sábado, fevereiro 17, 2007

Planos momescos

Acabou. Dissertação entregue a quem de direito. E agora, com o que preencher as longas horas que ela consumia? Sensação deveras estranha essa, de "pós-estresse".

Bem, é Carnaval, época de porres homéricos, barulho, multidões suadas e fornicações dionisíacas. Muitos planos para o deste ano:

1 - Cartas de Iwo Jima
2 - A Rainha
3 - O Último Rei da Escócia
4 - Babel.

E isso porque Rocky Balboa eu vi ontem, quando não era oficialmente Carnaval.
E para não dizerem que me escondi no cinema, Poltergeist - A Study in Destructive Haunting, de Colin Wilson, para matar saudades das leituras normais.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Um braço de mulher

Rubem Braga


Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não podemos descer!". O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.

Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.

Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — "o senhor" — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.

Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.

A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.

O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.

Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.

E de repente me veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro - e de que eu podia morrer.

Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.

Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.

A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando 0 encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.

Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.

Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. "Ora, não senhor." Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho - que devia permanecer um estranho.

Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.


O texto acima foi publicado no livro “Os melhores contos – Rubem Braga”, seleção de Davi Arrigucci Jr., Global Editora – São Paulo, e selecionado por Ítalo Moriconi para compor o livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 169.


Extraído do site Releituras: http://www.releituras.com/rubembraga_menu.asp

sábado, fevereiro 03, 2007

Sina

Sim, eu sou um homem fatal (...). Inspirar paixões sem esperança é meu destino.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Depois

Dois anos... Não, não dois, mas três. Três anos. E agora que a tenho diante de mim, a sensação é de anticlímax. Talvez como o amante que, finda a euforia do primeiro momento, se vê ao lado de uma estranha que nada mais lhe diz. Uma indiferença esquisita, que ainda tem vestígios da forte emoção que a precedeu — como um cansaço. Sim, é essa a palavra: cansaço. Corpo e mente parecem dizer, “Chega!”, mesmo sabendo que isso ainda não é possível. Sinto-os esfriando, esvaziando-se de uma obsessão de semanas, até meses, querendo se convencer de que tudo acabou, que chegamos ao fim. Mas uma razão inabalável insiste que ainda não é a hora, não estamos no fim. Verdade que chegamos perto, que cruzamos um ponto sem retorno... Mas ainda há mais pela frente.

Olho-a, entre exausto e enternecido, quase surpreso por ela e por mim. Não é propriamente que ela tenha perdido o encanto, mas neste momento tudo que a sua lembrança me desperta é o vazio. Vejo-me querendo fugir para longe, para outras memórias, outros momentos. Não que isso realmente fosse me deixar mais feliz... Certas coisas, longe ou perto, continuam conosco, presas não se sabe por que grilhão. Parecem se entranhar em nossa alma por mais que tentemos nos afastar delas. Mas, mesmo que pudesse, eu não seria capaz de fugir. Simplesmente não encontro forças.

Por três anos ela obcecou meu pensamento. Em meus parcos planos de futuro, lá estava ela como uma sombra, primeiro como ambição e depois como uma sentença. E eis que agora ela me contempla, impassível, serena, como se nem tomasse conhecimento das incontáveis horas de frenesi que despertou. Como um ídolo acostumado à adoração, eis que parece esperar, ciumenta, que eu a busque e retome sem delongas, com a dedicação absoluta dos maníacos e a energia dos quase desesperados.

Dei-lhe o melhor de mim. E mesmo quando já não tinha o melhor, sacrifiquei-lhe de bom grado o que mais havia. Verdade que toda nossa longa convivência foi mais feita de arroubos, explosões, que da dedicação constante e diária mostrada por tantos outros. Não fui o mais fiel dos seguidores, nem o mais presente dos companheiros; mas, em minha inconstância, entreguei-me da forma que podia. Não é o que deveria importar? A perfeita entrega de um amor imperfeito, como deveriam ser todos os amores.

Mas estamos quase no fim de nossa longa dança... Eu exausto, é fato, mas ainda ciente de que a música não acabou. É preciso ir adiante, mesmo que cada próximo passo pareça carregado de angústia. Em frente, sempre em frente.

Olho para ela, e vejo parte de mim. Labores, aflições, questionamentos e inspiração distribuídos ao longo de duzentas e sessenta e cinco páginas. Minhas, todas elas. Cruas e carentes de refinamentos, eu sei, por mais que soe tentador dá-las por terminadas. E elas me fazem lembrar o quanto eu gostaria de saber que tudo já passou, que posso olhar para trás com a sóbria satisfação do dever cumprido.

Contudo, não posso. Não ainda.