quinta-feira, agosto 03, 2006

Por ruas escuras e almas sujas...


Quem nunca ouviu falar do filme noir? A expressão remete aos recantos escuros e degradados de uma cidade grande, a boates enevoadas de fumo em ruas desertas e molhadas de chuva, e uma fauna humana composta por mulheres sedutoras e cheias de segredos, protagonistas (não raro detetives particulares) destilando cinismo, gângsteres apaixonados e violentos. Tudo isso, claro, com um blues tocando ao fundo. Pois bem, antes do filme noir, veio o romance noir.



Le Monde
03/08/2006
Como foi inventado o romance "noir"
Foi Dashiell Hammett (1894-1961) o grande estilista do gênero, com os seus romances ambientados nos bas-fonds, povoados de personagens torpes e de mulheres fatais, perseguidos por detetives desiludidos, e, sobretudo, com a sua narrativa revolucionária, que logo contaminaria o cinema

Jean-Luc Douin

Histórias sórdidas. Que começam em San Francisco, em 1915. Por 10 dólares por dia, Dashiell Hammett passa horas em emboscada debaixo de alpendres de prédios, espionando e seguindo suspeitos. Com o seu terno cimbrado, sua gravata, seu bigode de dândi, este cara alto e elegante esconde um entalhe no crânio, sob o seu impecável chapéu de feltro. Ele tem cicatrizes nas pernas, vota vermelho, cospe sangue. É um tuberculoso alcoólatra.

Oficialmente, ele é um detetive particular, da agência Pinkerton.
Visceralmente, um agente de atividades incertas e suspeitas. Ele assombra a cidade dos vícios e das corrupções, seus bares, suas docas, seus campos de corridas de cavalos e seus combates de boxe. Hammett não é um homem propenso a proteger a propriedade privada, nem a se tornar cúmplice das injustiças sociais. Desânimo, desgosto, demissão.

Hammett renasce no início dos anos 20. Como escritor. Inspirado nos personagens duvidosos que ele freqüentou, naqueles casos sórdidos que ele considera como "mijo de asno", ele redige novelas que são publicadas pela revista mensal "Black Mask" (Máscara Negra). Contratado como redator publicitário de meio-período por um joalheiro, ele enviou inicialmente seus primeiros textos para a revista "Smart Set" (a ancestral da "New Yorker").

Foi então que ele descobriu, assim como fariam depois dele William Burnett, Don Tracy, James Cain ou Horace Mc Coy, vindos do jornalismo desportivo ou criminal, que ele é o autor sonhado dos "pulp magazines", aquelas revistas que vendem tenebrosas sensações impressas em papel de má qualidade, e que inspirariam o título do filme "Pulp Fiction". Assim, "Black Mask" (cujo nome atiça a mitologia do lobo negro encampado pelos heróis da literatura popular) foi lançada para recuperar as finanças da "Smart Set". Aos poucos, ele vai evoluir em direção á literatura "hard-boiled", a narração "dura na queda".

Homens melancólicos dentro de barzinhos sombrios, mulheres ruivas flamejantes trajando enlouquecedores vestidos tomara-que-caia, emboscadas dentro de becos sem saída, uma pin-up medindo de alto a baixo um canalha metediço enquanto ela fuma um cigarro ou o ameaça com uma arma, uma sombra inquietante sobre um muro, um carro que derrapa na noite ou o fantasma de um loira errando debaixo da chuva: foi lá, nas revistas "pulp", os livrinhos brochados baratinhos, que nasceu um gênero que, desde então, prosperou celebrando o crepitante casamento da metralhadora com a máquina de escrever, e mais tarde as bodas negras dos anjos de rostos sujos com o cinema.

Nada de pânico! O termo de "detective story" foi inventado por Edgar Allan Poe (escritor americano, 1809-1849, um dos primeiros mestres do conto de terror), o criador do primeiro detetive amador (Auguste Dupin). O Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle (1859-1930) será mesmo o primeiro detetive privado (criado em 1887), antes que nasçam um detetive-arrombador (o Arsène Lupin de Maurice Leblanc, em 1905), um detetive-repórter (o Rouletabille de Gaston Leroux, em 1907), um padre-detetive (o Padre Brown de Chesterton, em 1910).

Mas se hoje nós podemos falar de filme "noir", se Quentin Tarantino fez de Uma Thurman uma corrosiva sedutora em "Pulp Fiction" ("Tempo de Violência", 1994), isso se deve à glória dos "hard-boiled" de capas berrantes (capas essas que influenciarão os cartazes dos filmes tenebrosos), e à maneira com a qual Dashiell Hammett transcendeu essas histórias onde o detetive privado se preocupa menos em provar sua engenhosidade em manipular um passe-partout e gazuas do que em fumar toneladas de cigarros e esvaziar garrafas de whisky em miseráveis quartos de hotéis.

"Dashiell Hammett é o anjo tutelar", diz Jean-Bernard Pouy, o inventor, em 1995, do Polvo, um personagem que ganhou vida nas mãos de vários autores. "Em primeiro lugar, é o homem que exerce o fascínio. Mais do que os outros, ele se aproxima do ideal dos escritores da escola do novo romance policial francês: um cara para quem a escrita é importante, porém não necessária. Um cara que é capaz de desaparecer para beber, viver, amar, atuar como militante. Nós fomos acusados de ser filhotes de Maio de 68. Ledo engano! Tudo vem dele, um grande ator do seu tempo!"

"Hammett e o jazz: foi nesses dois elementos que nós estivemos mergulhados. É o emblema do thriller de motivações políticas", diz o cineasta Alain Corneau, autor do filme "Série Noire" (1979), enquanto um outro cineasta, Francis Girod, sublinha sua narrativa, "que respirava a cinema em cada frase", e que o escritor Michel Le Bris, criador do Festival internacional do livro de Saint-Malo (oeste da França), celebra "a sensação de uma inesgotável energia, de uma narrativa dedicada às margens, às vielas sórdidas, às partes contíguas de cozinhas de lanchonetes suspeitas, uma escrita finalmente liberada das formalidades hipócritas e das preciosidades de salão".

"Sou duro na queda e tenho a pele dura por cima do que restou da minha alma e, após vinte anos passados no mundo do crime, eu posso assistir a qualquer assassinato sem ver nele outra coisa que uma forma de ganhar meu pão, o meu trampo cotidiano": tal é a cínica profissão de fé de Continental Op, o detetive que Hammett vai transformar no herói de 26 novelas e dois romances, antes de imaginar Sam Spade, o narrador de "O Falcão de Malta" (editora Gallimard).

Raymond Chandler encontraria uma frase imortal para celebrar a revolução iniciada por Hammett: "Ele tirou o crime do vaso veneziano no qual ele estava metido para arremessá-lo na sarjeta. (...) Não era uma má idéia, essa de afastá-lo das concepções pequenas burguesas que se compraziam em descrever a maneira com que as garotas da alta sociedade mordiscam asas de frango".

Dashiell Hammett está pouco se lixando com as reações de repulsa da National Organization of Decent Literature (Organização nacional em prol da literatura decente), que pede de vez em quando à Brigada criminal para confiscar certos Pocket Books (livros de bolso), por demais afastados dos enigmas bem comportados de Agatha Christie. Ele é daqueles que acrescentam drágeas com sabores agressivos nos thrillers retóricos demais e que jogam pimenta-do-reino sobre "os discursos demagógicos dos políticos, dos pregadores, dos homens de lei".

Lançados abertamente como paralelepípedos sobre a vidraça da América capitalista, os textos de Hammett combinam crítica social com violência documentária e lirismo brutal. Com ele, não se trata mais de valorizar as sutis deduções de um investigador invulnerável, e sim de mergulhar um incorruptível desiludido numa atmosfera turva, de fazer com que ele reaja com os seus nervos e suas tripas, de levá-lo a enfiar as mãos no meio do lixo, de conduzi-lo a se introduzir entre as crápulas. Não há mais crimes perfeitos, e sim apenas assassinatos odiosos. Não há mais um enigma pretexto para o divertimento cerebral, e sim a sensação sufocante de estar se imiscuindo no império do Mal. Tudo isso é contado por meio de um estilo eficaz, que "estala assim como uma chicotada", uma linguagem crua, uma multiplicação de seqüências rápidas e frenéticas.

É dessa forma que, até o ano de 1952 - data na qual a cruzada anti-comunista iria persegui-lo sem trégua -, Hammett foi constantemente reeditado e que a sua influência foi crescendo. Foi assim que os estúdios de Hollywood compraram os direitos de adaptação dos "pulps", e contrataram alguns dos seus autores como roteiristas. Foi assim que, transposto para o cinema por John Huston em 1941, "O Falcão Maltês" deu ao filme "noir" um estímulo radical. O cineasta impõe certos lugares (o escritório do detetive, o apartamento da sedutora, as vielas abandonadas), objetos (telefone, chapéu de feltro, cigarros), personagens (mulher fatal dos olhos de cobalto, levantino perfumado, querubim assassino, gângster epicurista de estertores asmáticos), e um ambiente mórbido no qual vagueiam medos e desejos.

O herói é um homem sem estado civil nem moral, que maneja o humor a frio e a ironia displicente. Ele pratica uma linguagem e adota uma conduta que chocam as velhas senhoras da aristocracia, e exibe uma fleuma misógina para com as suas amantes. Hammett sabia muito sobre os matadores profissionais e os maníacos sexuais, os políticos corruptos e as damas ninfomaníacas, os advogados desonestos e os gerentes de boates suspeitas e de antros de jogatina. Do assassinato que dá a largada dos seus mistérios, ele só deixa entrever um tiro de revólver em meio à neblina. Então, "os diálogos falam no lugar das armas", escreve Roger Tailleur na revista "Positif" (N.º 75, maio de 1966), "os personagens metralham uns aos outros com palavras", as quais se aplicam a "complicar os mal-entendidos, a engabelar o adversário".

Enquanto o filme "noir" vai se propagando em todo lugar, na Itália ("Ossessione", de Luchino Visconti, 1942), na Inglaterra ("O Terceiro Homem", de Carol Reed, 1947), no Japão ("Cão danado", de Akira Kurosawa, 1949), na França ("Bob le Flambeur - Lance de Sorte") de Jean-Pierre Melville, 1955), no Egito ("Estação Central", de Youssef Chahine, 1958), e que ele vampiriza todos os gêneros de Hollywood, os quais passam a ser contaminados pelos temas da lei e da desordem, da corrupção, do destino fatal, tratados por meio de estéticas tomadas pela neblinas, dedicadas às fantasias mórbidas e ao pesadelo, é lançada na França em 1945, por Marcel Duhamel, na editora Gallimard, a "Série Noire" (coleção dedicada a romances policiais), um nome que foi imaginado por Prévert (Jacques Prévert, 1900-1977, importante poeta francês).

Esta logo se veria na companhia de outras coleções, editadas pelos concorrentes, tais como "Le Bandeau Noir" (A venda preta), "La Veuve Noire" (A Viúva Negra), "Fleuve Noir" (Rio Negro)... A coleção "Série Noire" fascina os apreciadores de garotas fatais que trajam meias de náilon e de baladas em Chevrolet conversíveis. Além do mais, ela incentiva os intelectuais franceses a publicarem sob pseudônimos americanos. Louis Chavance torna-se Irving Ford, Louis Daquin assina como Lewis McDacking, Léo Malet diz se chamar Frank Harding ou Léo Latimer, Maurice Nadeau esconde-se por trás de Joe Christmas e Boris Vian inventa Vernon Sullivan.

Mergulhado na leitura de "Em Busca do tempo Perdido", Dashiell Hammett escreve para a sua companheira Lilian Hellman: "Se Proust não se resolver logo a dar um fim em Albertine, acho que ele corre o risco de perder um cliente!".

Tradução: Jean-Yves de Neufville

Um comentário:

Anônimo disse...

Leitura muito interessante, principalmente de madrugada. hehehe
Que coisa boa ter um blogeiro que não se preocupa em ser extenso, acho que se deve primar pela informação. Merci!