Marguerite Duras
Um dos mais antigos gêneros literários, a ponto mesmo de integrar livros canônicos, as cartas têm a característica de se constituírem por mais do que o texto propriamente dito. Cada uma é um mundo próprio, formado não só pela mensagem, mas pelo tipo de papel, a caligrafia, a cor da tinta, às vezes até o perfume que possam trazer. Talvez a própria demora entre o envio e o recebimento, e a possível réplica, dão a esse tipo de correspondência uma riqueza de detalhes que o nosso pragmático e moderníssimo e-mail simplesmente não pode acompanhar. Afinal, que é um e-mail senão uma carta reduzida ao elemento mais básico, despida de todos os pequenos indícios que poderiam trair as emoções e circunstâncias de seu remetente? Não há nele o vestígio da lágrima sobre a folha nas cartas de despedida, nem o tremular da escrita nas que são redigidas com emoção e ansiedade. E a caligrafia, que tanto diz sobre quem escreve e torna-se parte do retrato afetivo que nasce na imaginação do seu destinatário, desaparece sobre a harmonia mecânica de Times New Roman ou Arial. E, finalmente, não há o que se guardar... Uma folha impressa a partir de um e-mail não se compara à que foi escrita, dobrada, tocada pelo remetente, não raro alguém que amamos e se encontra longe, de quem cada objeto pode se tornar uma relíquia de saudades cuidadosamente acarinhadas no coração.
Sim, a tecnologia nos uniu, acelerou nossos contatos, abriu novas possibilidades. Porém, aos poucos ela também vai usurpando velhas práticas, eliminando hábitos seculares, tornando ainda mais distantes algumas das referências de nossos predecessores. A caixa de correio, sempre atulhada de mil papéis, há muito tempo já não recebe nada escrito do punho de ninguém. Não há mais a surpresa do envelope inesperado, o ritual de abri-lo cheio de curiosidade em busca de novidades de um amigo ou um amor, que serão depois cuidadosamente guardadas como lembranças para a posteridade. Esta terá de se ver com o que sobrar de HDs e discos ópticos, se tanto.
Daí o apetite nostálgico de voltar a escrever, de retomar o hábito deixado no século, no milênio que passou. Selecionar uma folha adequada, uma caneta de cor e tom apropriados, rascunhar ou talvez escrever de primeira o que vier à cabeça, selar e postar, e depois ficar se perguntando se a carta chegou, se foi realmente lida e até mesmo quando virá resposta. Virá? Se vier, levará alguns dias — sempre com certa expectativa, uma interrogação mais ou menos forte que ocupará a cabeça pelo menos alguns minutos por dia, até finalmente aparecer algo mais do que contas e propaganda na caixa de correio, fechando o ciclo. E ao término da leitura dessa resposta, a dúvida de todos os correspondentes: escrever novamente? Render-se ao imediatismo do telefone e do e-mail?
Rememorando um cotidiano que soa tão distante, olho o caderno de endereços, um tanto abandonado, com envelopes abertos formando relevos entre as páginas. Hora de reabri-lo e reencontrar alguém.
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Música do dia: I Can't Stop Loving You, de Ray Charles.
Um comentário:
Vontade de escrever uma carta e, ainda melhor, receber uma.
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