André Comte-Sponville
Amar é rejubilar-se.
ARISTÓTELES
O amor é o tema mais interessante. Primeiro em si mesmo, pela felicidade que promete ou parece prometer - ou até, às vezes, pelo que ameaça ou faz perder. Que tema entre amigos é mais agradável, mais íntimo, mais forte? Que discurso, entre amantes, é mais secreto, mais doce, mais perturbador? E que há de mais apaixonante, de si para consigo do que a paixão?
Dirão que há outras paixões além das amorosas, outros amores além dos passionais... Isso, que é mais que verdade, confirma minha afirmação: o amor é o tema mais interessante, não apenas em si - pela felicidade que ele promete ou compromete -, mas também indiretamente: porque todo interesse o supõe. Você se interessa mais pelo esporte? É que você ama o esporte. Pelo cinema? É que você ama o cinema. Pelo dinheiro? É que você ama o dinheiro, ou o que ele possibilita comprar. Pela política? É que você ama a política, ou o poder, ou a justiça, ou a liberdade... Por seu trabalho? É que você o ama, ou que você ama, em todo caso, o que ele lhe proporciona ou lhe proporcionará... Pela sua felicidade? É que você ama a si mesmo, como todo o mundo e que a felicidade outra coisa não é, sem dúvida, que o amor pelo que somos, pelo que temos, pelo que fazemos... Você se interessa pela filosofia? Ela traz o amor em seu nome (philosophía, em grego, é amor à sabedoria) e em seu objeto (há outra sabedoria, além de amar?). Sócrates, que todos os filósofos veneram, nunca pretendeu outra coisa. Você se interessa, inclusive pelo fascismo, pelo stalinismo, pela morte, pela guerra? É que você os ama, ou o que é mais verossímil, mais justo, ama o que resiste a eles: a democracia, os direitos humanos, a paz, a fraternidade, a coragem... Tantos interesses diferentes, tantos amores diferentes. Mas não há interesse sem amor, e isso me traz de volta ao meu ponto de partida: o amor é o tema mais interessante, e qualquer outro só tem interesse à proporção do amor que lhe dedicamos ou nele encontramos.
Portanto é ou amar o amor, ou não amar nada - é ou amar o amor, ou morrer. E é por isso que o amor, e não o suicídio, é o único problema filosoficamente sério.
Penso, já entenderam, no que escrevia Albert Camus, bem no início do Mito de Sísifo: "Só existe um problema filosoficamente verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia." Eu assinaria com prazer embaixo da segunda dessas frases; é o que me impede de aquiescer absolutamente com a primeira. A vida vale a pena ser vivida? O suicídio suprime o problema muito mais do que o resolve; somente o amor, que não o suprime (pois a questão se coloca todas as manhãs, e todas as noites), resolve-o mais ou menos, enquanto estamos vivos, e nos mantém em vida. Se a vida vale ou não a pena ser vivida, se vale ou não vale, melhor dizendo, a pena e o prazer de ser vivida, depende primeiro da quantidade de amor de que somos capazes. Foi o que Spinoza percebeu: "Toda a nossa felicidade e toda a nossa miséria residem num só ponto: a que tipo de objeto estamos presos pelo amor?" A felicidade é um amor feliz, ou vários; a infelicidade, um amor infeliz, ou mais nenhum amor. A psicose depressiva ou melancólica, diria Freud, caracteriza-se primeiro pela "perda da capacidade de amar" - inclusive amar a si mesmo. Não é de espantar se ela costuma ser suicida. O amor é que faz viver, já que é ele que torna a vida amável. É o amor que salva; é ele portanto que se trata de salvar.
Mas que amor? E por que objeto?
Porque o amor é múltiplo, evidentemente, do mesmo que são incontáveis seus objetos. Podemos amar o dinheiro ou o poder, já disse, mas também os amigos, mas também o homem ou a mulher por quem estamos apaixonados, mas também os filhos, os pais, qualquer um até: aquele que está ali, simplesmente, que é o que chamamos de o próximo.
Também é possível amar a Deus, para quem nele crê. E crer em si, para quem se ama pelo menos um pouco.
A unicidade da palavra, para tantos amores diferentes, é a fonte de confusão e até - porque o desejo inevitavelmente se intromete - de ilusões. Acaso sabemos do que falamos, quando falamos de amor? Não é que muitas vezes aproveitamos o equívoco da palavra para esconder ou enfeitar amores equívocos, quero dizer, egoístas ou narcísicos, para iludir a nós mesmos, para fingir amar outra coisa que nós mesmo, para mascarar - muito mais do que para corrigir - nossos erros ou nossos desacertos? O amor agrada a todos. Isso, que é mais do que compreensível, deveria nos levar à vigilância. O amor à verdade deve acompanhar o amor ao amor, ilumina-lo, guia-lo, mesmo que seja necessário moderar, talvez, seu entusiasmo. Que é preciso amar a si, por exemplo, é óbvio: senão, como poderiam nos pedir para amar ao nosso próximo como a nós mesmos? Mas amar, muitas vezes, somente a si mesmo, ou por si, é uma experiência e é um perigo. Por que, senão, nos pediram para amar também nosso próximo?
Seriam necessárias palavras diferentes para amores diferentes. Palavras é que não faltam em nossa língua: amizade, ternura, paixão, afeto, apego, inclinação, simpatia, queda, dileção, adoração, caridade, concupiscência... É só escolher, o que não é fácil. Os gregos, mais lúcidos do que nós, talvez, ou mais sintéticos, utilizavam principalmente três palavras para designar três amores diferentes. São os três nomes gregos do amor, e os mais esclarecedores que eu conheço, em todas as línguas: eros, philia, ágape. Já falei longamente deles no meu Pequeno tratado das grandes virtudes. Aqui só posso dar, brevemente, algumas pistas.
O que é eros? É a carência, e é a paixão amorosa. É o amor, segundo Platão. "O que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor." É o amor que toma, que quer possuir e conservar. Eu te amo: eu te quero. É o mais fácil. É o mais violento. Como não amar o que falta? Como amar o que não falta? É o segredo da paixão (que ela só dura na carência, na infelicidade, na frustração); é o segredo da religião (Deus é o que falta absolutamente). Como tal amor, sem a fé, seria feliz? Ele precisa amar o que não tem, e sofrer, ou amar o que já não ama (já que só ama o que falta) e se chatear... Sofrimento da paixão, tristeza dos casais: não há amor (eros) feliz.
Mas como poderíamos ser felizes sem amor? E como, enquanto amamos, não o ser? É que Platão não tem razão acerca de tudo, nem sempre. É que a carência não é o todo do amor. Às vezes também amamos o que não nos falta - às vezes amamos o que temos, o que fazemos, o que é -, e gozamos alegremente, sim gozamos o que não nos falta e nos regozijamos com isso! É o que os gregos chamavam de philia. Digamos que é o amor segundo Aristóteles ("Amar é regozijar-se") e o segredo da felicidade. Amamos então o que não nos falta, aquilo de que gozamos, e isso nos regozija, ou antes, nosso amor é essa alegria mesma. Prazer do coito e da ação (o amor que fazemos), felicidade dos casais e dos amigos (o amor que compartilhamos): não há (philia) infeliz.
A amizade? É como se costuma traduzir philia, o que não deixa de reduzir um pouco seu campo ou seu alcance. Porque essa amizade não exclui nem o desejo (que já não é falta, então, mas potência), nem a paixão (eros e philia podem se misturar, e costumam se misturar), nem a família (Aristóteles designa por philia tanto amor entre os pais e os filhos, como o amor entre os esposos; um pouco como Montaigne, mais tarde, falará da amizade marital), nem a tão perturbadora e tão preciosa intimidade dos amantes... Já não é, ou já não é apenas, o que são Tomás chamava de concupiscência (amar o outro para o nosso próprio bem) e o segredo dos casais felizes. Porque é claro que essa benevolência não exclui a concupiscência: ao contrário, entre amantes ela se nutre dela e a ilumina. Como não nos regozijarmos com o prazer que damos ou recebemos? Como não queremos bem a quem nos faz bem?
Essa benevolência alegre, essa alegria benevolente, que os gregos chamavam philia é o amor segundo Aristóteles, dizia eu: amar é regozijar-se e querer bem a quem se ama. Mas também é o amor segundo Spinoza: "uma alegria", podemos ler na Ética, "que a idéia de uma causa exterior acompanha". Amar é regozijar-se de. É por isso que não há outra alegria além da alegria de amar; é por isso que não há outro amor, em seu princípio, além do amor alegre. A carência? Não é a essência do amor; é seu acidente, quando o real nos falta, quando o luto nos magoa e nos dilacera. Mas não nos magoaria se antes não houvesse a felicidade, ainda que em sonho. O desejo não é a carência; o amor não é a carência: o desejo é potência (potência de gozar, gozo em potência), o amor é alegria. Todos os amantes sabem disso, quando são felizes, e todos os amigos. Eu amo você: alegra-me que você exista.
Ágape? É outra palavra grega, mas muito tardia. Nem Platão, nem Aristóteles, nem Epicuro, jamais fizeram uso dessa palavra. Eros e philia lhes bastavam: eles só conheciam a paixão ou a amizade, o sofrimento da falta ou a alegria do compartilhar. Mas o caso é que um judeuzinho, muito depois da morte daqueles três, pôs-se de repente, numa distante colônia romana, num improvável dialeto semítico, a dizer coisas surpreendentes: "Deus é amor... Amai vosso próximo... Amai vossos inimigos..." Essas frases, sem dúvida estranhas em todas as línguas, pareciam, em grego, quase intraduzíveis. De que amor podia se tratar? Eros? Philia? Um ou outro nos condenariam ao absurdo. Como Deus poderia carecer do que quer que seja? "É um tanto ridículo pretender-se amigo de Deus", dizia Aristóteles. De fato, não dá bem para entender como nossa existência, tão medíocre, tão irrisória, poderia aumentar a eterna e perfeita alegria divina... E quem poderia decentemente nos pedir para nos apaixonarmos por nosso próximo (quer dizer, todo o mundo e qualquer um!) ou ser amigo, absurdamente, dos nossos inimigos? Mas era necessário traduzir esse ensinamento em grego, como hoje, se faria em inglês, para que todo o mundo compreendesse... Os primeiros discípulos de Jesus, porque é dele que se trata, claro, tiveram então de inventar ou de popularizar um neologismo, forjado a partir de um verbo (agapan: amar) que não tinha substantivo usual, o que deu ágape, que os latinos traduzirão por caritas e nós, na maioria das vezes, por caridade... De que se trata? Do amor ao próximo, na medida em que dele formos capazes: do amor a quem nos faz falta, nem nos faz bem (de quem não somos nem amantes nem amigos), mas que está aí, simplesmente aí, e que temos de amar em pura perda, por nada, ou antes por ele, quem quer que seja, o que quer que valha, o que quer que faça, mesmo que fosse nosso inimigo... É o amor segundo Jesus Cristo, é o amor segundo Simone Weil ou Jankélévitch, e o segredo da santidade, se é que ela é possível. Não confundir essa amável e amante caridade com a esmola ou a condescendência: tratar-se-ia antes de uma amizade universal, porque liberta o ego (o que não acontece com a amizade simples: "porque era ele, porque era eu", dirá Montaigne a propósito da sua amizade por La Boétie), libertada do egoísmo, libertada de tudo, e por isso mesmo libertadora. Seria o amor a Deus, se ele existe ("o Theos agapé estin", lemos na primeira epístola de são João: deus é amor), e o que mais se aproxima dele, em nossos corações ou em nossos sonhos, se Deus não existir.
Eros, philia, agapé, o amor que falta ou que toma; o amor que se regozija e que compartilha; o amor que acolhe e dá... Não se apressem muito a escolher entre os três! Que alegria há sem falta? Que dom sem compartilhar? Se cumpre distinguir, pelo menos intelectualmente, esses três tipos de amor, ou esses três graus de amor, é principalmente para compreender que todos os três são necessários, todos os três estão ligados, e para iluminar o processo que leva de um ao outro. Não são três essências, que se excluiriam mutuamente; são antes três pólos de um mesmo campo, que é o campo de amar, ou três momentos de um mesmo processo, que é o de viver. Eros é o primeiro, sempre, e é o que Freud, depois de Platão e de Schopenhauer, nos lembra; agapé é o objetivo (para o qual podemos ao menos tender), que os Evangelhos não param de nos indicar; enfim, philia é o caminho ou a alegria como caminho: o que transforma a carência em potência e a pobreza em riqueza.
Vejam o bebê tomando o peito. E vejam a mãe, dando-o. Ela, é claro, foi um bebê primeiro: começamos tomando tudo, o que já é uma maneira de amar. Depois aprendemos a dar, pelo menos um pouco, pelo menos às vezes, o que é a unia maneira de ser fiel até o fim ao amor recebido, ao amor humano, nunca humano demais, ao amor tão fraco, tão inquieto, tão limitado, e que é no entanto como que uma imagem do infinito, ao amor de que fomos objetos e que nos fez sujeitos, amor imerecido que nos precede, como uma graça, que nos gerou, e não criou, ao amor que nos ninou, levou, alimentou, protegeu, consolou, ao amor que nos acompanha, definitivamente, e que nos faz falta, e que nos regozija, e que nos perturba, e que nos ilumina... Se não fossem as mães, que saberíamos do amor? Se não houvesse amor, que saberíamos de Deus?
Uma declaração filosófica do amor? Poderia ser, por exemplo, a seguinte:
"Há o amor segundo Platão: 'Eu te amo, tu me fazes falta, eu te quero.'
Há o amor segundo Aristóteles ou Spinoza: 'Eu te amo: és a causa da minha alegria, e isso me regozija.'
Há o amor segundo Simone de Weil ou Jankélévitch: 'Eu te amo como a mim mesmo, que não sou nada, ou quase nada, eu te amo como Deus nos ama, se é que ele existe, eu te amo como qualquer um: ponho minha força a serviço da tua fraqueza, minha pouca força a serviço da tua imensa fraqueza...'
Eros, philia, agapé, o amor que toma, que só sabe gozar ou sofrer, possuir ou perder; o amor que se regozija e compartilha, que quer bem a quem nos faz bem; enfim, o amor que aceita e protege, que dá e se entrega, que nem precisa mais ser amado...
Eu te amo de todas essas maneiras: eu tomo, avidamente, eu compartilho alegremente tua vida, tua cama, teu amor, eu me dou e me abandono suavemente...
Obrigado por ser o que és, obrigado por existir e por me ajudar a existir!"
COMTE-SPONVILLE, A. “O Amor’. IN: Apresentação da Filosofia. SP: Martins Fontes, 2002
4 comentários:
Bom ler sobre os 3 amores, isso me remete a uma de minhas revistas... a mesma levou-me à leitura de O Banquete.
Obs: um texto um tanto redundante da metade para o fim, mas trouxe algumas analogias interessantes.
O meu professor de Filosofia nos deu esse texto para que nós fizessemos um trabalho. Fazendo ele eu achei todo o texto na internet e achei interessante deixar o meu comentário.
amei o seu blog...entender a questão do amor ainda é um desafio...falamos desse e de outros assuntos que nos angustiam pq queremos sempre fugir da morte e não falo da morte física, mas da morte que nos empobrece...abraços
professor, gostei muito!
obrigado por comentar no meu blog!
o seu blog tbm é muito interessante
bjs *-*
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