segunda-feira, dezembro 01, 2014

Que tenho feito?

Organizando eventos acadêmicos com ex-alunos e também colegas.
Conhecendo minha própria fé, o Espiritismo, de um ponto de vista um pouco mais experimental e menos teórico.
Assistindo, não sem preocupação, ao linchamento virtual de um blogueiro famoso.
Percebendo-me um tanto melancólico com os tribalismos político-virtuais, mais barulhentos desde a última eleição.
Aprendendo o que é a vida a dois, e me preparando para, num futuro próximo, a vida a três.
Acompanhando The Flash e revendo Changeman e A Viagem, completamente alheio ao retorno de The Walking Dead e, o que me dói, House of Cards. Não consigo acompanhar muitas séries de uma vez.
Estudando para um concurso de professor, quando dá, mas sempre com prazer.
Cuidando da casa, mas sem neurose e às vezes com alguma preguiça.
Maravilhando-me de como a idade e a vida alteram nossas percepções, não só quantitativa, mas também e sobretudo qualitativamente.
Constatando como o campo "O que você está pensando?" do Facebook feriu de morte a Era dos Blogs, pelo menos entre amadores como eu.
Vendo alguns horizontes se abrindo com a aurora.
Vivendo, enfim...


Os Justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire. 
O que agradece que na terra haja música. 
O que descobre com prazer uma etimologia. 
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez. 
O ceramista que premedita uma cor e uma forma. 
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade. 
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto. 
O que acarinha um animal adormecido. 
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram. 
O que agradece que na terra haja Stevenson. 
O que prefere que os outros tenham razão. 
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo. 

Jorge Luis Borges, in "A Cifra" 
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

quinta-feira, agosto 28, 2014

A volta de um clássico

Heróis de "A Droga da Obediência", Karas crescem e encaretam em novo livro

Pablo Miyazawa
Do UOL, em São Paulo

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Bienal do Livro de São Paulo 201426 fotos

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26.ago.2014 - O escritor Pedro Bandeira lança o livro "Droga da Amizade" na 23ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no Anhembi Carla Carniel/Frame/Estadão Conteúdo
Os Karas cresceram e reapareceram. O grupo formado por Miguel, Chumbinho, Magrí, Crânio e Calú, jovens personagens criados pelo escritor paulista Pedro Bandeira, retornam de um limbo editorial de 15 anos, agora crescidos, bem-sucedidos e envoltos em nostalgia. Lançado esta semana na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, "A Droga da Amizade" (Ed. Moderna) é o sexto livro estrelado pelos heróis, que surgiram no best-seller "A Droga da Obediência" (1984) e vivenciaram sagas de aventuras em "Pântano de Sangue" (1987), "Anjo da Morte" (1988), "A Droga do Amor" (1994) e "Droga de Americana!" (1999).
O hiato de uma década e meia tem explicação. Em uma carta endereçada ao leitor, publicada na última página do novo livro, Bandeira, 72 anos, explica que tinha dificuldades em escrever novas aventuras d'Os Karas em decorrência do avanço da tecnologia, e que engavetou uma história pronta, "A Droga Virtual", por sentir que o material soava fora de contexto. Ele enxugou a trama, excluiu detalhes sobre tecnologia e lançou "Droga de Americana!". Sentindo-se "derrotado pelas modernidades", resolveu não mais investir n'Os Karas, a quem considerava seus "filhos da imaginação".
Obviamente, Bandeira voltou atrás na decisão. Mas a motivação não foi mercadológica, uma vez que ele continua sendo um dos autores infanto-juvenis brasileiros mais populares das últimas décadas, com mais de 20 milhões de exemplares comercializados em 31 anos de carreira. "A Droga da Obediência", com cerca de 1,5 milhão de cópias vendidas, continua ainda hoje requisitado como leitura obrigatória em escolas de ensino médio. 
Com a foto na mãos, seu olhar não se concentrava na luz do monitor que lhe azulava a expressão e exibia o texto do discurso (...). Eles eram Os Karas! A turma secreta que Miguel havia reunido há tantos anos no Colégio Elite, a princípio apenas como brincadeira de jovens, como uma forma de sonharem juntos, de partilharem a força de suas imaginações, mas que a realidade haveria de empurrar para as mais perigosas aventuras!
Na mesma carta ao leitor, o escritor explica os motivos para ressuscitar a saga. "A insistência dos meus leitores, sempre pedindo novas aventuras, levou-me a concluir que a modernidade não existe para bloquear coisa alguma, e sim para acelerar o desenvolvimento da humanidade". Ele não especifica a faixa etária dos fãs que requisitam novas tramas dos Karas, mas presume-se que uma parcela razoável seja de leitores já adultos, que tomaram primeiro contato com a obra de Bandeira há pelo menos duas décadas.
O fato é que "A Droga da Amizade" está longe de ser considerada uma nova aventura dos Karas, está mais para uma prequel, no qual Bandeira se dá ao luxo de remontar as origens dos personagens e desvendar elementos básicos da mitologia da série que criou. Estão lá os primeiros encontros entre os protagonistas nos corredores do fictício Colégio Elite, a fundação dos Karas, turma de agentes secretos amadores e bem-intencionados, as elaborações dos códigos e procedimentos secretos do grupo, e o fortalecimento das relações mútuas --a "droga da amizade" do título refere-se às afinidades e à sede de aventuras compartilhadas pelos cinco amigos. 
Anos após a última aventura juntos, todos são bem-sucedidos e referências em suas respectivas profissões. Em um acesso de nostalgia, o líder Miguel rememora a adolescência momentos antes de realizar um importante discurso (algo que só é explicado na última linha do livro). Cada capítulo é destinado à origem de um dos integrantes ou no relato de algum momento-chave na consolidação dos Karas, e poderia até ser lido de maneira independente, como uma coleção de contos soltos e enfileirados.
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Os Karas, a turma de Pedro Bandeira11 fotos

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Vinte anos depois de seu lançamento, a coleção completa d'Os Karas ganha reedição com capas e formatos mais moderno ao estilo HQ. "Pântano de Sangue" é o segundo livro da série, lançado em 1987. Aqui, os Karas voltam a lutar contra o crime organizado, que está agindo no Pantanal de Mato Grosso, sob liderança do implacável Ente. O enredo cheio de suspense, a turma se envolve na trama criminosa que leva à destruição dos jacarés, dos índios e da natureza. Crânio, o geniozinho dos Karas, é quem terá de arrastar os amigos em sua perigosa missão Reprodução
Características cinematográficas
Tempos depois da publicação de "A Droga da Obediência", Bandeira declarou que a trama --a invenção de um entorpecente capaz de controlar as vontades das pessoas-- seria uma espécie de crítica metafórica à ditadura militar, que se encerraria no país em 1985, um ano após o lançamento do livro. Talvez por conta do momento político-social em que foi escrita, a prosa de Bandeira trazia características cinematográficas rígidas, de sentenças longas e rica em detalhes, ainda que brilhantemente fluída e endereçada a leitores recém-entrados na adolescência.
Leitores já crescidos e com memória afetiva em relação aos Karas talvez percebam certa diluição da narrativa de "A Droga da Amizade", principalmente se houver uma comparação imediata com os primeiros livros da série. Dessa vez, os parágrafos são curtos, as estruturas de texto são menos elaboradas e algumas frases chegam a soar mais ingênuas e deslocadas do que deveriam, pelo menos vindas da boca de um personagem na idade adulta.
Se levada em conta a maneira como se expressa em seus pensamentos em voz alta, dá para concluir que Miguel encaretou --algo que contraria o próprio mote dos Karas: "o avesso dos coroas, o contrário dos caretas". Pode-se especular que o formato mais leve do relato tenha sido uma escolha deliberada do autor, para embutir na obra um clima mais de retrospectiva saudosa e menos de thriller da aventura típica dos cinco livros anteriores. Seja como for, os fãs das antigas notarão a diferença de estilo.
Outro detalhe que não passa batido em "A Droga da Amizade" é uma incongruência cronológica em relação às primeiras aventuras, escritas na segunda metade da década de 1980. Nelas, mesmo que o autor jamais tenha especificado o ano em que ocorre cada história, fica óbvio que os Karas vivem em uma época de reduzida penetração tecnológica, com a inexistência de celulares ou computadores ligados à internet. Já em "A Droga da Amizade", as lembranças da gênese do grupo são pontuadas por diversas citações a sites, conferências virtuais e celulares com identificação de chamadas. Erro de continuidade ou uma tentativa brusca de atualizar a trama para gerações vindouras de leitores?
Em se tratando de uma série literária tão bem sucedida e que atingiu pelo menos duas gerações de leitores, uma pergunta surge pertinente ao longo das 170 páginas de "A Droga da Amizade": quem é o público-alvo? É possível que jovens leitores de primeira viagem se identifiquem com o universo dos Karas e tenham curiosidade de procurar os livros anteriores (que também ganharam relançamento com uma roupagem modernizada e capas ao estilo HQ, mas com texto idêntico ao original).
Mas, dada a natureza de prelúdio da narrativa, é certo assumir que é um produto principalmente endereçado aos fãs dedicados, aqueles que tomaram gosto pela leitura com aqueles livros, que sentem saudades das aventuras empolgantes de caráter vertiginoso e que gostariam que os destinos dos personagens fossem desvendados. Mexer com personagens adormecidos por 15 anos pode ser uma tarefa ingrata para um escritor. E, mesmo cumprindo somente parte das expectativas, Pedro Bandeira merece aplausos por se arriscar a tentar.

Renascimento...




domingo, março 09, 2014

Como ser um bom professor - algumas dicas muito pessoais

Um aluno me escreveu perguntando que aptidões um bom professor deve ter. Boa questão. Cada um tem sua resposta pessoal a ela, mas quis arquivar a que eu mandei e o blog também serve para isso. E você, caro leitor ou cara leitora, o que acha?

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Empatia - Gostar de gente é fundamental. Não é preciso ser extrovertido, mas não se pode ser nem tímido demais nem tampouco (e principalmente) misantropo. Também é preciso se colocar no lugar do aluno para tentar ver onde ele pode ter dificuldades, ou como ele está pensando sobre o que lhe é apresentado.

Domínio do assunto - Embora não seja necessário ser expert, é preciso saber pelo menos o eixo lógico do que se vai ensinar, os pontos principais e as relações entre eles. Ainda que eles só representem, digamos, 25% de um tema qualquer, são pontos que precisam estar claros na sua cabeça -- e, nunca é demais repetir, as relações entre eles, a lógica por trás deles -- para que possa passá-los aos outros. Além disso, é preciso estar sempre aberto a atualizações: novas descobertas e interpretações aparecem de tempos em tempos, e o que era certíssimo num momento pode ser rapidamente ultrapassado num outro. Daí a necessidade de um estudo regular, ainda que informal. O professor que para no tempo, mesmo que dê uma boa aula inicialmente, logo se condena à fossilização. (Uma dica que funcionou para mim: virar um rato de livraria, tanto físicas quanto virtuais. Ajuda a sempre saber o que está sendo lançado, e assim se formar um acervo decente e atualizado.)

Criatividade - Não dá para seguir sempre o mesmo esquema de aula. O que funciona para uns, não funciona para outros, então o professor precisa saber se adaptar. Isso pode ser difícil porque nas faculdades o que se oferece geralmente é um mero preparo intelectual (e mesmo assim, nem sempre muito bom). Mas aí cabe ao professor "pensar fora da caixa" ou buscar auxílio de quem o faz para achar maneiras de passar o conteúdo de formas mais eficientes para seus alunos. Pode ser uma coisa muito simples, desde a discussão de uma imagem ou música, até dinâmicas de grupo razoavelmente complexas, ou mesmo uma analogia com alguma coisa do cotidiano. Mas essa abertura para o novo tem que exisstir em alguma medida.

Humildadepersistência - Nem sempre se é o melhor professor do mundo. Mesmo os muito bons têm seus momentos menos felizes. Pode ser por razões emocionais, digamos um atrito com um aluno, ou intelectuais, como um engano com uma informação ou a dificuldade em achar a tática certa para aquela turma específica. Erros e insuficiências vão acontecer, e é preciso aceitar isso de antemão --- não como fatalismo e acomodação, mas constatação da realidade. Isso é da natureza humana, e temos de saber disso. E, por outro lado, às vezes o ótimo é inimigo do bom (o que qualquer um que dê aula para o Ensino Fundamental ou Médio descobre no primeiro mês). Nem sempre aqueles alunos determinados aceitarão o que preparamos para eles, por várias razões, e até podem rejeitá-lo ativamente. Por isso, o magistério é também um exercício moral: exige um exame de si mesmo, uma recalibração emocional constante, e o exercício de virtudes tradicionais como a fortaleza e a perserverança. Não é um espaço para a massagem permanente no ego que certos professores imaginam, mas uma atividade que vai exigir uma dose razoável de autoconhecimento e preparo psicologico. 

Disciplina -  Porque dá trabalho e exige certo tato. Autocontrole no trato com os outros é importante, e organização para preparar o que se vai fazer (nem que seja o estudo básico da matéria do dia) são indispensáveis.

Gosto pelo que se faz -  Com tantas exigências, o magistério não é muito tolerável sem algum amor por ele. Isso não significa uma abnegação absoluta, de mártir, da qual poucas pessoas são capazes, mas um mínimo de satisfação pelo que a atividade pode criar de bom no mundo. Perder isso de vista é se condenar à mediocridade profissional e humana. Claro que muitas vezes as condições de trabalho não ajudam, mas até para isso a pessoa tem de se preparar dentro do possível. Um  professor que perdeu a "chama" será um professor acomodado e cada vez menos eficiente.  Por isso, é aconselhável ter uma noção das possibilidades da área, de modo a se saber como procurar oportunidades de trabalho mais satisfatórias, para que não aconteça de a pessoa ficar anos e anos presa a um emprego desagradável porque nada mais aparece. Há que se ficar "antenado" com o que aparece de bom, e traçar estratégias para chegar lá. Ex.: saber que concursos são interessantes, como se pode chegar a instituições mais atraentes, a que atividades alternativas se pode recorrer na falta do bom e velho emprego clássico e estável.  

Contato com a experiência alheia - Especialmente quando se é jovem, é sempre bom ter figuras mais experientes a quem recorrer. Isso requer alguns cuidados, claro, já que nem sempre o profissional mais experiente será sábio (muitos viram cínicos amargos). Mas ter pessoas que conhecem a profissão ajuda muito, enriquece nossa visão e pode ser uma grande ajuda em momentos difíceis. Na falta de alguém assim em pessoa, a Internet pode propiciar uma troca de experiências frutífera. Eu, por exemplo, vez por outra procuro materiais e experiências divulgadas na rede por outros professores (e nisso saber outro idioma ajuda muito. Os americanos, por exemplo, frequentemente criam websites para disciplinas e cursos inteiros, tanto no nível básico como no superior, e isso é tremendamente útil.) e abstraindo um pouco da profissão em si: o contato com pessoas que têm interesses intelectuais comuns, mesmo que de fora da área, ajuda muito a nos manter atualizados e "afiados" mentalmente. Ter alguns amigos assim ajuda muito. 
 

Cautela e discrição - A profissão tem suas armadilhas. É triste, mas hoje é preciso ter prudência. Não se recomenda, por exemplo, falar com alunos, especialmente do sexo oposto, a portas fechadas ou na ausência de outros. Também é preciso ter cuidado com o que se diz na frente de colegas, mesmo num momento de descontração. Ambientes de trabalho são solo fértil para fofocas, e professores são particularmente propensos a isso. Não é preciso ser paranoico, mas também não se deve achar que se está cercado de anjos. 

sábado, fevereiro 15, 2014

1964: novas visões

Há quase meio século, o Brasil mergulhava em mais um período ditatorial. A produção acadêmica a respeito é bem grande, e agora ficou ainda maior. Colho no Prosa & Verso alguns artigos interessantes a respeito. Para ser franco, eu mesmo nunca dei muita atenção ao assunto, mas isso mudou quando comecei a estudar história latino-americana e as conexões com a história de outros países foi ficando mais clara. Então deixo aqui como registro:

Daniel Aarão Reis: As conexões civis da ditadura brasileira



Em nova obra, professor da UFF analisa a participação da sociedade durante a ditadura e defende a discussão sobre a tradição autoritária brasileira


Por Leonardo Cazes

No ano em que se completa o cinquentenário do golpe que derrubou o presidente João Goulart da presidência e deu início à ditadura, Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), defende que é preciso aprofundar o debate sobre as conexões civis do regime militar. Em seu novo livro, “Ditadura e democracia no Brasil” (Zahar), ele avalia algumas das relações entre a sociedade e as Forças Armadas, além de propor uma diferenciação entre ditadura e estado de direito autoritário. Em entrevista ao GLOBO, Aarão Reis diz que, sem o conhecimento e a discussão sobre os fundamentos sociais e históricos da ditadura, não será possível avançar.

Quais as principais mudanças e descobertas, nos últimos dez anos, no campo dos estudos sobre a ditadura militar brasileira?

A grande novidade nessa última década é que se fortaleceu uma corrente crítica à principal tendência da historiografia sobre o período. A história da ditadura que ainda permanece hegemônica no Brasil, encarnada em grande parte pelo Arquivo Nacional e em certa medida pela Comissão Nacional da Verdade, se recusa a considerar a ditadura nas suas complexas relações com a sociedade brasileira. Imagina que a ditadura foi imposta de cima para baixo e enfatiza, quase que exclusivamente, a resistência à ditadura. Ulysses Guimarães, por exemplo, é uma grande figura da resistência democrática, foi chamado de “Senhor Diretas” e presidiu a Constituinte. Mas pouca gente sabe que ele foi um dos líderes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade e apoiou o golpe de 1964. Ele fez parte da comissão do Congresso que tentou elaborar o primeiro Ato Institucional, mas os militares não gostaram e assumiram a responsabilidade. A própria CNBB, que exerceu um papel importante na divulgação de violações contra os direitos humanos durante a ditadura, apoiou o golpe. D. Paulo Evaristo Arns era bispo de Petrópolis e foi apoiar as tropas do General Olímpio Mourão Filho que desciam de Minas para o Rio. É preciso estudar as complexas relações que se estabeleceram. Houve muita colaboração, cumplicidade, zigue-zagues. Juscelino Kubitscheck, sobre quem até hoje há suspeitas de que foi assassinado pelos órgãos de segurança, apoiou o golpe, mesmo que com reservas. Ele cabalouo voto para a eleição de Castello Branco no Congresso. Tudo isso é silenciado. Quem sabe, não fala no assunto.

É por isso que no seu livro recém-lançado, “Ditadura e democracia no Brasil”, o senhor enfatiza a participação civil tanto no golpe quanto no regime?

Não é à toa que cada vez mais gente fala em uma ditadura civil-militar, não apenas uma ditadura militar. A noção de uma ditadura militar foi criada logo depois do golpe pelas esquerdas derrotadas. Era um recurso político legítimo na época, porque a gente queria isolar a ditadura. Fingíamos ignorar os apoios que ela tinha no mundo civil e a designávamos de militar. Essa ideia inicial, politicamente legítima, vai sendo incorporada por todos que migram de uma posição de tolerância ou cumplicidade ativa com a ditadura para as oposições. Vai haver uma migração maciça, principalmente a partir de 1973, 74, de líderes do regime e de segmentos sociais que encontraram na expressão “ditadura militar” um verdadeiro bálsamo para absolver e esconder as suas relações. A apoteose desse tipo de perspectiva foi a colocação do marco cronológico do fim da ditadura, que é construído em função de premissas e perspectivas teóricas e políticas. Fixou-se o marco em 1985, na posse de José Sarney. Ora, o Sarney foi homem da ditadura desde o início e uma de suas lideranças, mas essa cronologia ganha coerência porque a ditadura era militar e ele foi o primeiro presidente civil. Se a ditadura fosse entendida como um complexo civil e militar, seria mais problemático colocar esse marco. Creio que, passados tantos anos, embora a resistência à ditadura mereça e continuará merecendo atenção nos nossos debates, essa tendência de rever a história vai crescer. Se você assume esse ponto de vista, apontando os fundamentos sociais e históricos, há áreas incríveis que merecem estudo, como os sindicatos, que tiveram um crescimento gigantesco durante a ditadura.

A ditadura sempre esteve muito preocupada em manter uma aparência de legalidade e com a sua legitimidade. Manteve o Congresso Nacional aberto e criou uma nova Constituição em 1967. Por quê?

A ditadura se instaurou em nome da democracia. Essa é uma diferença importante a se fazer entre as ditaduras anteriores e posteriores à Segunda Guerra Mundial. No Estado Novo, o Getúlio não tinha nenhum problema em dizer que aquele regime era autoritário porque a democracia estava muito desprestigiada à época. A União Soviética se desenvolvia a passos gigantescos e não era uma democracia, o nazifascismo aparecia como uma alternativa universal e recusava a democracia. Muitos regimes na Ásia, África e América Latina adotaram formas corporativistas autoritárias, como o Brasil. Já depois da Segunda Guerra, feita em nome da democracia e contra o nazifascismo, era muito mais difícil legitimar um regime contra a democracia. O movimento de 1964 foi feito em defesa da democracia e contra a corrupção. Muitas lideranças políticas que apoiaram o golpe acharam que os militares iam fazer uma intervenção rápida. Cassariam os comunistas, os trabalhistas e as esquerdas mais radicais e abririam caminho para as eleições presidenciais de 1965. O apoio de JK a Castello Branco se insere aí, porque Juscelino era um dos fortes candidatos, assim como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. Esses líderes civis que participam do golpe eram liberais autoritários. Tinham medo de que uma democracia ampla no Brasil incitasse as massas à luta e que isso provocasse uma revolução social no país. A farsa da Constituinte do Castello marca o início do estado de direito autoritário que vai de março de 1967 a dezembro de 1968, com o AI-5.

No livro, o senhor marca uma diferença entre esse estado de direito autoritário e a ditadura propriamente dita. Poderia explicar melhor?

Eu tento fixar um critério para conceituar um governo como ditatorial ou não. O critério que eu coloco é óbvio, o do estado de exceção. É quando o governo faz e desfaz leis a seu bel-prazer, não passando por nenhuma instância de controle nem sendo controlado por nenhuma instância. O governo inventa os meios legais como quer, como a figura jurídica do banimento, criada para permitir a libertação dos 15 presos trocados pelo embaixador americano em 1969. A república entre 1946 e 1964 era um estado de direito autoritário. Quase metade da população não votava porque era analfabeta. Ninguém chama o governo Dutra de ditadura, mas na contagem do PCB, então na ilegalidade, 51 militantes foram mortos em manifestações. No regime militar, a ditadura é reativada em dezembro de 1968, com o AI-5, e segue até 1979. Do governo Figueiredo até 1988, temos um estado de direito autoritário. Na Constituição de 1988, que sem dúvida é a nossa carta mais democrática, ainda subsistem claramente aspectos autoritários, como o direito dos militares intervirem na vida política nacional desde que sejam chamados pelo chefe de um dos três poderes. Isso é de um autoritarismo enorme e foi incluído por pressão dos milicos à época. Poderíamos mencionar outros, como a concentração de poder que cria um presidencialismo de caráter imperial e as medidas provisórias. Desde 1889, quando não tivemos ditaduras, tivemos um estado de direito autoritário no Brasil.

Muito se discute atualmente sobre as heranças da ditadura. Como essa tradição autoritária que o senhor aponta se manifesta hoje?

Uma prática que persiste é a tortura. A tortura foi política de Estado em alguns governos da Primeira República e nas ditaduras do Estado Novo e de 1964. Ela antecedeu e continuou após essas ditaduras e está aí até hoje nas delegacias, nos quartéis. É uma tradição maldita que vem da escravidão. A posição favorável à tortura encontra-se disseminada na sociedade brasileira. O Núcleo de Estudos da Violência da USP, em pesquisa de 2011, apontou que 48,5% dos entrevistados admitiam a tortura em determinados casos. Você pode presumir que esse número é muito maior, pois muita gente não assume essa posição para o pesquisador, mesmo com a garantia do anonimato. Os fundamentos sociais e históricos da ditadura precisam ser discutidos e compreendidos. O autoritarismo permeia toda a sociedade brasileira. De modo nenhum nossa democracia está a salvo de surtos autoritários. A gente viu agora mesmo nas manifestações de 2013 como políticos de diversos partidos se comprometeram com uma repressão desapiedada sobre o movimento. A Polícia Militar mata cotidianamente pessoas no Brasil todo, os índices são demenciais comparados a outros países, e isso está naturalizado. Embora haja críticas muito severas aos black blocs, as críticas à PM são muito moderadas. No Rio, o governador Sérgio Cabral, eleito democraticamente, tentou criar uma estrutura denunciada e repudiada como uma reedição do DOI-Codi, e recuou. Mas o simples fato dele ter proposto é muito simbólico. Sem lidar com a nossa tradição autoritária, as ditaduras não se explicam. O Estado Novo se instaurou em 1937 quase sem resistência e acabou em 1945 em uma transição pelo alto. Em 1964 e em 1979, foi muito parecido. É preciso discutir isso seriamente.
Enviado por O Globo - 
15.2.2014
 | 
6h35m

Carlos Fico: Os riscos de uma leitura vitimizadora do golpe de 1964

Entender por que uma solução autoritária foi de algum modo aceita pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do despotismo que tantas vezes assolou a República, diz historiador
Por Carlos Fico
O golpe de 1964 é muito citado, mas pouco pesquisado. A literatura especializada usualmente o menciona como a culminância dramática da trajetória de João Goulart ou como o episódio inaugural da ditadura. Hoje, temos uma historiografia crescente sobre os 21 anos dos governos militares, mas o golpe em si não é o objeto preferencial de tais pesquisas. Entretanto, ele é o “evento-chave” da história do Brasil recente: naquele momento, parcelas significativas da sociedade brasileira aceitaram uma solução autoritária para os problemas que afligiam o país. Podemos assegurar que estamos livres dessa “tentação”? Estudos verticalizados sobre o golpe nos ajudariam a responder a esta pergunta.
Não houve grandes revelações desde as últimas contribuições da historiografia conhecidas há mais de três décadas. De fato, os principais “achados” sobre 1964, especificamente, foram divulgados nos anos 1970 e 1980: a descoberta da “Operação Brother Sam” (o apoio norte-americano ao golpe), por Phyllis R. Parker, em 1976; o livro “O governo João Goulart”, de Moniz Bandeira, publicado em 1978 e a obra magistral de René Armand Dreifuss, de 1980, “1964: a conquista do Estado”, que deslindava, com documentos inéditos, a campanha de desestabilização de que João Goulart foi vítima.

Certamente não se deve reduzir a pesquisa histórica à busca de revelações chocantes, mas seria ingênuo não reconhecer sua importância. Nesse sentido, não é difícil antecipar que significativas informações surgirão a partir da pesquisa de novas fontes documentais — e elas são muitas. Os documentos outrora sigilosos, no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países, vêm sendo revelados paulatinamente. Por exemplo, encontra-se em curso, neste momento, pesquisa documental sobre a comissão que cuidou dos primeiros inquéritos policiais militares (IPMs) logo após o golpe. Do mesmo modo — conforme a legislação norte-americana —, a importante documentação do governo daquele país vai aos poucos sendo liberada. Amplo projeto de digitalização desses documentos, conduzido por historiadores do Brasil e dos EUA, encontra-se em andamento. Militares e políticos brasileiros tinham conhecimento da “Operação Brother Sam” e esta revelação virá inevitavelmente.

As principais teses explicativas sobre o golpe também foram divulgadas há muito tempo. Duas delas são clássicas. Alfred Stepan publicou, em 1969, a interpretação segundo a qual a singularidade de 1964 residiria na mudança do padrão de intervenções militares: em vez de apenas corrigir os rumos e devolver o poder aos civis, os militares, na ocasião, estariam convencidos de que deveriam assumir integralmente o poder. A leitura de Wanderley Guilherme dos Santos, divulgada em 1979, é mais sólida porque amparada em expressiva pesquisa empírica: o golpe de 1964 se explicaria em função de uma “paralisia decisória”, isto é, a radicalização dos atores políticos impediria qualquer tomada de decisão. Outra contribuição importante e mais recente contrapôs-se à leitura marxista segundo a qual os militares eram mero “instrumento” da burguesia: a preocupação em valorizar o que os próprios oficiais pensavam motivou a equipe do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) a realizar significativas entrevistas com eles, publicadas em 1994, por meio das quais podemos conhecer sua própria interpretação sobre o golpe.

Boa parte dos projetos de pesquisas que se candidatam aos mestrados e doutorados em História, Brasil afora, dizem respeito aos diversos temas do regime militar. O notável avanço da pós-graduação em nossa área, nas últimas décadas, tem permitido um conhecimento mais detalhado do golpe e da ditadura a partir de uma perspectiva regional — pois, até recentemente, dispúnhamos de leituras que abordavam, sobretudo, o que houve no Sudeste e em Brasília.

O distanciamento histórico é essencial para que possamos abordar questões delicadas, temas tabu. Talvez se possa dizer que o maior avanço da historiografia recente consista nessa busca de objetividade: hoje podemos nos lembrar de que setores significativos da sociedade apoiaram a derrubada de João Goulart. Jovens pesquisadores têm dado grandes contribuições: Aline Presot comprovou que as Marchas da Família com Deus pela Liberdade expressaram efetiva insatisfação das classes médias urbanas, não resultando apenas da “manipulação” propagandística. Mateus Capssa mostrou que alguns estudantes apoiaram o golpe de 1964. Por tudo isso, o golpe de Estado, outrora chamado de “militar”, tem sido melhor designado como “civil militar”. Historiadores como Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg têm chamado a atenção para isso. A serenidade possibilitada pelo recuo temporal e a grande quantidade de novas fontes documentais nos permitem antever um futuro muito promissor para as pesquisas sobre o golpe de 1964.

Isso é essencial. Se entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um “revisionismo reacionário” que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se trata da reafirmação de algo óbvio: não há fatos históricos simples. Entender porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas vezes vitimou a história de nossa República.

Carlos Fico é historiador, professor da UFRJ e autor dos livros “Além do golpe — Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar” e “O grande irmão — Da Operação Brother Sam aos anos de chumbo”

segunda-feira, janeiro 27, 2014

Entendendo o liberalismo

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,liberais-e-liberais,1122964,0.htm

Liberais e liberais

E-mai: llosa@estado.com.br / Site: www.llosa.com.br

26 de janeiro de 2014 | 2h 03

Mario Vargas Llosa* - O Estado de S.Paulo
Assim como os seres humanos, as palavras mudam de conteúdo dependendo do tempo e do lugar. Acompanhar suas transformações é instrutivo, embora, às vezes, como ocorre com o vocábulo "liberal", semelhante averiguação possa fazer com que nos extraviemos num labirinto de dúvidas.
No Quixote e na literatura de sua época, a palavra aparece várias vezes. O que significa em tal contexto? Homem de espírito aberto, bem educado, tolerante, comunicativo; em suma, uma pessoa com a qual se pode simpatizar. Nela não há conotações políticas nem religiosas, apenas éticas e cívicas no sentido mais amplo de ambos os termos.
No fim do século 18, esse vocábulo muda de natureza e adquire matizes que têm a ver com as ideias sobre a liberdade e o mercado, dos pensadores britânicos e franceses do Iluminismo (Stuart Mill, Locke, Hume, Adam Smith, Voltaire). Os liberais combatem a escravidão e o intervencionismo do Estado, defendem a propriedade privada, o livre comércio, a concorrência, o individualismo, e declaram-se inimigos dos dogmas e do absolutismo.
No século 19, um liberal é acima de tudo um livre pensador: ele defende o Estado laico, quer separar a Igreja do Estado, emancipar a sociedade do obscurantismo religioso. Suas divergências com os conservadores e os regimes autoritários geram, às vezes, guerras civis e revoluções. O liberal de então é o que hoje chamaríamos um progressista, defensor dos direitos humanos (conhecidos desde a Revolução Francesa como Direitos do Homem) e da democracia.
Com o aparecimento do marxismo e a difusão das ideias socialistas, o liberalismo passa da vanguarda para a retaguarda, por defender um sistema econômico e político - o capitalismo - que o socialismo e o comunismo querem abolir em nome de uma justiça social que identificam com o coletivismo e o estatismo (essa transformação do termo liberal não ocorre em todas as partes). Nos Estados Unidos, um liberal é ainda um liberal, um social-democrata ou pura e simplesmente um socialista. A conversão da vertente comunista do socialismo para o autoritarismo impele o socialismo democrático para o centro político e o aproxima - sem juntá-lo - ao liberalismo.
Nos nossos dias, liberal e liberalismo significam, dependendo das culturas e dos países, coisas distintas e às vezes contraditórias. O partido do tiranete nicaraguense Anastacio Somoza dizia-se liberal, e assim se denomina, na Austrália, um partido neofascista. A confusão é tão extrema que regimes ditatoriais como os de Pinochet no Chile e o de Fujimori no Peru são chamados às vezes "liberais" ou "neoliberais" porque privatizaram algumas empresas e abriram mercados. Desta degeneração da doutrina liberal não são totalmente inocentes alguns liberais convencidos de que o liberalismo é uma doutrina essencialmente econômica, que gira em torno do mercado como uma panaceia mágica para a solução de todos os problemas sociais. Estes logaritmos viventes chegam a formas extremas de dogmatismo, e se dispõem a fazer tais concessões no campo político à extrema direita e ao neofascismo que contribuem para desprestigiar as ideias liberais e para que sejam vistas como uma máscara da reação e da exploração.
Dito isso, é verdade que alguns governos conservadores, como os de Ronald Reagan nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha, realizaram reformas econômicas e sociais de inequívoca raiz liberal, impulsionando a cultura da liberdade de maneira extraordinária, embora em outros campos a fizessem retroceder. Poderíamos dizer o mesmo de alguns governos socialistas, como o de Felipe González na Espanha ou o de José Mujica no Uruguai, que, na esfera dos direitos humanos, promoveram o progresso em seus países reduzindo injustiças inveteradas e criando oportunidades para os cidadãos de renda inferior.
Nos nossos dias, uma das características do liberalismo é que pode ser encontrado nos lugares mais impensados e, às vezes, brilha pela ausência onde certos ingênuos acreditam vê-lo. Pessoas e partidos devem ser julgados não pelo que dizem e pregam, mas pelo que fazem. No debate que se desenrola nos dias de hoje no Peru sobre a concentração dos veículos de comunicação, alguns defensores da aquisição pelo grupo El Comercio da maioria das ações de Epensa, o que lhe confere quase 80% do mercado da imprensa, são jornalistas que silenciaram ou aplaudiram quando a ditadura de Fujimori e Montesinos cometia seus crimes mais hediondos e manipulava toda a informação, comprando ou intimidando donos e redatores de jornais. Como poderíamos levar a sério esses novíssimos catecúmenos da liberdade?
Um filósofo e economista liberal da chamada escola austríaca, Ludwig von Mises, opunha-se à existência de partidos liberais, porque, na sua opinião, o liberalismo devia ser uma cultura que irrigasse um leque muito amplo de formações e movimentos que, embora tivessem importantes discrepâncias, compartilhavam de um denominador comum sobre certos princípios liberais básicos.
Algo disso ocorre há bastante tempo nas democracias mais avançadas, onde, com diferenças mais de matiz do que de essência, entre democratas-cristãos e social-democratas e socialistas, liberais e conservadores, republicanos e democratas, há alguns consensos que dão estabilidade às instituições e continuidade às políticas sociais e econômicas, um sistema que só se considera ameaçado por seus extremos, o neofascismo da Frente Nacional na França, por exemplo, ou a Liga Lombarda na Itália, e grupos e grupelhos ultra comunistas e anarquistas.
Na América Latina, esse processo se dá de maneira mais pausada e com maior risco de retrocesso do que em outras partes do mundo, em razão da debilidade em que se encontra ainda a cultura democrática, que tem uma tradição somente em países como Chile, Uruguai e Costa Rica, enquanto nos demais é muito mais precária. Mas começou a acontecer, e a maior prova disso é que as ditaduras militares praticamente se extinguiram e que, dos movimentos armados revolucionários, sobrevive a duras penas o das Farc colombianas, com um apoio popular decrescente. É verdade que há governos populistas e demagógicos, deixando de lado o anacronismo que é Cuba, mas a Venezuela, por exemplo, que aspirava a ser o grande fermento do socialismo revolucionário latino-americano, vive uma crise econômica, política e social tão profunda, com a grande desvalorização de sua moeda, a carestia demencial - falta tudo, comida, água, até papel higiênico - e as iniquidades da delinquência, que dificilmente poderia agora ser o modelo continental no qual queria transformá-la o comandante Chávez.
Há certas ideias básicas que definem um liberal. Por exemplo, a liberdade, valor supremo, é una e indivisível, e deve atuar em todos os campos para garantir o verdadeiro progresso. A liberdade política, econômica, social cultural, é uma só e todas elas permitem o avanço da justiça, da riqueza, dos direitos humanos, das oportunidades e da coexistência pacífica em uma sociedade. Se a liberdade se eclipsa em apenas um desses campos, ela se encontra armazenada em todos os outros. Os liberais acreditam que o Estado pequeno é mais eficiente do que o que cresce demasiado e, quando isso ocorre, não só a economia se ressente, como também o conjunto das liberdades públicas. Eles acreditam que a função do Estado não é produzir riqueza, e essa função é melhor desempenhada pela sociedade civil, num regime de livre mercado, no qual são proibidos os privilégios e a propriedade privada é respeitada. Indubitavelmente, a segurança, a ordem pública, a legalidade, a educação e a saúde competem ao Estado, mas não de maneira monopólica, e sim em estreita colaboração com a sociedade civil.
Estas e outras convicções gerais de um liberal têm, na hora de serem aplicadas, fórmulas e matizes muito diferentes relacionados ao grau de desenvolvimento de uma sociedade, de sua cultura e de suas tradições. Não há fórmulas rígidas e receitas únicas para que as ponhamos em prática. Forçar reformas liberais de maneira abrupta, sem consenso, pode provocar frustração, desordens e crises políticas que põem em risco o sistema democrático. Este é tão essencial ao pensamento liberal como o da liberdade econômica e o do respeito pelos direitos humanos. Por isso, a difícil tolerância - para quem, como nós, espanhóis e latino-americanos, tem uma tradição dogmática e intransigente tão forte - deveria ser a virtude mais apreciada entre os liberais. Tolerância significa simplesmente aceitar a possibilidade do erro nas próprias convicções e de verdade nas alheias.
Por isso, é natural que haja entre os liberais discrepâncias, e às vezes muito sérias, sobre temas como o aborto, os casamentos gays, a legalização das drogas e outros. Sobre nenhum desses temas existem verdades reveladas. A verdade, como estabeleceu Karl Popper, é sempre provisória, válida apenas enquanto não surgir outra que a qualifique ou a refute. Os congressos e encontros liberais costumam ser frequentemente parecidos com os dos trotskistas (quando existia o trotskismo): batalhas intelectuais em defesa de ideias contrapostas. Alguns veem nisso um traço de inoperância e irrealismo. Acredito que essas controvérsias entre o que Isaias Berlin chamava de "as verdades contraditórias" fizeram com que o liberalismo continue sendo a doutrina que mais contribuiu para melhorar a coexistência social, promovendo o avanço da liberdade humana.
*Mario Vargas Llosa é Prêmio Nobel de Literatura.
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA