sábado, setembro 03, 2005

O ordálio de Nova Orléans

A terra do carnaval, do vodu e da comida cajun. Durante décadas, Nova Orléans representou uma curiosa mistura de libertinagem, exotismo e religião na cultura popular americana. Um enclave de outro mundo no país do dólar e do protestante anglo-saxão branco. E agora, como a lendária Atlântida, ela agoniza sob as águas, transformando-se em um pântano gigantesco em que o desespero e a tragédia libertam o que há de pior no ser humano. Enquanto cadáveres bóiam pelas ruas alagadas, junto com répteis, o caos trazido pelo furacão Katrina foi a justificativa perfeita para alguns recorrerem à velha lei do mais forte. A nós, de fora, talvez caiba recordar o quão frágil o senso de civilização pode ser.

O GLOBO
03/09/2005 - 21h53m

Abrigos em Nova Orleans: inferno marcado por estupros e assassinatos

Reuters

NOVA ORLEANS - As pessoas que ficaram sem casa devido ao furacão Katrina contaram terríveis histórias sobre estupros, assassinatos e guardas com o dedo no gatilho nos dois centros que foram preparados como abrigos, mas que se tornaram lugares de violência e terror.

A polícia e a Guarda Nacional fecharam este sábado os dois centros de refugiados - o Superdome e o Centro de Convenções da cidade - mas eles obrigaram os refugiados a penar sob o sol escaldante para impedí-los de tentar sair da cidade por meios próprios.

Helicópteros militares e ônibus iniciaram uma maciça evacuação, retirando da cidade milhares de pessoas que a essa altura aguardavam em filas organizadas sob o calor massacrante do lado de fora do inundado Centro de Convenções.

Os refugiados, que esperavam ser levados para estádios esportivos e outros grandes abrigos no Texas e no norte de Louisiana, descreveram como o Centro de Convenção e o Superdome se tornaram buracos infernais marcados por estupros e assassinatos.

Muitos dos moradores desta espécie de favela instantânea contaram dois horríveis incidentes em que aqueles que deveriam cuidar da segurança dos desabrigados os mataram ao invés disso. Em um deles, um jovem corria e foi morto por um policial de Nova Orleans. Em outro, um homem em busca de ajuda foi morto a tiros por um soldado da Guarda Nacional, testemunhas afirmaram.

A polícia se recusa a discutir ou conversar os incidentes. O porta-voz da Guarda Nacional, tenente-coronel Pete Schneider, disse "não ter qualquer informação sobre uma arma ter sido disparada."

- Eles mataram um homem aqui na noite passada - disse Steve Banka, de 28 anos - Uma jovem estava sendo estuprada e esfaqueada. Os sons dos seus gritos podiam ser ouvidos por esse homem. Ele correu até a rua para pedir ajuda das tropas para tentar fazer parar um caminhão militar que passava. Ele pulou sobre o pára-brisa do caminhão e eles atiraram para matar.

Wade Batiste, de 48 anos, contou outra história de horror:

- Na noite passada, às 20h, eles balearam um garoto de apenas 16 anos. Ele estava apenas atravessando a rua. Eles o atropelaram, a polícia de Nova Orleans e, então, desceram do carro e atiraram na cabeça dele.

O corpo do adolescente ainda jazia na rua próxima à entrada do Centro de Convenções, coberto por um cobertor preto. Um rio de sangue coagulado manchava a rua ao seu redor. Próxima do corpo, sua família estava sentada, em estado de choque. Uma integrante da família, Africa Brumfield, de 32 anos, confirmou o incidente e falou também das condições gerais do local.

- Há estupros acontecendo aqui. Mulheres não podem ir ao banheiro sem um homem por perto. Eles as estão estuprando e cortando suas gargantas. Eles continuam dizendo que os ônibus estão chegando, mas eles nunca aparecem - disse ela, chorando.

Os desabrigados afirmaram que há no momento 22 corpos de crianças e adultos dentro do Centro de Convenções, mas os soldados que guardam o prédio se recusam a confirmar a informação e ameaçam agredir repórteres em busca de acesso ao local para confirmar a informação.

Pessoas que tentam deixar o local são forçadas a voltar para a fila sob a mira de armas - alguns soldados disseram que a medida é para a própria segurança das vítimas da tragédia.

- Eles nos mantém aqui como animais - disse Wvonnette Grace-Jordan, que estava no local com cinco crianças, a mais nova de apenas seis anos de idade - Nós só tivemos duas refeições até agora, não temos remédios e agora há milhares de pessoas defecando nas ruas. Isto é errado. Isto é os Estados Unidos da América.

Um soldado da Guarda Nacional que pediu para não ser identificado por temer represálias de seus comandantes, falou da falta de cuidados médicos para os desabrigados:

- Eles (o governo Bush) se importam mais com o Iraque e o Afeganistão do que com o povo daqui - disse ele, que é lotado na Louisiana - Estamos fazendo o nosso melhor com os recursos que temos, mas quase todos os nossos homens estão no Iraque.

Do outro lado da cidade, no Superdome, onde mais de 38 mil refugiados se amontoavam até a noite de quarta-feira, quando começou a evacuação do local, quatro mil pessoas ainda eram mantidas encurraladas, agora do lado de fora, esperando vaga num dos quatro ônibus disponíveis para retirá-los, com lugar apenas para 200 pessoas.

A cena no estádio esportivo era degradante. Apertadas num espaço pequeno depois que o prédio foi fechado na noite anterior, os remanescentes sentavam sobre montes de lixo, cujas pilhas batiam na cintura das pessoas. Dentro do estádio vazio, o cheiro de resíduos humanos dominava o ambiente.

Um oficial da polícia disse que cem pessoas estão dentro de um necrotério improvisado no estádio, a maioria morta por insolação. De outro lado, seis bebês nasceram no local desde sábado passado.

Na arena, há também relatos de cenas de horror.

- Encontramos uma adolescente estuprada e morta no banheiro - disse um soldado da Guarda Nacional - Depois a multidão pegou o homem e bateu nele até a morte.

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