quarta-feira, dezembro 29, 2004

Ilusão

Maya. É o nome dela. A maior, talvez a única, inimiga da humanidade. Guerras, pestes, fomes e ódios jazem em sua mão esquerda; prazeres, contentamentos, paixões e ambições agitam-se em sua mão direita. Nenhum poder se compara ao seu; nenhum cai tão depressa, ao colidir com uma alma forte.

Pois Maya nada mais é que a ilusão. Por causa dela sofremos; por causa dela fazemos sofrer aos outros; por causa dela nos desviamos a todo momento da senda da verdade, fascinados por brinquedos efêmeros e tentações pueris que nada significam em nossa eternidade. Sim, porque esse é o preço do jogo de Maya: uma infinitude que se desperdiça em não olhar para si mesma.

Os orientais de há muito nos alertam para essa fera gentil, esse demônio suave que nos sussurra belas palavras e nos mata com suas carícias. Os hindus o personificaram em célebre duelo com Buda. Os seguidores do vitorioso Gautama tentam repeti-lo até hoje, sem o mesmo sucesso.

E por que olhar para essa fábula, essa farsa mitológica de uma cultura distante? Porque nada é mais verdadeiro do que a lição nela encerrada. O poderosíssimo Maya, de abraços cálidos e rugido titânico, é mais do que uma figura de lenda, uma deidade das inúmeras que abundam mundo afora, e sobretudo pela terra dos Vedas. Não. Maya é a mais real das forças cósmicas, a mais palpável e também a mais invisível, oculto em sua onipresença. Como o oceano não é percebido pelos peixes até que sejam retirados da água, assim também não enxergamos esse poder de névoa que nos traga. Maya está em toda parte e em lugar algum.

Não é assim com todos nós? Quantas vezes não nos pegamos esquematizando a realidade, generalizando o mundo, encaixando o infindável torvelinho da vida em sisteminhas próprios disfarçados de verdade? Quantas vezes nossas certezas não são desmascaradas pelos acontecimentos, e percebemos, em retrospecto, a leviandade com que nos deixamos acreditar nisso ou naquilo? Quem nunca se percebeu optando por uma tese, um credo, uma impressão menos por ela mesma do que por uma preferência irracional e quase irresistível, tanto mais forte quanto menos refletida? E, no entanto, em tantos momentos, é ela que ditará nossas ações, nossa visão de mundo, nossos valores.

Há poucos séculos, embriagados por uma nova visão luminosa, algumas das grandes mentes ocidentais creram que a Razão seria o guia messiânico da humanidade. Como um novo Moisés, essa Força Titânica nos libertaria do Egito das paixões desenfreadas, das tradições incontestes, dos abortos do caráter. A fé racional elevaria este horda de desorientados perdidos entre tristezas e violências até a sociedade perfeita, de cujos chafarizes poligonais manariam o leite e o mel para os intelectos famintos e os caracteres mal cultivados. “O mal nasce da ignorância”, decretavam os sábios, prontos para ganhar o mundo para as futuras gerações.

Fracassaram inapelavelmente. O mundo avançou, e a humanidade continuou exercendo sua maldade, agora por meios novos. Os próceres da Razão, em seu entusiasmo, não perceberam que a ignorância a que juraram combater, o vazio interno do qual brotavam a selvageria e o egoísmo, não era de números e teoremas, poemas e gramáticas. Suas raízes eram mais profundas. Não podiam ser arrancadas apenas com raciocínios...

Maya, essa ausência presente, não se funda na racionalidade, e não se curva a ela. A razão é mero instrumento, geralmente brandido às cegas no nevoeiro da ilusão. Sozinha, pode bem pouco, solitário machado a lutar com troncos espessos em uma floresta. Pois Maya se entranha no próprio ser do indivíduo, nas suas sensações, nos seus impulsos, nas suas necessidades imediatas, no que prende a atenção no exterior, no superficial, no que satisfaz, para que não se vá adiante. Áreas, portanto, estranhas à linearidade da razão cotidiana.

Que fazer então? Como vencer essa teia, romper a neblina de impermanências que recobrem o mundo? Talvez ousando na escuridão, no abismo onde a ilusão se aloja e reina. Plantar em seu campo até então largado à intempérie da inconsciência, alimentar seus canais com outras águas, rasgar suas brumas com a luz da consciência possível. Aí, sim, jogando suas próprias forças a nosso favor, é que poderemos derrotar Maya, não destruindo-a, mas aquietando-a o bastante para que possamos abrir os olhos e ver... não o que vemos, não o que percebemos, mas o que é.

3 de março de 2004

2 comentários:

Anônimo disse...

Oh! Eis que vejo um texto do blog antigo. Muito bem escrito, mas não consegueria fazer todos os comentários aqui... digamos que Maya seja uma constante luta para todos, sendo que alguns enxergam Maya e outros apenas a sentem.

Anônimo disse...

Erro de digitação é fogo! Conseguiria! :P