sábado, novembro 26, 2005

Adeus a um mestre

Com ele, tive uma das primeiras noções, lá para os anos 80, do que seria lutar com honra, e de que a força, por si só, pode nada mais ser que fraqueza. Que um guerreiro habilidoso depende menos dos músculos que da paciência, da percepção acurada, da experiência, sobretudo da perseverança. Para toda uma geração de jovens ávidos de emoções, extasiados com os novos e agressivos heróis de Hollywood -- Rambo, Exterminador, e até Jason Voorhess e Freddy Krueger --, ele era um contraponto: pequeno, idoso, aparentemente frágil. Mas compensava bem isso encarnando o arquétipo da sabedoria, do homem que adquiriu o domínio de si e, por isso, podia fazer o mesmo com os outros -- e deixava de fazê-lo por sua livre escolha.

Quem nunca se identificou com o afobado Daniel-san? Quem prestava atenção em qualquer outro detalhe em tela quando o Sr. Miyagi entrava em cena? Sim, era só um filme, talvez nem dos melhores. Mas "Karate Kid" foi, para muitos de nós que vivemos os anos 80, uma fonte de inspiração , uma espécie de mito, e como tal um repositório de lições. Talvez para alguns hoje elas possam parecer óbvias -- mas, para mim, que as vi ainda criança, ver essa fábula do triunfo do fraco sobre o forte, ao som da inesquecível flauta oriental, conhecê-las foi uma parte da minha educação moral, envolta nas mais doces lembranças.

Agora, o mestre se foi. Que fique em paz.

Música do dia, em homenagem: A Thrust of the Hand - Spirit of Japan (E. Honda).


25/11/2005 18:19:11

Morre Pat Morita, o senhor Miyagi de ‘Karatê Kid’

LOS ANGELES (Reuters), 25 de novembro - Pat Morita, o ator nipo-americano que ganhou fama no papel do sábio sr. Miyagi nos filmes da série "Karatê Kid" e no programa de TV "Happy Days", morreu em Las Vegas, aos 73 anos.

O serviço funerário de Las Vegas disse que Morita morreu de causas naturais, na quinta-feira.

O ator, que nasceu na Califórnia e foi internado em um campo de nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial, ganhou uma indicação ao Oscar por sua perfeita caracterização do mestre de caratê em "Karate Kid", de 1984.

Morita interpretou o sábio faz-tudo sr. Miyagi, que fez amizade com um garoto recém-chegado na cidade, interpretado por Ralph Macchio, e o ajudou a enfrentar valentões ao ensiná-lo a filosofia oriental e as artes marciais.

O filme foi um sucesso de bilheteria e rendeu a Morita a honra de tornar-se o primeiro ator descendente de asiáticos a ser indicado ao Oscar. Ele perdeu naquele ano para Haing S. Ngor, de "Os Gritos do Silêncio".

Morita participou de três edições de "Karate Kid", o último dos quais "Karate Kid 4 -- A Nova Aventura", de 1994, que representou a primeira grande oportunidade no cinema para a atriz Hilary Swank, hoje vencedora de dois Oscars.

O espirituoso Morita trabalhava como programador de computadores, mas perto dos 30 anos entrou no mundo do entretenimento como comediante.

Sua primeira chance veio no início dos anos 1960, quando foi apresentado a Sally Marr, mãe do comediante Lenny Bruce, que começou a gerenciar sua carreira e a fazer turnês com ele ao redor dos EUA. Durante aquela década, ele apareceu em shows de TV como "Laugh-In" e "The Smothers Brothers Comedy Hour".

Em uma entrevista à Reuters, em 1994, para promover "Karate Kid 4", Morita disse ter vivido uma vida feliz.

"Eu aprendi o que é engraçado, e a palavra-chave de engraçado é graça", ele disse.

Depois de anos fazendo papéis secundários e aparições especiais na TV, Morita ganhou fama e um papel importante ao interpretar Arnold, dono de um restaurante no sucesso dos anos 1970 "Happy Days."

Por algum tempo, estrelou uma série de TV, no papel do detetive Ohara, e apareceu em muitos filmes, como "Linha de Fogo" e "Lua-de-Mel a Três". Morita ainda emprestou sua voz ao personagem do imperador na animação da Disney "Mulan", de 1998.

Ele recebeu uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood, em 1994.

Morita deixa Evelyn, sua mulher há 12 anos, e três filhas do seu casamento anterior.

sexta-feira, novembro 25, 2005

A última testemunha de um Natal estranho

A Trégua de Natal foi um dos episódios mais marcantes da I Guerra Mundial, e que soa aberrante e comovente ao mesmo tempo comovente em uma era já acostumada ao conceito de guerra total e destruição em massa. Não tenho nada a acrescentar ao que o Rafael Galvão já disse a respeito, mas, como ele não reproduz a notícia que inspirou o post, transcrevo-a antes que ela desapareça no oceano virtual.


Capelão e oficiais franceses na I Guerra Mundial.

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Last allied witness of WWI Christmas truce dies

By Peter Graff Mon Nov 21,11:59 AM ET

LONDON (Reuters) - The last known surviving allied veteran of the Christmas Truce that saw German and British soldiers shake hands between the trenches in World War One died Monday at 109, his parish priest said.

Alfred Anderson was the oldest man in Scotland and the last known surviving Scottish veteran of the war.

"I remember the silence, the eerie sound of silence," he was quoted as saying in the Observer newspaper last year, describing the day-long Christmas Truce of 1914, which began spontaneously when German soldiers sang carols in the trenches, and British soldiers responded in English.

"All I'd heard for two months in the trenches was the hissing, cracking and whining of bullets in flight, machinegun fire and distant German voices. But there was a dead silence that morning across the land as far as you could see.

"We shouted 'Merry Christmas' even though nobody felt merry. The silence ended early in the afternoon and the killing started again."

Troops in the trenches swapped cigarettes, uniform buttons and addresses and even played football in one of the most extraordinary episodes of the war.

Parish priest Neil Gardner of Anderson's Alyth Parish Church in Scotland said he had died in his sleep and was survived by a large family, including 18 great grandchildren and two great great grandchildren.

"He was a wonderful old man: he was gracious, gentle, he had a great sense of humor and a fine sense of wisdom from his experience spanning three centuries," said Gardner, who also served as chaplain to Anderson's regiment, the Black Watch.

Anderson also served briefly as a member of the household staff of Queen Elizabeth's uncle, Fergus Bowes-Lyon.

With Anderson's death, fewer than 10 British veterans of the war remain alive, of whom only three or four were veterans of trench warfare on the Western Front.

Attention has turned to the last survivors in recent weeks, with filmmakers bringing out documentaries in time for this month's Armistice Day holiday, marking the day the guns fell silent on November 11, 1918.

domingo, novembro 20, 2005

Nuremberg, 60 anos

Há crimes para os quais toda justiça parece insuficiente. Ainda assim, é preciso encontrar uma forma de aplicá-la, senão por alguma compensação cósmica, ao menos como uma gesto em honra dos que foram vitimados e também como sinal para os pósteros de que a geração que os viu serem cometidos ainda tem senso de humanidade. Embora pessoalmente seja contra a pena capital, nem por isso Nuremberg deixa de ser um marco respeitável na história da civilização -- quando se fez patente que existem crimes diante dos quais nenhum poder ou razão de Estado podem ser aceitos como justificativa.

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O GLOBO
Rio, 20 de novembro de 2005



O julgamento que inspirou as cortes internacionais

Renato Galeno

Julius Streicher, editor do jornal anti-semita “Der Stürmer” e amigo pessoal de Hitler, comandava uma multidão agitada. Gritando, dizia a todos que o propósito da reunião, a destruição da sinagoga da cidade alemã de Nuremberg, era justo:

— Queremos assegurar que o sangue e a alma alemães permaneçam puros porque, se os judeus tomarem o poder na Alemanha, a nação estará condenada para sempre — bradou ele, em agosto de 1938. — A vocês, trabalhadores de Nuremberg, que um dia foram escravos dos judeus e que hoje ajudam na construção do novo Reich de Hitler, eu lhes dou agora uma ordem histórica: comecem!

Sete anos e mais de 50 milhões de mortes depois — cerca de seis milhões judeus mortos em campos de extermínio —, Streicher, ao lado de outras 20 autoridades do Terceiro Reich, estava sentado no banco dos réus no Palácio da Justiça da mesma cidade. Há exatamente 60 anos, em 20 de novembro de 1945, começava o Tribunal Militar Internacional, que entrou para a História como Tribunal de Nuremberg, cidade onde era realizado os encontros anuais do Partido Nazista. Nos 11 meses seguintes, os horrores nazistas foram apresentados a um planeta aturdido.

O mundo viu as imagens de campos de extermínio como Auschwitz e detalhes macabros do nazismo. A mulher do comandante do campo de Buechenwald, por exemplo, apreciava ter abajures com pele humana tatuada. O comandante Koch usava a cabeça decepada de um polonês como peso de papel. Rudolf Hoess, comandante de Auschwitz, disse não se sentir um sádico por nunca “ter pessoalmente batido num preso”, apesar de ter supervisionado um número, calculado por ele mesmo, de 2,5 milhões de assassinatos nas câmeras de gás.

Mais do que isso, porém, a corte representou um marco no direito internacional, por ter codificado o conceito de crime contra a Humanidade.

Hermann Goering criticou “tribunal dos vencedores”

Na verdade, o preâmbulo da Convenção de Haia de 1907 para leis de conflitos armados mencionou pela primeira vez o termo “leis da Humanidade”, mas sem defini-las. Uma comissão de 1919, criada pelo Tratado de Versalhes, considerou que autoridades turcas teriam cometido “crimes contra as leis da Humanidade” contra armênios, mas também não definia o crime.

O termo foi incluído no Tribunal de Nuremberg devido a esforços de pessoas como o jurista inglês Hersch Lauterpacht. Segundo a professora de direito internacional Monica Paraguassú, a corte foi um marco que não se limita ao direito.

— Sua importância se estende às relações internacionais e, mais ainda, à Humanidade enquanto uma representação da tomada de consciência pública sobre a perseguição e o extermínio, sistematizados, de um grupo religioso, uma nação, uma etnia. Nesse sentido, foi cristalizada, como moral e ética internacionais, a punição da perseguição para o extermínio de uma particularidade da Humanidade. Isto é, de um grupo portador de tradição, cultura, costumes como sendo, na verdade, a eliminação da própria Humanidade — disse Paraguassú, doutora em direito comparado pela Sorbonne.

O tribunal foi o modo encontrado pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial — EUA, URSS e Reino Unido, com a participação também da França — para punir os líderes nazistas. Hermann Goering, o mais alto funcionário nazista presente ao tribunal (Adolf Hitler, Heinrich Himmler e Joseph Goebbels tinham se matado antes de ser capturados e Martin Bormann — que também já estava morto — estava desaparecido), ironizou o tribunal dizendo que “os vencedores serão sempre o juiz e os derrotados, os réus.” A corte enfrentou muitas resistências e críticas à sua legitimidade.

Os réus eram acusados de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a Humanidade. No caso dos crimes contra a paz, eram acusados por agressão, como no caso da invasão da Polônia. Mas não foi mencionado que a URSS tinha um tratado com a Alemanha para a divisão do país. Os bombardeios alemães contra Londres e Varsóvia também não foram citados, pois os bombardeios aliados de Dresden e Tóquio seriam lembrados.

Quanto aos crimes contra a Humanidade, os acusados estavam sendo responsabilizados por um crime que ainda não fora tipificado quando as ações foram cometidas. Os juízes, porém, ressaltaram que os crimes praticados pelos nazistas não tinham sido ainda registrados.

Exemplo para TPI e cortes de Ruanda e ex-Iugoslávia

No entanto, as questões de legitimidade levantadas pela defesa não alteraram grandemente o futuro dos acusados. Até porque a alternativa era pior, e por pouco não ocorreu: o simples fuzilamento dos réus, em números que variavam entre 50 (proposta do britânico Churchill) a 50 mil, como sugeriu Stalin na Conferência de Teerã (1943). No fim, com a morte do presidente Roosevelt (que defendia os fuzilamentos) em abril de 1945 e a discordância de seu sucessor, Harry Truman, além da mudança de idéia de Stalin (talvez para fazer propaganda), foi acertada a criação de um tribunal.

A importância de Nuremberg para os direitos humanos se mantém até hoje. Ele foi o marco que tornou possíveis as atuais cortes internacionais.

— Os tribunais posteriores (de ex-Iugoslávia, Ruanda e Penal Internacional) têm em Nuremberg a referência de uma linguagem comum de universalização dos direitos do homem e da sua proteção no campo supranacional que vêm sendo desenvolvidas. Nos campos moral e ético atua como referência da consciência mundial no campo político, no sentido da capacidade de articulação internacional em torno de valores comuns — disse Paraguassú.

Onze réus foram condenados à morte por enforcamento (entre eles Goering, Alfred Jodl, Joachin von Ribbentrop e Hans Frank), três, à prisão perpétua (como o líder do Partido Nazista Rudolf Hess), dois a 20 anos de prisão, um a 15 e outro a dez anos. Três réus foram inocentados.

Julius Streicher foi enforcado, ao lado de outros nove réus, em 16 de outubro de 1946. Frank, governador-geral da Polônia ocupada, sorria no momento de ser enforcado. Duas horas antes de ser enforcado, Goering matou-se por envenenamento.

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segunda-feira, novembro 14, 2005

Depois da Teoria

"Estruturalismo, marxismo, pós-estruturalismo já não são mais os assuntos sexy de antes. Em vez disso, o que é sexy é o sexo. Nas bases mais entusiasmadas da academia, um interesse pela filosofia francesa deu lugar a uma fascinação pelo french kiss. Em alguns círculos culturais, a política da masturbação exerce fascínio muito maior do que a política do Oriente Médio. O socialismo perdeu lugar para o sadomasoquismo. Entre estudantes da cultura, o corpo é um tópico imensamente chique, na moda, mas é, em geral, o corpo erótico, não o esfomeado. Há um profundo interesse por corpos acasalados, mas não pelos corpos trabalhadores. Estudantes de classe média e de fala mansa amontoam-se diligentemente nas bibliotecas para trabalhar com temas sensacionalistas como vampirismo e arranca-olho, seres biônicos e filmes pornôs.

Nada poderia ser mais compreensível. Trabalhar com a literatura sobre produtos eróticos de látex ou com as implicações políticas do piercing no umbigo é tomar literalmente o sábio e velho adágio segundo o qual estudar tem que ser divertido. É parecido com escrever sua dissertação de mestrado comparando diversos sabores dos uísques maltados ou sobre a fenomenologia de um dia passado na cama. Isso cria uma continuidade harmônica entre o intelecto e a vida cotidiana. Há vantagens em ser capaz de escrever uma tese de doutorado sem sair da frente da TV. Nos velhos tempos, o rock era uma distração que afastava você dos estudos; agora bem pode ser o que você esteja estudando. Questões intelectuais já não são mais um assunto tratado em torres de marfim, mas fazem parte do mundo da mídia e dos shopping centers, dos quartos de dormir e dos motéis. Como tal, elas retornam ao domínio da vida cotidiana — mas só sob a condição de correrem o risco de perder a habilidade de criticar essa mesma vida. Hoje os antiquados que trabalham com alusões clássicas encontradas em Milton olham atravessado para os Jovens Turcos profundamente mergulhados em incesto e cyberfeminismo. As brilhantes coisinhas jovens que compõem ensaios sobre o fetichismo dos pés ou sobre a história da braguilha olham com suspeita os velhos e esquálidos acadêmicos que ousam sustentar que Jane Austen é melhor que Jeffrey Archer. Enquanto, nos velhos tempos, você poderia ser expulso pelos colegas da roda de bebida se não conseguisse detectar uma metonímia em Robert Herrick, hoje pode ser visto como um indescritível nerd se, para começar, tiver ouvido falar de metonímias ou de Herrick.”

“Outro ganho histórico da teoria cultural foi estabelecer que a cultura popular também merece ser estudada. Com algumas honrosas exceções, o pensamento acadêmico tradicional ignorou, durante séculos, a vida diária das pessoas comuns. Na verdade, ignorava mesmo era a própria vida, não apenas a diária. Não faz muito tempo, em algumas universidades tradicionalistas, ainda não era permitido pesquisar sobre autores que estivessem vivos. Isso resultava num grande incentivo para enfiar uma faca entre as costelas de alguém numa noite de neblina, ou num notável teste de paciência se seu romancista predileto tivesse uma saúde de ferro e apenas 34 anos de idade. Você certamente não poderia pesquisar qualquer coisa que visse à sua volta todos os dias, pois, por definição, isso não merecia ser estudado. Nas humanidades, a maior parte das coisas consideradas objetos de estudo adequados não era visível como são cortadores de unha ou Jack Nicholson, mas invisível, como Stendhal, o conceito de soberania ou a sinuosa elegância da noção leibniziana de mônada. Hoje reconhece-se em geral que a vida diária é quase tão intricada, incompreensível, obscura e ocasionalmente tediosa quanto Wagner, sendo, assim, eminentemente merecedora de ser investigada. Nos velhos tempos, o teste do que valia a pena estudar era, com freqüência, o quão fútil, monótono e esotérico fosse o tema. Em alguns círculos atuais, o teste é a medida em que se trata de algo que você e seus amigos fazem à noite. Houve um tempo em que os estudantes escreviam ensaios acríticos, reverentes, sobre Flaubert, mas tudo isso está mudado. Hoje escrevem ensaios acríticos, reverentes, sobre Friends.”

Esses são trechos de Terry Eagleton, professor de Teoria Cultural da Universidade de Manchester, no primeiro capítulo de Depois da Teoria: Um olhar sobre os Estudos Culturais e o pós-modernismo. Por sinal, um livro delicioso e muito informativo nestes tempos em que se escrevem, para ficar apenas na área que me é mais familiar, histórias sociais das nádegas, dos seios, das lágrimas, do pênis, do ménage à trois etc., etc., etc., ou em que estudantes fazem objeções ao estudo da Ilíada por se tratar de uma obra criada por e para homens brancos "ocidentais". Tempos interessantes estes, que requerem, sem dúvida, leituras interessantes.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Amores intelectuais

Uma novidade interessante na enevoada ilha de Shakespeare. Tomara que a moda pegue por aqui...


Londrinos buscam alma gêmea em programa-cabeça

Por Paul Majendie

LONDRES (Reuters) - Como encontros rápidos e danceterias já não parecem preencher o vazio de muitos corações solitários, a moda em Londres agora é o "romance inteligente".


Sociedades de debates, aulas de arte e saraus de poesia são eventos que proliferam na capital britânica nesta onda dos namoros-cabeça. A tendência já foi notada por diversos comentaristas sociais e levou até a prestigiosa revista The Economist a decretar que "a seriedade está em alta".


Sebastian Shakespeare escreveu no jornal Evening Standard que "os debates e saraus estão rapidamente se tornando as noitadas mais românticas de Londres".


Quem vem se dando bem com isso é Ginny Greenwood, criadora do clube Futures Squared, voltado para solteiros com muito dinheiro e pouco tempo. "Você não está se concentrando no que acontece entre o umbigo e o joelho -- está se conectando à massa cinzenta", disse ela à Reuters.


"Eles têm renda e inteligência. Só precisam de alguém para organizar suas agendas sociais. Acho que 'intellidating' (expressão que funde as palavras 'inteligência' e 'namoro') é uma grande frase. Tenho certeza de que acabará no dicionário. Se você é uma pessoa inteligente numa posição profissional importante, não vai ficar perambulando pelos bares nem recorrer a um encontro-relâmpago (organizado por agências especializadas)."


Se a música é o alimento do amor, a poesia enche a alma, como descobriu a escritora Josephine Hart ao organizar a sua concorrida Hora da Poesia na Biblioteca Britânica.


"Isso tem mesmo um efeito importante sobre as pessoas", disse Hart, em cujo evento Bob Geldof leu Yeats, Ralph Fiennes se debruçou sobre Auden e Roger Moore recitou Kipling.


"A mente fica expandida. Teve gente que chorou em algumas noites", contou ela. "Espero que o namoro inteligente entre na consciência das pessoas. Há uma enorme falta de qualquer coisa que seja profunda. Os jovens têm fome de algo que tenha profundidade e importância."


John Gordon e Jeremy O'Grady criaram a Intelligence Squared porque queriam tornar os debates mais atraentes. Até agora, todos os eventos que organizaram, na sede da Real Sociedade Geográfica, lotaram antecipadamente.


"Acho que há uma fome por essas coisas num mundo que está mais complexo ao mesmo tempo em que também fica mais bobo", disse O'Grady. "Há uma enorme lacuna nas necessidades emocionais das pessoas."


Nesse clima, os don juans intelectuais enfrentam debates desafiadores, com títulos como "Melhor a justiça bruta que outro 11 de setembro" ou "A ascensão da China prenuncia o declínio do Ocidente".


"É discutível se isso é namoro ou debate, mas representa uma oportunidade para as pessoas que querem o namoro inteligente", disse O'Grady. "Há uma enorme carência de fóruns institucionais além da pista de dança e dos clubes para que eles se encontrem."

quarta-feira, novembro 02, 2005

Apertando as mãos do demônio

Roméo Dallaire deve estar em seus sessenta anos, pela aparência. É um homem vigoroso, de belos traços, que, com seu bigode respeitável, fica muito bem no seu papel de general aposentado. Porém, quem o contemple hoje por mais alguns minutos logo nota que há um certa tristeza no seu semblante — um traço que ele carrega há quase doze anos. O motivo? Romeo Dallaire, militar canadense, serviu como comandante das tropas da ONU em Ruanda, no início de 1994. Para quem não ligou o país e a data ao evento, isso significa que ele testemunhou o último grande genocídio do século XX.



O saldo aproximado foi de 800.000 mortos, boa parte dos quais ainda vivia quando Dallaire chegou ao país, em janeiro. Em menos de quatro meses, porém, o que era mais um conflito étnico em um continente marcado por fronteiras arbitrárias e governos instáveis se transformou numa limpeza étnica de grandes proporções. A etnia hutu, fazendo uso de mercenários e forças paramilitares, além da colaboração de parte da própria população civil, resolveu exterminar a outra grande população do país, os tutsis. E o fez com uma diabólica eficiência: com armas de fogo ou machetes, homens, mulheres, crianças, e até religiosos entraram num conflito fratricida tão violento o próprio Dallaire, um homem educado no Ocidente, só pôde definir com uma metáfora: “O demônio entrou no Paraíso, e fez de tudo para destruí-lo”. O testemunho desse esforço luciferino está nos diversos monumentos erguidos sobre grandes covas coletivas espalhadas pelo país, e também em um grande depósito de crânios, de todos os tipos e tamanhos, trazendo ainda, em fraturas e orifícios, a lembrança do sofrimento de seus donos.

O que Dallaire podia fazer? Segundo ele próprio, a força que ele comandava não tinha ordens, nem recursos. Num país em que metade da população fugia do potencial assassino da outra metade, a ONU contava com 450 homens. Para se ter uma idéia, houve operações da Polícia Militar do Rio de Janeiro com um efetivo maior que esse. E, no entanto, era o que as Nações Unidas, àquela época mais preocupadas com os brancos “civilizados” da Iugoslávia, estavam dispostas a empregar. Dallaire sabia que sua presença seria inútil. Sua força bastava para assegurar o único prédio realmente seguro em Ruanda, o da própria ONU, e pouco mais do que isso. E, no entanto, ele tentou fazer alguma coisa. Para começar, chamou um repórter da BBC, deu-lhe todas as garantias possíveis e pediu-lhe uma matéria por dia sobre a guerra civil. Diante de superiores insensíveis, ele tentou usar a mídia como instrumento de pressão. Talvez se imagens diárias de multidões maltrapilhas e mal acomodadas, em condições precarísimas de alimentação e higiene, invadissem os jornais ocidentais, alguém resolvesse fazer a mesma coisa.

No seu relato a um documentarista canadense, Peter Raymond, a palavra mais usada por Dallaire é “mau-cheiro”: nos locais de execução coletiva, nas ruas, até mesmo no estádio de futebol transformado em campos de refugiados, onde Dallaire podia oferecer proteção armada, mas não os alimentos e os cuidados médicos necessário. Era um campo de concentração, reconheceu o general, acompanhado pelas imagens da época, e não havia um cemitério disponível. Para fugir das balas e facões hutus, os refugiados tutsis conviviam com a fome, a doença e o fedor permanente dos cadáveres que se amontoavam nem mesmo ao seu redor, mas em seu meio.

Depois de poucos meses em serviço, Dallaire começou a sentir os efeitos da impotência prolongada em meio ao caos. Passava longas horas sozinho, emitia ordens incoerentes, tinha o olhar vidrado Obviamente dera tudo que podia, e ainda era muito pouco. O velho militar estava fazendo o quê, afinal? Dar àqueles que podia proteger a chance de optar entre a degola e a disenteria não era um gesto exatamente recompensador. Assim, enquanto o Conselho de Segurança fazia-se de desentendido e Ruanda era olvidada como a terra de ninguém que boa parte da África sempre fora aos olhos do mundo, o velho general entrava em colapso. Era demais.

Desde então, quando voltou ao Canadá, Ruanda nunca mais saiu de dentro dele. O senso de fracasso ainda o incomoda, a culpa decorrente o atormenta. “Eu fracassei com Ruanda”, disse, em uma palestra em uma universidade local. Quem quer que tenha perdido um ente querido naquele loucura sabe que é verdade. No entanto, a questão da culpa é outra história. Quando se é largado numa guerra civil em uma terra estranha, sem orientação adequada, recursos logísticos ou tropas decentes, não se pode ser culpado por uma derrota. Provavelmente, Roméo Dallaire sabe disso; mas entre o que a razão aceita e o que o coração confirma vai grande distância — no caso, uma distância medida em cadáveres e mau cheiro.

O relato dos meses que Dallaire passou nesse inferno sangrento está em seu livro Shake Hands with the Devil, e no documentário homônimo de Peter Raymond exibido recentemente no canal Cinemax Prime. Os interessados no massacre ruandense podem obter maiores informações em http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/ghosts. Dados gerais sobre o país estão disponíveis no site do Departamento de Estado dos EUA: http://www.state.gov.