quarta-feira, junho 29, 2011

Aviso aos comentaristas

Devido aos maus modos de alguns, a partir de agora os comentários anônimos não serão mais permitidos.

terça-feira, junho 28, 2011

Pedófilo por acidente

Da revista Mente Cérebro: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/pedofilo_por_acidente.html

edição 222 - Julho 2011
Pedófilo por acidente
Um tumor ou um trauma podem alterar a personalidade, fazendo com que pessoas se tornem, de uma hora para outra, violentas e apresentem compulsões sexuais desenfreadas
por Daniela Ovadia
© deborah roundtree/the image bank/getty images
Março de 1999. A mulher de C. se recorda bem quando numa tarde sua filha de 8 anos confessou ter sido molestada pelo padrasto, de 40 anos. Inicialmente incrédula, a mulher resolveu investigar e descobriu que o marido, um professor do ensino médio, íntegro membro da comunidade de uma pequena cidade da Virgínia, nos Estados Unidos, conservava na garagem uma coleção de revistas pornográficas, muitas delas com conteúdo explicitamente pedófilo. Não apenas isso: examinando o disco rígido do computador de casa, ela descobriu que, em vez de passar parte das noites preparando suas aulas, o homem com quem se casara visitava sites de conteúdo sexual nos quais eram veiculadas imagens de adolescentes e crianças.


Para proteger a filha, a mulher prestou queixa: o marido, abordado na saída da escola, acusado de assédio sexual de menor, foi detido e processado. No decorrer da audiência, C. contou sobre seu interesse por pornografia, que surgira pela primeira vez durante a adolescência, mas negou terminantemente ter tido impulsos pedófilos antes, salvo nos últimos meses. “Estou desesperado”, disse ao juiz. “Sei que o que fiz é horrível, mas não consigo entender. Sempre gostei de revistas pornográficas, como muitos homens, mas isso nunca interferiu na minha vida pessoal, no meu casamento, tampouco na minha relação com minha enteada, que considero como uma filha, ou com meus alunos. Há alguns meses, porém, não consigo me controlar: sou atraído por sites pedófilos e, pela primeira vez na vida, procurei uma prostituta. Juro que não queria, mas não pude me conter.”


O juiz decretou seu afastamento da casa e a obrigação de frequentar, como alternativa à prisão, um centro de reabilitação para maníacos sexuais, que dispunha de um programa de acompanhamento psicológico com 12 sessões. Além disso, foi imposto a C. um tratamento farmacológico com medroxiprogesterona, hormônio que inibe o impulso sexual masculino. Embora o professor desejasse com todas as suas forças evitar a prisão, era preciso reconhecer que após os primeiros meses de tratamento a situação não havia melhorado: quando começou a molestar os pacientes e o pessoal do centro de reabilitação, o juiz revogou a medida alternativa e decretou que ficasse detido.
Na noite anterior à prisão, em janeiro de 2000, C. queixou-se de forte dor de cabeça e foi levado ao pronto-socorro. O médico de plantão considerou a hipótese de que a queixa fosse uma simulação para evitar a detenção; mesmo assim o internou no setor de psiquiatria com o diagnóstico de pedofilia.


No dia seguinte, porém, o paciente caiu enquanto tomava banho, e foi requisitada a presença de um neurologista para examiná-lo. O especialista encontrou um quadro clínico realmente grave. Deitado no chão, imerso na própria urina, C. gritava e se debatia, convidando as enfermeiras e outras funcionárias que passavam a manter relações sexuais com ele. Também apresentava alguns sinais neurológicos, como pequena inclinação do lábio para a esquerda, acompanhada por uma série de reflexos patológicos: indício de comprometimento do córtex cerebral frontal. Uma anamnese mais cuidadosa revelou que as dores de cabeça haviam surgido dois anos antes, mais ou menos na mesma época das primeiras pulsões pedófilas.


Os médicos solicitaram a realização de um exame de ressonância magnética, que revelou a presença de um grande tumor na fossa craniana anterior. A massa se deslocava e comprimia o lobo frontal direito. C. era capaz de ler, mas sua escrita era incompreensível; além disso, mostrava sinais de apraxia, isto é, a incapacidade de executar movimentos coordenados que em geral são controlados exatamente pelo lobo frontal.
© jurgen reisch/riser/getty images
Uma longa e delicada intervenção cirúrgica permitiu a retirada do tumor, um emangiopericitoma – tipo raro de neoplasia maligna que compromete a vascularização das áreas atingidas. Com a erradicação do tumor, desapareceu também o apetite sexual do paciente e, sobretudo, o impulso pedófilo: após a cirurgia ele voltava a ser o professor tranquilo que todos conheciam. A mulher de C. começou a encontrar-se novamente com ele e, após sete meses, nos quais o ex-marido frequentou assiduamente um grupo de dependentes de sexo anônimo, ela o acolheu em casa, depois do parecer do médico: C. já não representava nenhuma ameaça para a menina e, de qualquer modo, seria importante para ambos restabelecer a relação interrompida de modo tão traumático.


Entretanto, em outubro de 2001 a dor de cabeça voltou – e com ela a tendência a acumular material pornográfico: porém, desta vez C. sabia do que se tratava e foi diretamente ao hospital. O exame de ressonância confirmou a suspeita: o tumor voltara. Uma segunda cirurgia, realizada em fevereiro de 2002, foi bem-sucedida – e novamente desapareceu o apetite sexual exacerbado.


O caso de C., publicado pela revista médica Archives of Neurology, atraiu a atenção de neurocientistas de vários países, em particular daqueles que estudam a consciência (a função da mente destinada à interação com o ambiente e com o próximo e, sobretudo, à determinação do comportamento individual). Que o córtex – e em particular a área pré-frontal – desempenha um papel fundamental no controle das pulsões é notório há quase 150 anos. Em 1848, o operário Phineas Gage, homem tranquilo, honrado e religioso, foi atingido por um pedaço de metal que se instalou em seu lobo frontal em consequência de um acidente de trabalho. Gage sobreviveu, mas sua personalidade mudou radicalmente: tornou-se violento, desbocado, e sua conduta moral passou a ser duvidosa. Este caso clássico possibilitou o surgimento das neurociências modernas, que atribuem função precisa para cada área cerebral.
A situação vivida por C., porém, pertence a outra categoria. Ele não apresenta alteração da consciência em relação ao reconhecimento do que é certo ou errado. Então, como é possível que uma doença mude radicalmente a personalidade de um homem, a ponto de fazer com que cometa atos que ele próprio considera abomináveis? Que sentido tem o livre-arbítrio se uma alteração química no cérebro pode transformar uma pessoa com princípios éticos em um criminoso? Se somos realmente determinados pelo nosso cérebro, que sentido tem a moral, compreendida como criação do intelecto? Enfim: seria possível punir alguém por uma ação fraudulenta?


Os cientistas da mente questionam acerca desses pontos, em particular os pesquisadores que se dedicam ao estudo da consciência. A respeito disso, o biofísico Francis Crick (1916-2004), Prêmio Nobel em 1962 pela descoberta da dupla hélice de DNA, afirmou: “Nosso senso de identidade pessoal e de livre-arbítrio não são outra coisa senão o resultado do comportamento de um grande número de células neurais e de moléculas associadas a elas”. Crick foi personagem muitas vezes controverso devido a suas posições radicais em defesa de uma biologia essencialmente materialista, mas outro grande neurocientista e também filósofo, Daniel Dennett, atualmente professor da Universidade Tofts, nos Estados Unidos, trabalhou com ele em uma série de experiências conduzidas com o objetivo de estabelecer o quanto de “voluntário” existe nas decisões que tomamos.


Para estudar este momento crucial da consciência, os experimentadores submeteram um grupo de voluntários a uma ressonância magnética funcional, pedindo a eles que mexessem em determinados momentos o pulso de uma mão, e um relógio indicava o momento exato em que decidiam executar o movimento. O exame de imagem revelou que a ativação das áreas motoras pré-frontais, consideradas a “sede da vontade”, precede em cerca de 200 milésimos de segundo – um piscar de olhos – o momento em que o indivíduo tem realmente consciência de ter tomado uma decisão. Traduzindo: segundo os autores, a experiência demonstra que é o nosso cérebro que decide por nós – e não nós por ele. E o que o professor C. tem a ver com tudo isso? Certamente no seu caso a “decisão” de se tornar pedófilo foi tomada pelo cérebro, ou melhor, pela alteração provocada pela patologia.
O futuro imaginado

C. faz parte de um restrito círculo de pessoas que conseguiram demonstrar que não são responsáveis por um delito, embora tivessem consciência dele. Na prática, uma variante muito complexa da incapacidade de compreender e querer, porque os criminosos, nesses casos, entendem e desejam, mas o problema é que são guiados por seu cérebro doente. Psicólogos, em geral, chamam a atenção para o fato de o paciente gostar de pornografia, embora de maneira branda, mesmo antes de ficar doente, o que pode nos levar a considerar que a doença apenas teria “liberado” uma pulsão preexistente. Segundo o neurocientista britânico Steven Rose, o ser humano é determinado não só pela própria natureza biológica, mas também pela interação dela com o ambiente, em um delicado equilíbrio que ele define como “biossocial”. Na opinião de Rose, na prática, o cérebro tem a possibilidade de imaginar o futuro e, portanto, tomar decisões, considerando as consequências dos atos. “Vivendo como fazemos, na interface de múltiplos determinismos, nos tornamos capazes de construir o nosso futuro, mas sempre no âmbito de circunstâncias que não temos o poder de escolher”, disse Rose, que também aplicou ao caso de C. a teoria do livre-arbítrio do filósofo escocês David Hume. O pensador considerava o ser humano ao mesmo tempo livre e predeterminado. Para Hume, um pedófilo está predisposto a agir como tal por estar sujeito a intensos impulsos mas, se não for louco – em algum nível – tem a capacidade de evitar as tentações, ou pelo menos buscar ajuda para evitá-las.
Cérebros em busca de problemas
Em 1979, Dan White, que matou a tiros o prefeito de São Francisco e seu assistente, foi condenado por homicídio culposo – não intencional –, pois seu advogado demonstrou que o acusado havia ingerido uma quantidade excessiva de doces e refrigerantes pouco antes do delito. A glicemia elevada teria feito com que ele perdesse o controle.


Em 1995, o advogado William Aramony, dirigente de uma associação de caridade, foi acusado do roubo de centenas de milhares de dólares. O advogado alegou não ter sido Aramony o autor do roubo, mas sim seu cérebro, pois nos últimos dez anos havia sofrido diversos traumas cranianos, comprovados por exames de ressonância magnética. O promotor preferiu fazer um acordo a correr o risco de ver o acusado ser absolvido pelo júri popular.


Em 2001, o inglês Stephen Tame caiu de um andaime e sofreu um trauma violento, que o obrigou a um longo período de internação devido a ferimentos pelo corpo e problemas neurológicos. Seu comportamento mudou repentinamente: de marido fiel se transformou em um maníaco por sexo, continuamente à procura de prostitutas. Depois que sua mulher, cansada das contínuas traições e das pretensões do insaciável marido, pediu o divórcio, Tame pleiteou uma indenização milionária à empresa para a qual trabalhava. Meses depois, um tribunal inglês reconheceu a legitimidade do caso.
Daniela Ovadia é jornalista.

domingo, junho 26, 2011

Dr. Heidegger's Experiment

Um conto genial de Nathaniel Hawthorne, publicado aqui por obra e graça da excelente American Library: http://storyoftheweek.loa.org/2011/06/dr-heidegger-experiment.html.

terça-feira, junho 21, 2011

A importância das palavras

Nestes tempos em que a crueza é considerada normal nos meios de comunicação, esta matéria dá o que pensar:



17 de junho de 2011
Precisamos de palavras para pensar?
O que ouvimos ou escolhemos dizer afeta a intensidade de nossas ondas cerebrais
© Cienpies Design/Shutterstock
Muitos cientistas argumentam que o raciocínio necessita dos vocábulos para ser produzido, apoiando-se na ideia de que o pensar seria uma espécie de conversa subjetiva consigo mesmo. Outros alegam que recorremos, antes das palavras, a “uma linguagem do pensamento”, fundamentada em imagens mentais e abstrações. Há ainda aqueles que defendem que apenas para alguns tipos de raciocínio as palavras são indispensáveis, o que nos leva a considerar o funcionamento linguístico em mais de um “módulo”.


Qualquer que seja o caso, na maioria das vezes as palavras que escolhemos dizer – ou ouvimos – afetam nossos pensamentos. É o caso, por exemplo, de termos ofensivos, agressões e palavrões, que tendem a causar exaltação física, como aumento da pressão sanguínea e dos batimentos cardíacos. Já palavras doces, ditas de forma amorosa, tendem a nos mobilizar afetivamente, despertando ternura. Estudos recentes desenvolvidos na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, por meio de técnicas de imageamento, revelaram que as ondas cerebrais de quem fala e de quem ouve tendem a se tornar similares. E quanto mais o ouvinte está receptivo ao que escuta, mais seu cérebro se “adapta” ao do interlocutor. O que os estudiosos não sabem ainda é quanto essa proximidade tem a ver com as palavras em si ou com a entonação, com a empatia despertada pela voz e com as mais diversas associações afetivas possíveis.


Outro ponto curioso descoberto por neurocientistas é que, dependendo da língua materna, usamos uma parte específica do cérebro para resolver problemas que exigem raciocínio. A diferença é visível, por exemplo, quando grupos de voluntários chineses e americanos são convidados a resolver questões simples de matemática enquanto são monitorados por exames de neuroimagem. Nessas situações é possível constatar que áreas neurais diferentes são acionadas em pessoas das duas nacionalidades.

quinta-feira, junho 16, 2011

O Cristianismo como um ideal, não como casuística

Lendo O Reino de Deus Está Dentro de Vós, de Tolstói, uma das obras que mais contribuíram para a formação de Gandhi. Um trecho em particular me chamou muito a atenção e, creio, me iluminou o sentido do desafio representado não só pela moral cristã, mas por sua similares noutras culturas. Divido com vocês:

-------------

A doutrina de Cristo não parece excluir a possibilidade da vida, senão quando é considerada como regra aquilo que é apenas a indicação de um ideal. Só neste caso os preceitos de Cristo parecem inconciliáveis com as necessidades da vida, enquanto, ao contrário, só eles oferecem a possibilidade de uma vida justa.

“Não se deve pedir demais, dizem os homens freqüentemente, discutindo as exigências da doutrina cristã. Não se pode deixar de pensar no amanhã, como está dito no Evangelho, mas é preciso também não se preocupar demais; não se pode dar tudo aos pobres, mas é preciso dar-lhes com moderação; não se pode guardar uma castidade absoluta, mas é preciso fugir da depravação; não é preciso abandonar a mulher e filhos, mas não é preciso ter por eles um amor exclusivo demais etc."

Falar assim, é como dizer a um homem, que atravessa contra a correnteza um rio veloz, que ele não deve remar assim, mas em linha reta em direção ao ponto da margem que deseja alcançar.

A doutrina de Cristo distingue-se das antigas doutrinas no fato de dirigir os homens não com regras externas, mas com a consciência que têm da possibilidade de alcançar a perfeição divina. E a alma humana não contém regras moderadas de justiça e filantropia, mas o ideal da perfeição divina, inteira e infinita. Só a busca desta perfeição modifica o curso da vida humana, do estado animal ao estado divino, tanto quanto isto é humanamente possível.

Para chegar ao lugar desejado, é preciso dirigir-se, com todas as forças, a um ponto muito mais alto.

Baixar o nível do ideal é não só diminuir as probabilidades de alcançar a perfeição, mas destruir o próprio ideal. O ideal que nos atrai não foi inventado por ninguém; cada homem traz no coração. Só este ideal de absoluta e infinita perfeição nos seduz e nos atrai. Uma perfeição possível perderia qualquer influência sobre a alma humana.

A doutrina de Cristo tem grande poder exatamente porque requer a perfeição absoluta, isto é, a identificação do sopro divino que se encontra na alma de cada homem com a vontade de Deus, identificação do filho com o Pai. Libertar do animal o filho de Deus que vive em cada homem e aproximá-lo do Pai, apenas nisto está a vida, segundo a doutrina de Cristo.

A existência apenas do animal, no homem, não é a vida humana. A vida, somente segundo a vontade de Deus, tampouco é a vida humana. A vida humana é o conjunto da vida divina e da vida animal e, quanto mais este conjunto se aproxima da vida divina, mais é vida.

A vida segundo a doutrina cristã é o caminho para a perfeição divina. Nenhum estágio, conforme esta doutrina, pode ser mais alto ou mais baixo do que o outro. Cada estágio não é senão uma etapa para uma perfeição irrealizável e, por conseqüência, não constitui por si só um grau mais ou menos alto da vida. O aumento da vida é apenas uma aceleração do movimento em direção à perfeição. Por isso o ímpeto para a perfeição do coletor de impostos Zaqueu, da pecadora, do ladrão na cruz constitui um mais alto grau da vida do que a imóvel infalibilidade do fariseu. Por isso não podem existir regras obrigatórias para esta doutrina. O homem colocado num grau inferior, caminhando em direção à perfeição, tem uma melhor conduta moral,observa mais a doutrina do que o homem colocado num grau bem mais alto, mas que não se encaminha para a perfeição.

É neste sentido que a ovelha desgarrada é mais cara ao Pai do que as outras; o filho pródigo, a moeda perdida e reencontrada são mais amados do que aqueles que nunca foram considerados perdidos.

O cumprimento da doutrina está no movimento do eu em direção a Deus. É evidente que isto não pode ter leis ou regras determinadas. Qualquer grau de perfeição ou imperfeição é igual frente a esta doutrina, cujo cumprimento não se constitui na obediência a lei alguma; por isso não podem existir regras ou leis obrigatórias.

Desta diferença radical entre a doutrina de Cristo e todas aquelas que a precederam, baseadas sobre o conceito social da vida, resulta também a diferença entre as leis sociais e os preceitos cristãos.

As leis sociais são, em sua maioria, positivas, recomendando certos atos, justificando e absolvendo os homens. Ao contrário, os preceitos cristãos (o mandamento do amor não é um preceito no verdadeiro sentido da palavra, mas a expressão do próprio sentido da doutrina), os cinco mandamentos do Sermão da Montanha são todos negativos e não indicam senão aquilo que, num certo grau de
desenvolvimento da humanidade, os homens não mais devem fazer. De qualquer forma, estes preceitos são como pontos de encontro na rota infinita da perfeição, em cuja direção caminha a humanidade, e os graus de aperfeiçoamento acessível num dado período de desenvolvimento.

No Sermão da Montanha, Cristo mostrou simultaneamente o ideal eterno ao qual os homens devem aspirar e os graus que já podem alcançar em nossos dias.

O ideal é não desejar fazer o mal, não provocar a male-volência, não odiar o próximo. Quanto ao preceito que indica um dos graus abaixo do qual não se pode mais descer para alcançar este ideal, este é o da proibição de ofender os homens com a palavra. E este é o primeiro mandamento.

O ideal é não se preocupar com o amanhã e, sim, viver o presente. O mandamento que indica outro grau abaixo do qual não se pode descer é não jurar, nada prometer para amanhã. E este é o terceiro mandamento.

O ideal é nunca usar a violência para qualquer fim. O mandamento que indica um outro grau abaixo do qual não se pode descer é não pagar o mal com o mal, sofrer a ofensa, dar a própria veste. E este é o quarto mandamento.

O ideal é amar aqueles que nos odeiam. O mandamento que indica mais outro grau abaixo do qual não se pode descer é não fazer mahaos próprios inimigos, falar bem deles, não fazer diferença entre eles e os amigos. E este é o quinto mandamento.

Todos estes mandamentos são indicações daquilo que, na rota da perfeição, não mais devemos fazer, daquilo que agora nos devemos esforçar para transformar, pouco a pouco, em hábitos instintivos; mas, longe de constituir a doutrina de Cristo e de contê-la por inteiro, estes mandamentos são apenas uma das inúmeras etapas na rota da perfeição. E devem ser seguidos por mandamentos sempre superiores.

Por isto, cabe à doutrina cristã formular exigências mais altas que as expressas por estes mandamentos, e não diminuí-los, como pensam os homens que julgam esta doutrina sob o ponto de vista do conceito social da vida.

segunda-feira, junho 13, 2011

"Os seres humanos não são apenas animais mais inteligentes"

Achei interessante esta artigo, que trata de um dos "mitos" da nossa época. Digo "mito" no sentido de uma crença amplamente partilhada, não necessariamente no de mentira ou equívoco, embora pessoalmente ache que seja ao menos em parte. Não acho que nossa herança animal seja parte desprezível de nossas motivações, mas, por outro lado, não posso deixar de reconhecer que há uma forte tendência em nosso tempo de explicar o comportamento humano através de paralelismos com os animais, como se isso fosse suficiente. É uma forma de naturalização que pode dar a entender também uma legitimação: se meus ancestrais e atuais primos biológicos são polígamos, por exemplo, não seria uma violência contra a minha natureza eu também não ser? Isso sem falar no raciocínio circular de como certos comportamentos são lidos como funcionais pelas teses evolucionistas: se ainda existe, é porque é útil, e a partir daí explico como ele pode ter contribuído para a espécie e voilà, tenho uma afirmação aceitável e não verificada sendo chamada de científica (o que, nas sociedades modernas, equivale quase a dizer que "sagrada").

-----------
13/06/2011 -


Prospect
Raymond Tallis*

Nem todas as ideias erradas são dignas de se contestar. Existem algumas, porém, que não podem ser ignoradas. Aquelas que interpretam erroneamente questões de suprema importância, ou atrapalham nosso pensamento sobre elas, ou têm sérias consequências, devem ser discutidas.

Uma dessas ideias é a de que os seres humanos são essencialmente animais; ou no mínimo muito mais animalescos do que havíamos pensado. Ela leva a alegações de que somos apenas macacos inteligentes, de que nossas mentes não passam de sinais elétricos no cérebro.

Existem inúmeras manifestações desse "biologismo". Ele é explicado em milhares de livros e artigos sobre a chamada neuroestética, teoria dos memes, neurodireito e em abordagens neuroevolucionistas da política e da economia. Seus defensores afirmam, por exemplo, que somos capazes de compreender melhor a arte visual rastreando o cérebro para estudar sua reação, ou que a criminalidade é melhor explicada por um desequilíbrio entre os lobos frontais e o corpo amigdaloide.

Passei mais de 30 anos argumentando contra o biologismo, e recentemente escrevi "Aping Mankind: Neuromania, Darwinitis and the Misrepresentation of Humanity" ['Macacando' a humanidade: Neuromania, darwinite e a representação errônea da humanidade]. A principal suposição que sustenta o biologismo é que os seres humanos são essencialmente organismos, em vez de pessoas. Para realmente compreendê-los, diz a teoria, é preciso admitir que eles não são agentes conscientes, mas pedaços de matéria viva sujeitos às leis da biosfera.

O biologismo tem duas correntes, que eu chamo de neuromania e darwinite. A neuromania se baseia na crença de que a consciência humana é idêntica à atividade cerebral. Existem, é claro, correlações entre a atividade cerebral e aspectos da consciência. Estas podem ser demonstradas observando-se que partes do cérebro se "acendem" quando os sujeitos relatam determinadas experiências. No entanto, isso não quer dizer que a atividade neural é uma causa suficiente desses aspectos da consciência: que, por exemplo, os eventos vistos no córtex orbitofrontal quando vemos um objeto bonito sejam toda a causa de nossa experiência da beleza, e ainda menos que eles sejam nossa experiência da beleza.

Na verdade, não há uma explicação neural concebível de muitos aspectos da consciência humana. Um registro de impulsos neurais não pode explicar a simultaneidade e multiplicidade de um momento. Estou consciente, por exemplo, da tela do computador à minha frente, das letras que se espalham por ela, da luz do sol lá fora e de pássaros cantando. Essas coisas são experimentadas separadamente, e no entanto como pertencentes a um único momento presente. Este muitos-em-um é uma noz muito mais dura de quebrar do que o mistério da Trindade.

Mais importante ainda, a atividade neural não oferece explicação sobre a fonte da "referencialidade": a qualidade essencial da consciência, que significa que minhas percepções, crenças e esperanças se referem a algo diferente de impulsos neurais. A referencialidade dos conteúdos da consciência - que os filósofos tradicionalmente chamam de "intencionalidade" - é plenamente desenvolvida nos seres humanos, que são conscientes de si mesmos como separados de seus mundos de objetos, signos e conceitos. E a intencionalidade é a origem última da esfera humana: a comunidade de mentes, tecida por um trilhão de apertos de mão cognitivos ou atenção compartilhada, dentro da qual nossa liberdade opera e nossas vidas narradas são conduzidas.

O outro pilar do biologismo - a darwinite - também decorre do erro de identificar a mente com o cérebro. Se o cérebro é um órgão que evoluiu para otimizar as probabilidades de sobrevivência, segundo essa teoria, a mente também é. A darwinite, consequentemente, confunde a evolução biológica da espécie com o desenvolvimento de nossa cultura. A teoria da evolução descreve os processos da seleção natural que sem dúvida deram origem ao Homo sapiens. Mas é errado concluir que se aceitarmos essa teoria também teremos de procurar uma explicação evolucionista da gênese e da forma da cultura humana.

Mas a darwinite é ainda mais vulnerável a ataques que a neuromania. Veja a diferença entre uma hora de vida animal e uma hora de vida humana. Admito que apreciar a diferença é mais difícil quando falamos em linguagem que animaliza o comportamento humano e humaniza o comportamento animal. Daisy, a vaca, bate em um arame elétrico e a partir de então o evita. Eu decido que quero melhorar minhas chances na vida, então me matriculo em um curso que começa no ano que vem e contrato uma babá para que eu tenha mais tempo para estudar. Tanto Daisy como eu podemos ser descritos como praticantes do "comportamento aprendido", mas isso oculta diferenças profundas. Estas incluem meu complexo sentido de tempo e o fato de que estou lidando com estruturas e hábitos abstratos. Nós conduzimos nossas vidas, regulando-as por narrativas compartilhadas e individuais, enquanto os animais meramente as vivem.

Muitas pessoas acreditam que o biologismo decorre inevitavelmente da teoria evolucionista. As pessoas muitas vezes pensam que sou um criacionista ou um prosélito de alguma religião. Para constar, sou um ateu humanista, um médico e neurocientista para quem a ciência é nosso maior monumento intelectual. Sou um agnóstico ontológico, não um dualista cartesiano. Só porque eu nego a identidade da mente com a atividade cerebral, não significa que eu considere a mente como um fantasma no maquinário do cérebro.

Acredito que há muito trabalho a ser feito para dar sentido a um mundo que contém objetos materiais como seixos ou cérebros e itens mentais como pensamentos e experiências. Não aceito que a única alternativa a um relato sobrenatural da humanidade seja um naturalista. Entre o nascimento e a morte, habitamos uma comunidade de mentes, um mundo humano que vai além da natureza, onde podemos conscientemente usar o que aprendemos sobre as leis da natureza para fins não pretendidos na biosfera.

Isto levanta perguntas sobre como chegamos a ser tão diferentes, onde se situa a mente humana no universo material e quais são os limites de nossa capacidade de nos transformarmos. Se rejeitarmos a ideia de que a atividade neural é idêntica à consciência, como deveremos entender o papel central que o cérebro tem em nossa vida consciente? Mas não faremos progresso com essas perguntas enquanto pensarmos que já as respondemos. Em particular, enquanto ignorarmos os aspectos irredutivelmente relacionais da consciência humana - sua referencialidade, sua participação na comunidade de mentes, em que sujeito e objeto são parceiros inseparáveis -, ficaremos pendentes de perguntas estéreis sobre onde ela se localiza, senão no cérebro.

O biologismo também importa porque defende uma concepção degradada da humanidade. Não é histeria sugerir que relatos de pessoas como organismos vorazes, dominados por imperativos biológicos dos quais não têm consciência, poderiam se autorrealizar.

Enganos que têm uma aceitação tão ampla quanto os que acabei de descrever não poderiam ficar sem consequências. Eles impedem nosso caminho para melhores respostas, para o que somos e para uma melhor compreensão de nossa relação com o mundo físico que nos cerca.

*Raymond Tallis foi eleito "fellow" da Academia de Ciências Médicas por sua pesquisa sobre acidente vascular-cerebral e epilepsia?

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves


terça-feira, junho 07, 2011

Contrastes americanos



Adorei a proposta do fotógrafo Mark Laita sobre os arquétipos da sociedade americana -- muitos também presentes em qualquer sociedade moderna, diga-se. Reproduzo alguns abaixo, com legendas nas menos óbvias. O livro que ele publicou com a coleção completa, Created Equal, está disponível nesta página da Amazon.com. (O curioso é que o boxeador tem uma bandeira do Brasil no short...)





(Adolescentes amish e seus equivalentes punks)

(Caçador de peles e a consumidora de seus esforços.)


segunda-feira, junho 06, 2011

Em busca de si mesmo

Um jornal de verdade não tem medo de questões filosóficas. Eis que descobri "The Stone", uma seção do New York Times que trata de filosofia. Na edição de hoje, a questão proposta é sobre a expressão do nosso "verdadeiro eu": ele se revela por nossos valores ou por nossos desejos? Veja as implicações de cada uma dessas possibilidades -- e de outras -- aqui.

sexta-feira, junho 03, 2011

Pequena reflexão sobre coisas terríveis



Há alguns anos, depois de passar dias incomodado por uma sessão do excelente O Pianista, prometi a mim mesmo que jamais veria outro filme sobre o Holocausto. Quase quebrei a promessa quando vi Um Homem Bom, uma história espetacular sobre dilemas morais e autoilusão, mas o Holocausto só aparece explicitamente bem no final. Acabei vendo Os Falsários por insistência de um amigo, e a promessa ganhou sua primeira quebra de fato. De lá para cá, nem Bastardos Inglórios entrou no meu cardápio cinematográfico, embora goste do humor negro do Tarantino; simplesmente não tinha estômago para o assunto. O motivo era o mais prosaico da terra: não queria sair do cinema com o mal-estar que O Pianista causou.

Eis que agora me vejo dando um "laboratório" -- ou seja, um curso para muito menos alunos -- sobre genocídio e não-violência, e, claro, o dito cujo é inevitável. Desta vez, porém, em vez de histórias individuais trágicas, minha companhia foi um historiador, meu quase xará Roderick Stackelberg, autor de A Alemanha de Hitler: Origens, Interpretações, Legados. Trata-se de um grande panorama, incluindo até mesmo os debates sobre a culpa que marcaram a historiografia alemã nas décadas após a guerra, e como eles foram influenciados pelo contexto da Guerra Fria e a competição ideológica entre as duas Alemanhas. Para mim, contudo, o que interessou mesmo foram os capítulos sobre as leis de perseguição aos judeus e sobre o Holocausto em si. Alguns pontos me chamaram a atenção e até agora me intrigam.

Dos seis milhões de judeus que teriam sido assassinados pelos nazistas, mais ou menos 1,5 milhão foi eliminado fora dos campos de extermínio, em fuzilamentos ao ar livre nos territórios que as tropas alemãs foram conquistando. Boa parte morreu na antiga União Soviética, campo de ação dos temíveis Einsatzgruppen: quatro grupos de elite de 750 homens cada, que iam atrás das tropas regulares fazendo a "limpeza" de "oponentes ideológicos" nas áreas conquistadas -- leia-se judeus e membros de qualquer coisa que pudesse sugerir algum tipo de liderança, como quadros do Partido Comunista. Portanto, os nazistas não assassinavam apenas por motivos "raciais", mas também táticos: era preciso destruir a elite do país invadido, como clérigos, intelectuais e políticos (fizeram isso na Polônia, por exemplo). No caso dos Einsatzgruppen, nem sempre era necessário executar diretamente as vítimas; às vezes, o método usado era incentivar os preconceitos antissemitas locais, induzindo os moradores aos chamados pogroms. Num desses, 1500 judeus perderam a vida linchados pelos seus próprios compatriotas.

Notável também era a eficiência desses grupos. Embora eles não tivessem a rapidez do conjunto dos tenebrosos campos de extermínio, podiam alcançar níveis de matança impressionantes. No famoso massacre de Babi Yar, o Einsatzgruppe C matou 33.371 pessoas em dois dias! Dá uma média de 44 pessoas por cada membro -- mais do que a grande maioria dos assassinos seriais sonha em matar ao longo de toda a sua carreira. E isso, deve-se ressaltar, em execução fria, não em combate.

Naturalmente, tantas mortes cobram um preço e foi isso que mais me intrigou. Ao contrário do estereótipo do nazista sádico, essas execuções em grande escala afetavam os perpetradores. Pesadelos e alcoolismo eram cada vez mais comuns; o próprio Himmler, comandante da SS, passou mal ao ver a quantidade de sangue em um desses locais de assassinato em massa. A natureza da tarefa, diz Stackelberg, corroía a eficiência dos envolvidos -- e confesso que isso me aliviou um pouco. Claro que não muda o fato de que eles continuaram enquanto puderam, mas saber que eles também eram suscetíveis a trauma nos recorda que estamos tratando de seres humanos aqui, apesar de tudo. E isso me deixou curioso. Já tinha lido alguma coisa sobre o impacto que matar outra pessoa tem sobre militares -- esta é a referência que me ocorre --, mas infelizmente não tenho tido muita disponibilidade para pesquisar o assunto, e a rigor ainda não tenho. Mas acho que vou dar uma olhada nalguns outros livros que tenho por aqui. Sempre ouvi que um dos efeitos colaterais da tortura é que ela também brutaliza o torturador; não há por que isso não se aplique também a genocidas, isto é, aos executores do genocídio, aqueles que efetivamente sujam as mãos na tarefa.

Mais um ponto para uma extensa lista de interesses.