Nada mais incômodo que tentar escrever quando tudo está bem e o contentamento corre solto pela alma. A saciedade esteriliza, a felicidade é desinteressante. Ninguém tolera por muito tempo ler sobre cenários de alegria pura, ou satisfação permanente. Por alguma razão hermética, nossa atenção exige contrastes, acorrenta-se aos conflitos de desfecho incerto e às dores de redenção duvidosa. Criar alguma coisa na ausência desses elementos, quando não se é um autor versado e escolado nas tribulações da imaginação, é verdadeiro desafio, uma espécie de alpinismo mental. Se a montanha é o Pão de Açúcar ou o Everest, tanto faz: ambos são colossos para o amador que conta com pouco mais que a própria persistência.
Mas nada de desânimo. O ano prestes a se encerrar, é preciso que se escreva alguma coisa. Afinal, 2004 foi o primeiro ano deste blog, para não dizer o primeiro ano de uma série de outras coisas quase igualmente relevantes, tais como a labuta docente, um maior envolvimento com a espiritualidade, a pós-graduação, o esforço pelo mestrado e, é preciso reconhecer, a tal vida de solteiro de que tanto falam por aí. Cada uma dessas coisas renderia páginas e mais páginas de reflexões e ego trips que não cabem aqui. Este não pretende ser um blog biográfico, por mais que a tentação exista e certos posts sejam frutos diretos de uma ou outra experiência. O mundo já tem diários públicos demais e se algum dia um autor excêntrico quiser escrever sobre este que vos fala, terá que recorrer aos bons e velhos registros em papel. Eles ainda têm a virtude da permanência, coisa que este mar de megabytes dificilmente terá. Há também um quê de solidariedade corporativa aí: na remota possibilidade de algum colega historiador ou jornalista do futuro vir a se interessar por mim, por que lhe dificultar a vida com tecnologia digital ultrapassada?
Por efêmera que seja, essa tecnologia teve sua importância em 2004. Não apenas ela permitiu que este espaço existisse — embora deva agradecer a idéia ao meu prezado amigo Felipe Svaluto e seu combativo Warfare State — mas também proporcionou alguns reencontros inesperados, e não apenas para mim. Afinal, este foi o ano do Orkut e da idéia de que vale a pena usar a Internet para promover relacionamentos interpessoais. Idéia antiga, é verdade, até onde este adjetivo se aplica à Rede; mas provavelmente jamais fora testada com tamanha eficiência. É impressionante como algo que exige um tempo enorme de navegação, impõe limites severos à postagem de textos e dá defeito dia sim, dia não, tornou-se objeto de uma verdadeira febre entre os internautas brasileiros. Quando fui convidado para o Orkut, os perfis ainda eram escritos em inglês e os brasileiros eram aproximadamente 20% do total de usuários; agora, ele praticamente se tornou um clube tupiniquim, inundado por gente de todo tipo e pródigo de comunidades tão díspares quanto “Política e Governo”, “Filosofia” e “Isso Só Acontece Comigo”, “Chocólatras” e “Deixem as Formigas em Paz!”. Chegou-se mesmo a fazer da hegemonia brasileira um motivo de orgulho patriótico, nas primeiras reportagens feitas sobre o fenômeno, o que obviamente foi razão para criar mais dúzias de comunidades no próprio Orkut. Um bom tema de pesquisa para os futuros (?) estudiosos de História Digital ou para os antropólogos mais modernizados, sem sombra de dúvida. No que me toca diretamente, porém, além do entretenimento que proporcionou, o Orkut foi um meio interessante para reencontrar conhecidos que dava como perdidos, e fazer alguns mais. Embora jamais tenha chegado às centenas de contatos que tantos orkutianos ostentam, posso dizer que o site fez bem à minha sociabilidade digital. Ou talvez tenha simplesmente digitalizado um pouco mais a sociabilidade de um grande número de pessoas, ao mesmo tempo criando mais um nicho exclusivista. Afinal, se antes havia os internautas e os não-internautas, agora há também os internautas não presentes no Orkut... Para os que apreciam ver a proverbial metade vazia do copo, eis mais uma nobre causa para a lista de reivindicações de justiça digital: “Queremos uma conta no Orkut!” não daria um bom slogan em passeatas?
Mas estou digredindo. É o que dá tentar escrever sem inspiração ouvindo Strauss, algo da frivolidade dos salões vienenses acaba contaminando o resultado. Tudo bem, a espontaneidade é importante para meu futuro biógrafo e, pelo menos neste post, não me preocuparei muito com a profundidade de idéias, se é que a tive em algum outro. Acredito que há ocasiões em que é saudável, como num rodopio oitocentista ao som de Sangue Vienense, deixar-se levar pelos acordes da mente que tanto relutou a se pôr em ação. Estou certo de que os meus escassos e generosos leitores hão de compreender. Neste post derradeiro de 2004, não há muita substância além da pura vontade de continuar escrevendo. Quem nunca se aventurou a fazê-lo por simples prazer, a despeito da superficialidade momentânea das idéias, que atire o primeiro comentário.
Agora que Strauss cedeu lugar a Bach, lembrei-me de que a questão espiritual teve um papel importante neste ano. Não direi muito sobre isso, pois os mais próximos sabem do que se trata e os não tão próximos não estarão interessados. Mas vale registrar que o papel da confiança em algo transcendente — “fé” é um termo já viciado — no fortalecimento do caráter não pode ser subestimado. Que me perdoem os ateus militantes e suas aguçadas observações sobre a capacidade humana de auto-ilusão, mas em nenhuma outra época as visões materialistas me pareceram tão pobres e insatisfatórias quanto nesta. Há muito que me interesso pelas chamadas questões do espírito, seja pelo ângulo da crença propriamente dita ou pelo da comprovação empírica de seus efeitos e princípios, e é uma lástima que não tenha dedicado mais tempo ao seu estudo como gostaria. Enquanto tenho amigos mergulhando nos polissílabos da metafísica hindu ou nas sutilezas da Escolástica, o mais próximo que consegui chegar do assunto este ano foi compulsar um livro de ética 100% secular e outro sobre o mundo muçulmano de uma perspectiva puramente histórica. Demandas acadêmicas me forçaram a centrar o olhar no mundo sensível e imediato, no labirinto da política mundana e na teia complexíssima do mundo do último século, e a transcendência perdeu a primazia para o terreno. Afora livros já de muito lidos e estudados, apenas Hermann Hesse redimiu minha biblioteca de 2004 com um toque de Eternidade. Naturalmente, nem só de leituras se alimenta a espiritualidade de alguém, as experiências do dia-a-dia a alimentam continuamente, e disso não seria justo reclamar. Mas o estudo faz falta, e num campo tão vasto como esse, nenhuma leitura é demais. Infelizmente, a tendência é o agravamento desta situação espiritualmente insalubre durante o mestrado em História, e espero chegar a um maior equilíbrio no próximo ano. Dentre as resoluções de Ano Novo, esta será uma das primeiras da lista.
Pachelbel e seu “Cânon” me fazem lembrar de reencontros, do passado que invade o presente e volta a fazer parte da nossa vida. Em 2004, ele reapareceu de várias formas, em manhãs outonais rotineiras no trabalho, casamentos badalados, conversas de ICQ ou um simples email via Orkut. É agradável ser lembrado pela vida de que se tem uma trajetória e marcos de referência deixados pelo caminho, que por vezes reaparecem. Mais do que isso, ser lembrado também de que desempenhamos um papel similar para outras pessoas. Vê-las novamente, reconhecer velhos sorrisos, vozes e maneirismos, procurando as inevitáveis modificações impostas pelo tempo a elas e a nós, é uma revigorante jornada na memória. E por que não também no próprio conhecimento de si mesmo? Afinal, freqüentemente estão ali os antigos sentimentos se remexendo no íntimo — uma grande simpatia num caso, uma pequena rivalidade adolescente em outro, para citar apenas alguns —, a velha persona querendo emergir. Reencontrar velhos conhecidos é, portanto, reencontrar primeiro a si próprio, e permite reavaliar até que ponto realmente mudamos, se é que houve mudança. É uma oportunidade singular de reflexão e, claro, de retomada ou aprofundamento de amizades. Uma dádiva.
Agora que a música acabou, e os fogos pipocam aqui e ali, é hora de deixar este post e começar a me preparar para a despedida de daqui a poucas horas. Alguém já disse que o Ano Novo é o aniversário de todos os homens. De certa forma, isso o torna superior a todas as outras comemorações em intensidade e partilha. Que saibamos aproveitar a festa e entrar bem em 2005.
Boas Entradas a todos!
2 comentários:
Nada mais incômodo que tentar escrever quando tudo está bem e o contentamento corre solto pela alma... escreves tu!
Vejo que o incômodo deu lugar às palavras e, em especial, à música.
Hermann Hesse é sublime no pouco que li dele.
Agora o que me faz deter o tempo, segurar uma pausa foi tua observação sobre Pachelbel e seu “Cânon”... esta música soa como uma das melhores que já escutei na medida em que me faz sentir... não sei exatamente, mas fiquei feliz em ver alguém decifrar as notas e pausas em letras e espaços. :)
Outro erro! Por que não deixam formatar os textos, oras! :P
Agora, o que me fez deter o tempo, segurar uma pausa, foi...
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