco "prejudicadas" pelos seus pontos de vista pessoais; desde então, Farnaz Fassihi permanece contudo em silêncio e em férias, férias estas que foram prorrogadas oportunamente até 2 de novembro [data da eleição presidencial americana].

Cercados por uma aura de prestígio depois do Watergate, os veículos de comunicação americanos tornaram-se hoje alvos de todos os ataques.

"Na realidade", analisa Michael Massing, um antigo professor da escola de jornalismo da universidade Columbia e autor de várias críticas virulentas da cobertura do "New York Times", publicadas neste ano pela "New York Review of Books", "a imprensa, que havia adquirido um papel de contra-peso na época do Vietnã e de Nixon, começou a operar uma retirada durante o governo Reagan. É neste ponto que está concentrada toda a questão da relação entre a imprensa e o poder: quando se está lidando com um presidente forte, torna-se mais difícil agir como contra-poder".

Acrescenta-se a isso um evento com a dimensão dos atentados de 11 de setembro, dos quais Nova York, a capital dos meios de comunicação, foi um dos alvos, e a tendência torna-se ainda mais difícil de reverter.

Os juristas que lutaram contra as ameaças às liberdades públicas exercidas pela administração Bush não têm palavras duras o bastante contra os jornalistas, junto aos quais eles não encontraram nenhum apoio.

"A minha fé numa imprensa vigorosa e independente, tão crucial para a democracia, foi abalada", reconhece Tom Wilner, um dos advogados dos prisioneiros estrangeiros mantidos sob custódia em Guantánamo. Por sua vez, Michael Massing evoca um "enorme fracasso institucional, e um dos episódios mais sombrios da história da imprensa".

Os grandes veículos de comunicação tornaram-se objeto de gozação nos programas satíricos da televisão, cujo sucesso crescente demonstra a que ponto o público está sensível a este mal-estar.


Paródia reveladora
Parodiando o slogan da CNN, "o nome mais respeitado no mundo da informação" ("The Most Trusted Name in News"), Jon Stewart, o homem que está se tornando cada vez mais famoso, apresentando um falso jornal devastador, todas as noites, no canal Comedy Central, proclama-se "o nome mais respeitado no mundo da falsa informação" ("The Most Trusted Name in Fake News").

"Qual é a sua opinião?", perguntou certa noite Jon Stewart a um de seus falsos repórteres a respeito de um evento que ele deveria supostamente relatar para os telespectadores. "Eu não tenho opinião", respondeu o imitador. "Eu sou jornalista, Jon. O meu trabalho consiste em passar a metade do meu tempo repetindo o que diz um lado, e a outra metade repetindo o que diz o outro lado. É o que chamam de objetividade. Aliás, seria bom você se interessar um pouco por este assunto". E o público ri sem parar.

Os grandes nomes da verdadeira política acotovelam-se para serem convidados a participar deste falso jornal de Jon Stewart. No final das contas, resume a revista "Rolling Stone", o seu falso jornal "conta mais do que os verdadeiros".

Deixando-se levar por um surto notável de masoquismo, os jornalistas dos veículos convencionais convidam Jon Stewart para participar dos seus programas, lhe distribuem elogios nas suas colunas. A confusão é total.


Segredo corrompe a mídia
Para Stephen Holmes, um professor da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, "o ataque mais grave" conduzido pela administração Bush "foi dirigido contra a capacidade cognitiva deste país".

Isso porque, embora o "New York Times" e o "Washington Post" acabassem fazendo autocrítica a respeito da credulidade em relação às supostas armas de destruição maciça no Iraque, é preciso reconhecer que a equipe Bush vem praticando contra os veículos, desde muito antes de 11 de setembro, uma política do segredo que eles não conheciam desde a presidência Nixon.

Um relatório preparado pela Câmara dos representantes pelo eleito democrata Henry Waxman, publicado em setembro sob o título: "Secrecy in the Bush Administration" ("O Sigilo na Administração Bush"), mostra até que ponto o poder executivo procura reduzir, geralmente com sucesso, os efeitos das leis dos anos 60 e 70 sobre a transparência e o acesso à informação.

Um outro sintoma desta aversão pela mídia fica evidente quando se considera os infortúnios de Judith Miller, uma jornalista estrela do "New York Times", que foi ameaçada com uma pena de 18 meses de prisão caso ela persistir a se recusar a
revelar as suas fontes num inquérito a respeito do qual ela foi proibida de escrever uma linha sequer, sobre um agente da CIA cujo nome fora ilegalmente desvendado.

Num artigo editorial solenemente intitulado "A promessa da primeira emenda", Arthur Sulzberger Jr, o proprietário do "New York Times", denunciou vigorosamente essas pressões.

"É verdade, a imprensa está longe se ser perfeita. Nós somos humanos e nós cometemos erros. Mas os autores da nossa Constituição e da primeira emenda já haviam entendido tudo isso (...). O objetivo principal da garantia constitucional de uma imprensa livre é de "criar uma quarta instituição, fora do Estado, para ser um contra-poder suplementar em relação aos três ramos oficiais do poder".

Arrastada na lama alguns meses antes por ter dado sustento com facilidade excessiva à teoria oficial das armas de destruição maciça, Judith Miller é hoje tratada como mártir. "Deus a abençoe, Judith Miller, impossível impudente!", ironiza Jack Shafer, um cronista da revista eletrônica "Slate".

Portanto, será que o 11 de setembro de 2001, o Iraque e George W. Bush, conseguiram acabar com a liberdade de expressão, consagrada pela famosa primeira emenda?

Responder pela afirmativa seria contar sem dois fatores. O sobressalto, em primeiro lugar, que foi provocado pelo escândalo da tortura na prisão de Abou Ghraib e pela deterioração da situação no Iraque, que incentivou a imprensa a se mostrar mais agressiva. Depois, a profusão de meios de expressão outros que os veículos tradicionais.


Além do boom dos filmes documentários, o recente sucesso sem precedente dos livros políticos, começando por aquele do relatório oficial da comissão sobre o 11 de setembro de 2001, reflete uma sede do público por uma outra informação; em meados de outubro, oito dos quinze ensaios figurando na lista dos best-sellers do "New York Times" diziam respeito aos eventos do pós-11 de setembro, sendo que um nono era a autobiografia de Bill Clinton.


Blogs
Além disso, há a Internet, os cerca de 200 sites especializados em jornalismo, todos os quais servem também de fóruns de discussão, e o mais recente subproduto da Web, os blogs, que constituem um meio poderoso de disseminação.


Esta nova raça de "jornalistas de pijama", os blogueiros, mais comentaristas do que informadores, obteve a sua consagração ao conquistar neste verão o seu espaço reservado nas tribunas de imprensa, durante as convenções democrata e republicana.


Considerados como a forma mais evoluída da democratização da informação na Internet, que permite a qualquer um transformar-se num redator-em-chefe, criando o seu site a partir do seu sofá-cama, os blogs (contração de Web Log, literalmente diário de bordo na Internet) exercem um poder de agitação e possuem uma grande capacidade de incomodar a muita gente (o site technorati.com levanta uma lista de todos esses efeitos).

A "blogosfera" não escapa da polarização política: o quase-linchamento de Dan Rather, uma figura histórica da CBS News, que foi obrigado a pedir desculpas, em setembro, quando blogueiros de direita revelaram que ele havia utilizado --sem querer-- um documento falso a respeito do serviço militar de George W. Bush, ilustra ao mesmo tempo uma nova dinâmica da comunicação e a sede de revanche dos conservadores sobre os veículos tradicionais, considerados como favoráveis aos democratas.

Contudo, excetuando-se algumas cabeças da elite que utilizam este meio como um cavalo de batalha, os blogs raramente proporcionam qualquer "furo" de reportagem.

Da mesma forma que Jon Stewart ou Michael Moore, raros são os blogueiros que aceitam arriscar a sua vida partindo para Bagdá. A reportagem e a informação continuam sendo especialidades exclusivas do quarto poder, sob a estreita e dupla vigilância do poder executivo e de um quinto poder emergente.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

terça-feira, outubro 26, 2004

Os Grandes Assassinos do Século XX

Descobri um site muito interessante com numerosas estatísticas sobre o século XX: http://users.erols.com/mwhite28/20centry.htm. Escrito por Matthew White, um livreiro diletante que pelo visto tem um enorme gosto por História. O que ele criou é uma grande listagem de dados comentados sobre as mais variadas coisas, desde a população a cada década até a distribuição de Prêmios Nobéis, ou dados específicos de regiões do mundo. É certamente um recurso útil.
O que me chamou a atenção, porém, é a seção sobre os “hemoclismas” ("dilúvios de sangue") que flagelaram o mundo nesse período, isto é, os grandes massacres do século, encabeçando a lista as duas Guerras Mundiais, a Rússia/URSS e a China. White lista as cifras apresentadas por vários autores, faz algumas médias, comenta a confiabilidade das fontes usadas. Os números são invariavelmente chocantes, mas as discrepâncias também. As mortes atribuídas a Stálin, por exemplo, variam na ordem de dezenas de milhões dependendo do autor. Mas mesmo o “Grande Guia dos Povos” perde de longe do “Grande Timoneiro”: o “Grande Salto para a Frente” de Mao Tsé-Tung , uma tentativa de reestruturação da economia chinesa na década de 50, teria mandado pelo menos 40 milhões de pessoas para um encontro direto com seus ancestrais. Não foi um efeito premeditado, é bom que se diga, mas demonstra uma escala de catástrofe e horror que só um regime absolutamente desumano e insensível em suas políticas poderia produzir.

Inteligência e sabedoria não são a mesma coisa, é o que nos lembram várias tradições espirituais. O mero progresso técnico não nos torna necessariamente melhores moral ou socialmente, ao mesmo tempo em que aumenta cada vez mais o nosso poder sobre o mundo. Basta uma olhada superficial pelos números do século mais dinâmico da História para ver o que esse divórcio significa na prática.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Solidão

Não aprecio Fernando Pessoa. É um daqueles autores que contam com uma legião de admiradores devotos cujo sucesso me é quase incompreensível. O melhor que vi dele foram traduções excelentes dos poemas de Edgar Allan Poe. No entanto, por um feliz acaso topei com estes versos seus, e que bem traduzem o estado de espírito desta noite chuvosa. É o dom dos poetas autênticos exprimir aquilo que nós outros sentimos engasgar. Continuo não gostando dele. Mas hoje esse eclético versejador português ganhou meu respeito.

Solidão


Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração
Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.


Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim.

terça-feira, outubro 19, 2004

De volta aos anos 50

Consegui encontrar na Internet, na página de um curso de Letras (!) da Universidade da Pensilvânia, alguns capítulos de The Organization Man, de William Whyte (1956). Trata-se de uma das grandes críticas sociais ao estilo de vida americano nos anos 50, mais especificamente ao domínio psicológico exercido pelo trabalho nas grandes corporações. O “homem organizacional” de que fala o título, embora continue reafirmando os valores da velha ética protestante de individualismo e trabalho duro, na verdade faz o oposto. Apesar da “mitologia”, tão presente no discurso americano, do self-made man, o homem organizacional só se pauta pelo que é aceito e instituído. É o grupo, e não o indivíduo, o seu referencial de verdade. “Transformar” a sociedade é algo que está completamente fora do seu horizonte, o que ele faz é adaptar-se ao máximo a ela: fazer um curso profissionalizante, se possível técnico; arranjar um emprego em uma empresa que lhe garanta estabilidade e segurança; casar, ter filhos e morar em uma casa de subúrbio com um ou dois carros na garagem. Acrescente-se a isso um hobby qualquer e um churrasco com os amigos uma vez por semana. Pronto, eis a vida perfeita, sem contratempos, insegurança ou mudanças bruscas. Por volta dos 30 anos, o homem organizacional provavelmente terá chegado ao ponto de sua vida onde permanecerá até o último dos seus dias. Nada poderá interferir nesse pequeno paraíso suburbano de previsibilidade.
A crítica não veio do nada. Os Fifties americanos são largamente conhecidos como uma época de complacência e conformismo, na qual a prosperidade (“afluência”, diria J. K. Galbraith), pelo lado positivo, e o macartismo e o puritanismo, pelo negativo, garantiam que a grande maioria “entrasse na linha”. É a época em que um seriado em que não acontece absolutamente nada de importante, como Papai Sabe Tudo, é um sucesso estrondoso de audiência. Carrões cromados, pleno emprego, filmes românticos em que os protagonistas, mesmo casados, dormiam em camas separadas, davam o tom dos ideais de uma classe média próspera e complacente. Havia problemas, é claro, como o comunismo e “a Bomba”, mas era perfeitamente possível ignorar esses incômodos. Se é verdade que as crianças eram obrigadas a exercícios rotineiros de proteção em caso de bombardeio – enfiar-se sob as carteiras contra uma bomba atômica! --, também é que havia
Truman, Ike, Dulles e McCarthy para dar conta dos inimigos. A sociedade mais próspera da Terra podia se dar ao luxo de olhar para si mesma com lentes róseas e lisonjeiras.
Nem todos compartilhavam desse enlevo ególatra, no entanto. Enquanto a classe média branca em ascensão migrava para os subúrbios, deixava as cidades depauperadas para negros, hispânicos e pobres em geral se amontoarem em seus guetos. Nos estados do sul, apesar da atuação de algumas organizações e de decisões da Suprema Corte, a
segregação mais atroz ainda era a regra, defendida até como uma necessidade do estilo de vida sulista. Nas universidade, centro de saber e reflexão, estudantes evitavam até mesmo assinar petições por cafeteiras no campus para não se verem associados a colegas de opiniões suspeitas, alguns milhares de outras perdiam empregos e eram incluídas em listas negras. Questionar o sistema, como diríamos hoje, era um risco. Pouco importavam as suas verdadeiras convicções políticas, o essencial era o que os outros achariam de você. Era mais seguro não chamar atenção.
Felizmente, esses aspectos negativos não passaram em branco. Por mais espraiado que fosse, o homem organizacional não resumia o espírito de toda a nação. Não era preciso ser vítima direta dessa ordem de coisas para se ter uma visão lúcida de que as coisas não iam tão bem quanto pregava a mensagem do Papai sabe tudo. Nem todos os problemas eram externos, obra de seres sombrios incapazes de compreender a grandeza da América. É nesse contexto que surgem os primeiros livros de cabeceira dos jovens que abalarão o país na década seguinte: Growing Up Absurd, de Paul Goodman; The Power Elite, do sociólogo bad boy
C. Wright Mills e... The Organization Man. Obras que começaram a mostrar aos americanos que sua sociedade não era tão democrática, livre ou modelar quanto muitos deles gostavam de alardear. Esse surto de auto-crítica teria grandes conseqüências em pouco tempo. Mas esse é um assunto para um post futuro.