sábado, fevereiro 23, 2008

"O hip-hop faz mal"



28/01/2008

Por Fábio Marton

Em Losing the Race: Self-Sabotage in Black America (“Perdendo a Corrida/Raça: Auto-Sabotagem na América Negra”), o lingüista John McWorther afirma que o pior problema dos negros é a própria vitimização. Alguns o chamaram de “traidor da própria raça” e “negro de aluguel”. Enquanto outros o abordaram na rua para dizer como o livro mudou a vida delas. A seguir, McWorther fala com a Super:

O que é a dupla consciência negra?
O que eu tento dizer com essa expressão é que, mesmo que ainda haja racismo na sociedade, o maior problema para a comunidade negra não é o que os brancos pensam dela. O problema é cultural, é interno, o modo como os negros tratam a si próprios. Acho que as pessoas precisam ajudar a si próprias e umas às outras. É assim que as sociedades evoluem. Os negros, na verdade, sabem disso, dizem isso para si o tempo inteiro. Mas, em público, quando há um branco por perto, passam a se fazer de vítimas, a falar sobre como a sociedade tem uma dívida, como o racismo é sutil, mas ainda está lá. É uma dupla consciência: você é uma vítima em público e um vitorioso em casa. E isso cria uma grande confusão na forma como o racismo é discutido nos EUA.

Você recentemente escreveu um artigo chamado Pare a Ku Klux Klan Negra. Existe um equivalente negro à KKK?
Claro que foi um recurso retórico, que eu tomei emprestado do [comentarista negro de esportes] Jason Whitlock. O caso é que, quando uma pessoa negra é morta, na maioria das vezes é por outra pessoa negra, envolvida com gangues e drogas. Esses assassinos são a KKK negra. Se um sujeito branco de uma escola do Sul tem um surto e sai matando negros, o crime é manchete em todos os jornais. Mas negros são alvejados por negros o tempo inteiro e o fato é considerado, banal, assunto sem importância. Os negros dão muita importância a quando um branco mata um negro, mas não a quando um negro faz a mesma coisa. Isso não está certo.

Como você vê a influência dos negros americanos sobre os negros do mundo?
Quer saber? Eu me preocupo bastante com a influência dos negros americanos sobre outros negros. Estou falando é do hip-hop e da pose de gangsta. Quando vejo os turcos imitando essa pose na Alemanha, os negros das favelas do Brasil, acho muito perigoso. A mesma coisa acontece na África, onde a pobreza é extrema e existe uma enorme necessidade de recursos humanos, mas as músicas dos jovens ficam falando em balançar o traseiro, como as americanas. Isso decididamente não é a melhor coisa no mundo.


Desde a era do jazz, a música negra americana é referência mundial. Como ela está agora?
Nada bem. Mesmo que boa parte seja realmente boa música, a fúria, o discurso do ódio é teatral, é uma pose. Ser furioso é fácil, ser furioso é legal, ser furioso é algo para mostrar. Mas muito do hip-hop é fachada, é ser furioso por ser furioso. Usar roupas largas, mostrar o dedo médio para os adultos, xingar um monte, tratar mal as mulheres e falar o tempo todo o quanto você é o máximo. E qual é a mensagem? A mensagem é que todos os negros devem se comportar assim até que a haja igualdade racial. E, quando você se enjoa da pose, o que você fez para ajudar alguém e o que você fez para ajudar a si próprio? Um garoto branco pode gostar de hip-hop, mas no final ele sabe que vai ter de batalhar e estudar muito para conseguir conquistar uma vaga na universidade.

Como foi ser jovem durante a chamada “era de ouro do hip-hop”?
Eu não morava em Nova York e, pra dizer a verdade, isso não era tão influente assim. Minha mãe e meu pai tinham diploma universitário, então não sou o caso clássico de uma família pobre lutando para levar a primeira geração à universidade. Quando eu era jovem, já disseram que era “muito branco”, porque não falo como os negros do movimento. Hoje, sou freqüentemente ofendido por negros, principalmente porque vivo de escrever coisas de que as pessoas nem sempre vão gostar.

Você já foi vítima de racismo?
Não diria que fui vítima, mas houve vezes em que a raça teve parte em tornar certos eventos negativos. Certa vez não consegui um emprego e, meses depois, fui descobrir que era por causa de minha cor. Coisas assim. O racismo fez parte de minha vida e geralmente de uma forma dolorosa. Mas, pra dizer a verdade, hoje em dia ele é muito mais indireto que costumava ser. E esse é o ponto mais importante do meu livro Losing the Race: o racismo não foi uma parte suficiente da minha vida pra dizer que é particularmente importante.

É possível classificar com exatidão quem é branco e quem é negro?
Essa é uma questão muito interessante. Existe essa forma brasileira e latino-americana de identificar as pessoas. Você pode estar entre todos os graus entre “branco” e “preto”, pode ser “meio preto, mas não preto” e identificado assim. Aqui, com a One Drop Rule [regra segundo a qual quem tem uma pequena descendência negra é negro], quando você tem um pai branco e uma mãe negra, tem em si a “negritude”, e é negro, ponto. Mas existe um movimento birracial que, nos últimos 10 anos, tenta incluir a opção mulato no censo. É uma coisa absolutamente nova, impossível de pensar nos anos 70 e 80 por exemplo.Mas não é um caso de melhor ou pior.

Como você define o fato de ser negro? É viver uma situação especial?
Minha definição não é tão profunda quando a de várias pessoas seria: existe uma subcultura negra na América. Existe um jeito de falar – ainda que eu não fale assim –, existe uma expressão corporal diferente, existe uma culinária – e nessa eu definitivamente estou dentro –, existe a música, antes do hip-hop, o blues, o jazz, o soul e o funk. Você é criado no meio disso, e você se identifica com essas coisas. Para muitos, porém, ser negro é também ser vítima. Para mim, não. Eu não vou sair por aí remoendo uma concepção frágil de mim mesmo. Eu sou negro, meus pais são negros, eu tenho a cultura negra. Mas me defino, primeiro, como ser humano, segundo, e principalmente, americano, e só depois como negro.


terça-feira, fevereiro 19, 2008

Amém

Da BBC Brasil

Fidel anuncia renúncia em Cuba
Fidel estava com saúde fragilizada
Fidel: 'Desejo apenas combater como soldado das idéias'
O líder cubano Fidel Castro anunciou nesta terça-feira que não voltará a governar o país, lançando dúvidas sobre o futuro do regime que se prepara para escolher um sucessor dentro de apenas uma semana.

Em uma mensagem publicada pelo jornal oficial do Partido Comunista Cubano, o Granma, Fidel disse que não aceitará o cargo de Presidente do Conselho de Estado, para o qual vinha sendo eleito e ratificado desde 1976.

“Trairia minha consciência ocupar uma responsabilidade que requer mobilidade e entrega total que não estou em condições físicas de oferecer. Digo-o sem dramatismo”, escreveu Fidel, afastado do cargo há um ano e meio para tratamento de saúde.

“A meus queridos compatriotas, que me deram a imensa honra de me eleger recentemente como membro do Parlamento, em cujo seio devem ser adotados acordos importantes para nossa Revolução, comunico que não aspirarei e nem aceitarei – repito – não aspirarei e nem aceitarei o cargo de Presidente do Conselho de Estado e Comandante-chefe.”

"Não me despeço de vocês, desejo apenas combater como soldado das idéias".

Fidel disse que continuará escrevendo no Granma, mas sua coluna "Reflexões do comandante-chefe" passará a se chamar "Reflexões do companheiro Fidel".

A nova Assembléia Nacional foi eleita no final de janeiro, e deve escolher no próximo dia 24 o novo Conselho de Estado e o Presidente do país.

domingo, fevereiro 10, 2008

E o Demolidor faz escola...

ONG ensina cegos a se orientar como morcegos

A ONG escocesa Visibility está fazendo atualmente uma experiência que consiste em ensinar crianças cegas a se orientarem com o eco dos sons emitidos por elas, como os morcegos e golfinhos.

A organização, que trabalha com pessoas cegas, ensina as crianças a construírem mentalmente imagens detalhadas do ambiente através da interpretação do eco resultante de um ruído produzido com a língua.

Segundo o jornal dominical The Sunday Times, há cada vez mais provas de que cegos são capazes de treinar o sentido da audição, que é mais agudo que nas outras pessoas, para interpretar o eco do som.

Eles poderiam criar imagens mentais dos objetos que a cercam, inclusive a distância, o tamanho e a densidade.

Nos Estados Unidos, onde o método conhecido como ecolocalização foi aplicado pela primeira vez, alguns cegos aprenderam a distinguir se estão diante de pessoas, árvores, edifícios ou algum carro estacionado pelo timbre do eco.

As crianças escocesas aprendem a fazer o estalo com a língua e inclusive a utilizar a técnica em áreas urbanas muito barulhentas, como na rua e no metrô.

O oftalmologista Gordon Dutton, do Hospital Real para Crianças Doentes de Glasgow (Escócia), é um grande defensor desse método de ensino e quer que a técnica seja difundida por todo o país.

"É impressionante. Está perfeitamente provado que funciona", afirma Dutton, segundo quem, "apesar do ceticismo de alguns, os benefícios são inegáveis".

O projeto escocês foi iniciado após a visita no ano passado de Dan Kish, um cego de 41 anos da Califórnia (EUA) que foi pioneiro dessa técnica.

Kish, que dirige a organização sem fins lucrativos World Access for the Blind (Acesso ao Mundo para os Cegos), apresentou o método a familiares de pessoas cegas no Reino Unido.

O americano domina de tal forma a técnica que consegue pedalar uma bicicleta pelas ruas e distinguir entre vários tipos de árvores frutíferas apenas com o estalo da língua.

EFE

sábado, fevereiro 09, 2008

Espera

A poesia tem muitas utilidades, ou, talvez, sejam apenas umas poucas, mas cruciais. Seja como for, uma das mais úteis é a catarse. Pôr para fora o que nos corre alma adentro. Fazer nossas as palavras de outrem e por elas dizermos tudo que precisamos desabafar... ainda que apenas para nós próprios. É uma terapia muito particular, mas nem por isso menos eficaz e regeneradora. Num desses momentos, por vezes tão triviais, descobri os versos abaixo e fi-los "meus". E bem pode ser que um de vocês possa fazer o mesmo.



CANÇÃO ÓBVIA

Escolhi a sombra desta árvore para
repousar do muito que farei,
enquanto esperarei por ti.
Quem espera na pura espera
vive um tempo de espera vã.
Por isto, enquanto te espero
trabalharei os campos e
conversarei com os homens
Suarei meu corpo, que o sol queimará;
minhas mãos ficarão calejadas;
meus pés aprenderão o mistério dos caminhos;
meus ouvidos ouvirão mais,
meus olhos verão o que antes não viam,
enquanto esperarei por ti.
Não te esperarei na pura espera
porque o meu tempo de espera é um
tempo de quefazer.
Desconfiarei daqueles que virão dizer-me,:
em voz baixa e precavidos:
É perigoso agir
É perigoso falar
É perigoso andar
É perigoso, esperar, na forma em que esperas,
porque esses recusam a alegria de tua chegada.
Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me,
com palavras fáceis, que já chegaste,
porque esses, ao anunciar-te ingenuamente ,
antes te denunciam.
Estarei preparando a tua chegada
como o jardineiro prepara o jardim
para a rosa que se abrirá na primavera.

Paulo Freire

Genève, Março 1971.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Foi ele!



Finalmente descobri o autor daquela jóia do clichê mundial: Era uma noite escura e tempestuosa...

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E para não pertder o mote:

TREVAS

Eu tive um sonho que não era em todo um sonho

O sol esplêndido extinguira-se, e as estrelas

Vagueavam escuras pelo espaço eterno,

Sem raios nem roteiro, e a enregelada terra

Girava cega e negrejante no ar sem lua;

Veio e foi-se a manhã - Veio e não trouxe o dia;

E os homens esqueceram as paixões, no horror

Dessa desolação; e os corações esfriaram

Numa prece egoísta que implorava luz:

E eles viviam ao redor do fogo; e os tronos,

Os palácios dos reis coroados, as cabanas,

As moradas, enfim, do gênero que fosse,

Em chamas davam luz; As cidades consumiam-se

E os homens juntavam-se junto às casas ígneas

Para ainda uma vez olhar o rosto um do outro;

Felizes enquanto residiam bem à vista

Dos vulcões e de sua tocha montanhosa;

Expectativa apavorada era a do mundo;

Queimavam-se as florestas - mas de hora em hora

Tombavam, desfaziam-se - e, estralando, os troncos

Findavam num estrondo - e tudo era negror.

À luz desesperante a fronte dos humanos

Tinha um aspecto não terreno, se espasmódicos

Neles batiam os clarões; alguns, por terra,

Escondiam chorando os olhos; apoiavam

Outros o queixo às mãos fechadas, e sorriam;

Muitos corriam para cá e para lá,

Alimentando a pira, e a vista levantavam

Com doida inquietação para o trevoso céu,

A mortalha de um mundo extinto; e então de novo

Com maldições olhavam para a poeira, e uivavam,

Rangendo os dentes; e aves bravas davam gritos

E cheias de terror voejavam junto ao solo,

Batendo asas inúteis; as mais rudes feras

Chagavam mansas e a tremer; rojavam víboras,

E entrelaçavam-se por entre a multidão,

Silvando, mas sem presas - e eram devoradas.

E fartava-se a Guerra que cessara um tempo,

E qualquer refeição comprava-se com sangue;

E cada um sentava-se isolado e torvo,

Empanturrando-se no escuro; o amor findara;

A terra era uma idéia só - e era a de morte

Imediata e inglória; e se cevava o mal

Da fome em todas as entranhas; e morriam

Os homens, insepultos sua carne e ossos;

Os magros pelos magros eram devorados,

Os cães salteavam seus donos, exceto um,

Que se mantinha fiel a um corpo, e conservava

Em guarda as bestas e aves e famintos homens,

Até a fome os levar, ou os que caíam mortos

Atraírem seus dentes; ele não comia,

Mas com um gemido comovente e longo, e um grito

Rápido e desolado, e relambendo a mão

Que já não o agradava em paga - ele morreu.

Finou-se a multidão de fome, aos poucos; dois,

Dois inimigos que vieram a encontrar-se

Junto às brasas agonizantes de um altar

Onde se haviam empilhado coisas santas

Para um uso profano; eles a resolveram

E trêmulos rasparam, com as mãos esqueléticas,

As débeis cinzas, e com um débil assoprar

E para viver um nada, ergueram uma chama

Que não passava de arremedo; então alçaram

Os olhos quando ela se fez mais viva, e espiaram

O rosto um do outro - ao ver gritaram e morreram

- Morreram de sua própria e mútua hediondez,

- Sem um reconhecer o outro em cuja fronte

Grafara o nome “Diabo”. O mundo se esvaziara,

O populoso e forte era uma informe massa,

Sem estações nem árvore, erva, homem, vida,

Massa informe de morte - um caos de argila dura.

Pararam lagos, rios, oceanos: nada

Mexia em suas profundezas silenciosas;

Sem marujos, no mar as naus apodreciam,

Caindo os mastros aos pedaços; e, ao caírem,

Dormiam nos abismos sem fazer mareta,

mortas as ondas, e as marés na sepultura,

Que já findara sua lua senhoril.

Os ventos feneceram no ar inerte, e as nuvens

Tiveram fim; a escuridão não precisava

De seu auxílio - as trevas eram o Universo.

Lord Byron




quarta-feira, fevereiro 06, 2008

domingo, fevereiro 03, 2008

Será preciso um cânone literário?

Prospect Magazine
06/12/2007


Jonathan Sacks está certo quando diz que precisamos de uma cultura comum, mas errado em pensar que deve ser baseada em um cânone. Forçar os jovens a ler a Bíblia não vai promover um sentido de comunidade. As referências compartilhadas devem evoluir mais organicamente
Richard Jenkyns*

O rabino máximo dos EUA, Jonathan Sacks, recentemente escreveu: "A existência de um cânone é essencial a uma cultura. Significa que as pessoas compartilham um conjunto de referências e ressonâncias, um vocabulário público de narrativas e discursos". Esta herança compartilhada, segundo ele, está sendo destruída pelo multiculturalismo e pela tecnologia, televisão via satélite e a Internet em particular. Mas o que é um cânone? Precisamos de um? Estaremos sofrendo de "ansiedade canônica"? Por quê?

A idéia de um cânone tem uma origem religiosa. No início, a igreja teve que decidir quais dos seus textos eram escrituras sagradas e quais não eram. A decisão era sim ou não: o livro ou estava dentro ou estava fora.

Essa noção religiosa logo se misturou com outra tirada da cultura secular: a idéia do gênio. A noção que grandes poetas e músicos são homens destacados é muito antiga. A princípio, pensamos que pessoas especiais recebiam inspiração de fora delas, de um deus ou musa. Mais tarde, o gênio passou a ser visto como uma qualidade inata do artista.

Apesar de todo seu apelo emocional, essa idéia parece improvável à luz fria da razão: parece mais plausível supor um espectro mais ou menos contínuo de habilidade criativa do que uma divisão profunda entre o gênio e o resto. Mas, se é assim, podemos nos perguntar por que somos tão atraídos para as noções de gênio e de cânone. A resposta talvez esteja em nossa necessidade de heróis.

Aqui entra em cena a situação particular na qual nos encontramos no início do século 21. Vivemos em um mundo sem heróis. A única exceção é Nelson Mandela, e sua canonização é testemunha do vazio que ajuda a preencher. A metade do último século teve homens como Churchill, Mao e De Gaulle que, de um jeito ou de outro, foram grandes figuras. Duas décadas atrás havia líderes como Thatcher, Gorbatchev e novamente Mandela. Hoje, por outro lado, parece que nenhuma das quase 200 nações do mundo é liderada por uma pessoa de qualidade verdadeiramente excepcional. Talvez tenhamos sorte de viver em uma era que pede tecnocratas em vez de titãs, mas algo se perdeu. Nossa era tampouco tem heróis culturais vivos, e não deve ser surpresa se isso levar mais comentadores a colocarem mais peso em nossa herança do passado -ou seja, no cânone.

Outra razão para a ansiedade de cânone talvez seja uma sensação que a elite política e a mídia perderam o interesse ou a paciência. Aqui a atitude oficial é curiosamente dúbia. Por um lado, todo mundo elogia o valor das artes: talvez surpreendentemente não seja mais ouvida a voz vigorosa e sem papas na língua que declara que gastar em cultura é desperdício de dinheiro honesto.

Por outro lado, o governo defende as artes apenas em termos de vantagem econômica e de utilidade social estreitamente concebidas. A beleza e a glória não são termos do vocabulário político. E não apenas nossos políticos relutam em defender o valor das artes por si mesmas, mas parecem evitar ativamente mostrar um interesse nelas.

Sacks está certo em dizer que uma sociedade precisa de referências compartilhadas e ressonâncias, mas não há razão inerente para essas serem da alta cultura. As referências cruzadas precisam evoluir naturalmente, acima de tudo. A maior parte delas deriva da cultura popular, e muitas são como piadas da família. A televisão teve um enorme poder unificador, apesar desse poder agora declinar com a proliferação de canais e novas mídias.

Para compreender como um cânone é formado e como pode ser socialmente útil, podemos olhar para outro tipo de canonização, do indivíduo. Os santos mais antigos e mais duráveis não foram criados pelo papa: de alguma forma foram canonizados por um processo compartilhado entre a igreja e o povo. Similarmente, foi uma colaboração obscura entre os intelectuais e o povo que canonizou os grandes escritores.

Considere a mais impressionante canonização literária de nossos tempos. Jane Austen sempre foi estimada, mas, nos últimos 15 anos, ela se tornou a romancista inglesa, uma parte inescapável da consciência pública, mais universalmente presente do que qualquer outro autor além de Shakespeare. Em amplo senso os acadêmicos e outros admiram as mesmas coisas em Austen: tramas bem feitas, retrato sensível dos personagens e estudo agudo da interação social. É uma canonização genuinamente popular.

Isso significa que não podemos fazer nada sobre nossa condição cultural? Devemos deixar as coisas tomarem seu próprio rumo? Não inteiramente. Há muito que podemos fazer sobre a forma com a qual ensinamos literatura, apesar de ser preciso um equilíbrio entre atrair os jovens pelas obras mais naturalmente agradáveis a eles e afastá-los com trabalhos que podem ser menos atraentes. Devemos ensinar o desenvolvimento de um gosto pessoal: o risco em destacar o cânone demais é que pode nos deixar sempre no alto do Monte Parnaso, exigindo que gostemos daquilo que nos disseram para gostar. Entretanto, sem uma predileção pessoal, não há verdadeiro cultivo.

A classe política deve proclamar o valor da cultura por ela mesma. Os que têm entusiasmos culturais devem tirá-los do armário, e o resto, pelo menos fingir. Isso seria a coisa certa a fazer e duvido que votos fossem perdidos. As pessoas, no final, não querem que seus líderes sejam exatamente como elas e, independentemente do que dizem, há bastante evidência que o público ainda gosta de um cavalheiro.

Todos nós, inclusive os políticos, devemos parar de procurar uma cultura de "maior denominador comum" e, em vez disso, afirmar que nossa cultura tem base em uma história distinta: do cristianismo e da Bíblia, da Antigüidade greco-romana, Renascença, Reforma e Iluminismo.

O rabino superior está certo em dizer que o multiculturalismo foi um desastre. Por um lado porque de fato é monocultural: é uma demanda que todos os países devem ser como os EUA (apesar de sem a devoção dos EUA à nação e à constituição). Por outro, porque inibe a expressão robusta e confiante da cultura da maioria, apesar dessa robustez e confiança darem melhores condições para que culturas de minoria também floresçam.

*Richard Jenkyns é professor da Universidade de Oxford.

Tradução: Deborah Weinberg

Discutindo as cotas... indianas

Le Monde
26/01/2008

Índia: balanço crítico de 90 anos de discriminação positiva
Frédéric Bobin

No momento em que o conceito de "diversidade" encontra um eco crescente na França (inclusive junto ao presidente Nicolas Sarkozy, em visita a Nova Déli nos dias 25 e 26 de janeiro), no rastro de outras fórmulas "multiculturais" já exploradas em outros países ocidentais, a experiência única da Índia em termos de discriminação positiva é rica em ensinamentos. Pois a Índia é pioneira nesse campo. Não somente seu laboratório é o mais antigo do mundo, como principalmente é o mais radical.

País de fraturas -religiosas e sociais- vertiginosas, a Índia moderna, tanto colonial como pós-colonial, foi condenada a pensar muito cedo na "diversidade" e na "desigualdade" de seus componentes, enquanto se esforçava para articulá-los com a unidade do todo. O exercício influenciou a arte de governar em gerações inteiras de dirigentes. Se a hipoteca da divisão religiosa foi (parcialmente) levantada com a divisão do país em 1947, que viu nascer um Paquistão rival ao amputá-lo de sua herança muçulmana, depois disso a Índia independente não deixou de ser irritada, ou mesmo destroçada, por outro tipo de heterogeneidade: a casta, fonte de desigualdades sociais. Os reformadores indianos foram tão longe na política das cotas alocadas aos grupos menos favorecidos para arrancá-los de sua desvantagem que o caso acabou se tornando uma causa de ansiedade política. A intervalos regulares, partidários e adversários da "castificação" da política se confrontam em um grande clamor retórico, às vezes acompanhado de tumultos de rua.

Movimento "anticotas"
Essa ação afirmativa à moda indiana começou no início do século 20 por iniciativa dos soberanos de alguns estados principescos (Kolhapur, Mysore) no sul do império. A administração colonial britânica em seguida a sistematizou em um nível mais global, cuidando particularmente do destino dos intocáveis, que o jargão administrativo chama de "scheduled chastes" (castas catalogadas).
CRONOLOGIA
1919 A administração colonial britânica reserva para os intocáveis cotas de lugares nas assembléias locais.
1947 Independência da Índia.
1950 Adoção da Constituição que reserva aos intocáveis e às tribos respectivamente 15% e 7,5% dos cargos na administração, nas assembléias nacional e locais e na educação.
1963 Julgamento da Suprema Corte fixa em 50% o limite de cotas reservadas às castas inferiores.
1990 O primeiro-ministro V.P. Singh decide ampliar para os shudras, castas intermediárias, o benefício da discriminação positiva; 27% dos empregos públicos são reservados a eles.


Logo após a independência de 1947, o Partido do Congresso, de Gandhi e de Nehru, adota uma atitude ambígua em relação a essas políticas de promoção baseadas nas castas. Sua ideologia progressista o leva a inscrever na Constituição de 1950 a necessidade de "promover" os interesses de "partes mais fracas da população". Em virtude desse princípio, os intocáveis e as tribos (comunidades aborígines das montanhas) se beneficiam de cotas respectivamente de 15% e 7,5% em três domínios precisos: empregos na administração, na representação parlamentar e na educação.

Mas os dirigentes do Congresso são reticentes a ir mais longe. Primeiro, porque seu nacionalismo é refratário à noção de casta, vista como um fator de divisão do país. Depois porque essa elite política, originária principalmente das camadas brâmanes, trai um conservadorismo social acentuado. Assim, os diferentes governos dirigidos pelo Congresso rejeitam as recomendações de duas comissões (Kalelkar em 1953 e Mandal em 1980) que sugerem ampliar o benefício das cotas às castas intermediárias, correspondentes à ordem "shudra" na hierarquia socio-religiosa hindu e que o jargão administrativo chama de "other backward classes" (OBC, outras classes atrasadas).

É um combate de retaguarda. Em 1990, o governo de V.P. Singh, originário da coalizão Janata Dal, tira do esquecimento o relatório da comissão Mandal e decide reservar 27% dos cargos da administração para as OBC. As paixões se inflamam e os estudantes brâmanes, inquietos por suas perspectivas profissionais, descem às ruas.

Mas o avanço das OBC parece inevitável. A tal ponto que o Partido do Congresso, que voltou ao poder em 2004, pretende agora aprofundar a experiência, concedendo cotas às OBC em um novo campo -o ensino superior-, ou seja, abrindo essa política de discriminação positiva às minorias religiosas (muçulmanos, cristãos). Cresce igualmente a pressão para que o setor privado, e não mais somente o setor público, seja um campo de aplicação das cotas. Em reação, um movimento "anticotas" se agita e se alarma ruidosamente: a desvalorização do mérito individual, segundo seus críticos, vai entravar a emergência da Índia no cenário global. O caso torna-se novamente uma causa de ansiedade.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Sinal dos tempos?

É de conhecimento geral o quanto o conservadorismo de determinadas correntes evangélicas é importante no jogo político americano. Pelo menos em décadas recentes, ainda não ouvi falar de nenhum aspecto importante desses grupos sulistas dominados por brancos, uma vez que conseguiram se opor até a causas eticamente incontestáveis como a dos direitos civis dos negros. Mas talvez não se deva esperar demais de fundamentalistas, sua leitura do mundo sempre será feita em termos diferentes dos das demais pessoas, mais abertas à influência do meio secular.

Ao que parece, até eles têm progredido. Mas será essa cisão um sinal de uma tendência geral ou uma dissidência no sentido mais radical, isto é, um grupo que será logo isolado e excluído da comunidade maior? O tempo dirá.

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Le Monde
01/02/2008

Os batistas do Sul conservador estão ameaçados por uma cisão liberal
Sylvain Cypel
Do Le Monde
Enviada especial
Em Waco, Dallas (Texas, EUA)


Mary Darden está excitada: "Estamos vivenciando uma reviravolta considerável". Como clérigo de uma igreja batista em Waco (Texas), ela se preparava, na quarta-feira, 30 de janeiro, para tomar um avião rumo a Atlanta (Geórgia) onde assistiria, à noite, à convenção de uma nova organização religiosa nos Estados Unidos, a New Baptist Covenant (Nova Aliança Batista, NBC). O motivo da sua emoção: o medo de se apresentar pela primeira vez diante de uma platéia. Mary Darden estava escalada para pronunciar um discurso perante uma comissão. A razão do seu entusiasmo: "Estamos encerrando um período de longos anos sob a dominação de pastores iluminados de extrema-direita. Agora, estamos vendo uma luz no fim do túnel. A prova disso é que finalmente batistas brancos e negros estão se associando".

Com efeito, o apelo que foi lançado pela NBC está muito distante das preocupações primeiras da poderosa e ultraconservadora Southern Baptist Convention (Associação dos Batistas do Sul), a maior organização de protestantes nos Estados Unidos. Sob a presidência de George W. Bush, que ajudou a levar ao poder, ela constituiu a voz dominante dos evangélicos americanos. Os Southern Baptists menosprezam o estatuto das mulheres, execram o divórcio, o aborto, os homossexuais. O seu mundo foi criado em sete dias.

A New Baptist Covenant, por sua vez, afirma por meio da sua convocação o seu desejo de "promover a paz com justiça, alimentar os esfomeados, ajudar os que precisam de roupas e calçados, fornecer abrigo aos sem-teto, auxiliar doentes e marginais, acolher os estrangeiros em nossa comunidade, promover a liberdade religiosa e respeitar sua diversidade".

O objetivo declarado é reunir os batistas, que se encontram divididos há um século e meio nos Estados Unidos. Mas a ambição implícita é levar a melhor em relação aos batistas do Sul que, ao serem convidados a aderir à NBC, não só recusaram o convite como promoveram uma campanha contra este concorrente "liberal-progressista", termo que utilizam como insulto.

Jimmy Carter pronunciou o discurso de abertura. Bill Clinton e Al Gore estavam presentes. "Dois antigos presidentes, um ex-vice-presidente e dois Prêmios Nobel reunidos em três batistas", comenta com orgulho Jo Haag, responsável pela Convenção Geral dos Batistas do Texas (BGCT), associação que separou os Batistas do Sul. Junto com William Underwood, antigo presidente da grande universidade batista Baylor, de Waco, Jimmy Carter foi o principal mestre de obras do projeto.

Tradição "branca"
Criado em 10 de abril de 2006, o projeto foi atraindo uma atenção crescente. Mais de 20 mil delegados dos 50 Estados americanos foram a Atlanta. Os senadores republicanos Lindsey Graham (Carolina do Sul) e Charles Grassley (Iowa) participaram da convenção, assim como o autor de best-sellers John Grisham. Entre os convidados de honra estrangeiros estava presente Hanna Massad, a única pastora batista de Gaza. Também estavam lá, evidentemente, William Shaw e T. de Witt Smith, os presidentes das duas grandes associações de batistas negros - os "Nacionais" e os "Progressistas".

"A cisão histórica entre os batistas do Sul e do Norte dizia respeito à questão da escravidão", explica Suzi Paynter, diretora para assuntos políticos e éticos da BGCT. Os primeiros eram a favor, os segundos contra. Desde então, esta tendência perpetuou uma tradição não apenas "branca" como também portadora de uma visão segundo a qual toda evolução é percebida como uma ofensa a Deus. Não foi por acaso, diz Suzi Paynter, se a NBC foi constituída por iniciativa de associações negras: "O pequeno precisava do grande. O processo foi muito demorado, mas agora, a junção está completa".

Uma junção política? Ela garante que é o contrário: trata-se de "romper com a prática" desses batistas "dotados de uma agenda política". A New Baptist Covenant quer "retornar ao ensinamento do Cristo: recusar a ordem das coisas quando esta é nociva para a humanidade". Resta que o ressurgimento de um batismo "dos depauperados e dos fracos", diz Jo Haag, não é fortuito.

Os batistas do Sul, de tendência fundamentalista, "associaram o seu destino aos setores mais conservadores do país. A guerra no Iraque, a recessão, a crise social e o declínio da administração Bush resultaram no seu próprio declínio", acrescenta. "Os atentados de 11 de setembro tinham paralisado as pessoas e servido aos interesses dos milenaristas", acrescenta Suzi Paynter. "Hoje, nós voltamos a ser ouvidos".

O fato de a New Baptist Covenant realizar a sua primeira "grande missa" no momento em que se aproxima o pleito presidencial americano não é por acaso. Os batistas texanos confirmam a ligação entre os dois eventos: em Atlanta, as figuras de destaque - além de uma proporção muito grande dos participantes - são democratas. Na noite de segunda-feira, Mary Darden havia se recusado a assistir ao discurso do presidente Bush sobre o estado da União. "Eu não consigo mais agüentar este homem", diz. "Ele está deixando a América inteira envergonhada".

Tradução: Jean-Yves de Neufville