sábado, novembro 20, 2004

Ágape

Depois de Beckett e seu niilismo, retrocedo na carreira dos séculos nos versos de um poema. E não é qualquer um. Não nasceu das tortuosas ligações de um poeta, nem da dor de um amante traído; não louva ideologia nem pátria; não canta os horrores da morte ou as maravilhas da natureza. Não tem sombras de tristeza nem laivos de monotonia. Gerações inúmeras nele encontraram bálsamo e advertência, e tragédia alguma suplantará a força de seus versos. Frustrações e revoltas empalidecem diante de sua força, e mais centenas de séculos passarão antes que estas linhas tenham esgotado a mensagem que guardam para cada afortunado que as leia “com olhos de ver”. Este poema é, como poucos, pura beleza, um raio de transcendência como o que um dia fulminou seu autor numa estrada para a Síria. Hoje eu o redescobri pela enésima vez, e foi como se fosse a primeira.

Fora com Beckett! É outra a voz que ecoará neste blog agora...

“Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e as dos anjos,
se eu não tivesse amor,
seria como um bronze que soa
ou como um címbalo que tine.
Ainda que eu tivesse o dom da profecia,
o conhecimento de todos os mistérios
e de toda ciência,
ainda que tivesse toda a fé,
a ponto de transportar montanhas,
se não tivesse a amor,
eu nada seria.
Ainda que eu distribuísse
todos os meus bens aos famintos,
ainda que entregasse
o meu corpo às chamas,
se não tivesse o amor,
isso nada me adiantaria.
O amor é paciente,
o amor é prestativo,
não é invejoso, não se ostenta,
não se incha de orgulho.
Nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita, não guarda rancor.
Não se alegra com a injustiça,
mas se regozija com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta.
O amor jamais passará.
Quanto às profecias, desaparecerão.
Quanto às línguas, cessarão.
Quanto à ciência, também desaparecerá.
Pois o nosso conhecimento é limitado,
E limitada é nossa profecia.
Mas, quando vier a perfeição,
O que é limitado desaparecerá.
Quando eu era criança,
falava como criança,
pensava como criança,
raciocinava como criança.
Depois que me tornei homem,
fiz desaparecer o que era próprio
da criança.
Agora vemos em espelho
e de maneira confusa,
mas, depois, veremos face a face.
Agora o meu conhecimento é limitado,
mas, depois, conhecerei como sou conhecido.
Agora, portanto, permanecem fé,
esperança, amor,
estas três coisas.
A maior delas, porém, é o amor.”

(I Coríntios, 13)


Depois do dilúvio, um novo dia.

Um comentário:

Anônimo disse...

Quem, quem, quem? Pergunta que ecoa diante de tua profusão de palavras a chamar, a chamar ao tema, qual, qual, qual?
E eis que vejo o lindo poema, que clama pelo amor...