Ralph Hamor visia Powhatan com uma proposta
De Johann Theodore de Bry seguindo Georg Keller
Gravura, 1619
De Johann Theodore de Bry seguindo Georg Keller
Gravura, 1619
Passei os últimos dois dias mergulhado em American Colonies, de Alan Taylor, um livro que bem gostaria que tivesse chegado uma semana antes. É possível que seja o melhor livro sobre a fase colonial da América do Norte (excluindo o México), dando ampla atenção não só à muito negligenciada história das sociedades indígenas, mas também considerando o impacto ambiental que índios e europeus tiveram ao se instalarem no continente. Desfaz, por exemplo, o estereótipo de que os primeiros eram "santos ambientais", perfeitamente integrados à natureza segundo uma forma new age de religião: na verdade, embora eles tivessem menos impacto que os europeus, em parte devido à natureza animista de sua religião, houve vários exemplos de colapso ecológico que dariam ótimos estudos de caso para Jared Diamond. Do rápido espalhamento de espécies europeias de ervas daninhas ao prejuízo causado pela introdução, asselvajamento e reprodução rápida diferentes tipos de gado em um ambiente novo, o encontro do Novo e do Velho Mundo é visto também em seus aspectos biológicos, coisa que normalmente não se encontra em manuais convencionais.
Como se não bastasse, o autor explicita as estratégias desenvolvidas pelos índios no comércio com os europeus e a maneira como, ao contrário do que normalmente se espera, conseguiam manipulá-los para extrair vantagens, fosse na forma de um maior preço para as peles que ofereciam ou o acesso a uma quantidade maior de armas e objetos metálicos. Também é mostrado como a incorporação d tecnologias e produtos europeus alterou o modo de vida indígena, especialmente no que diz respeito à letalidade de suas guerra e, mais tarde, à exploraçãodos recursos naturais, que deixam de se voltar para a mera subsistência e passam a objetivar um mercado externo. Seja como for, o índio emerge não como uma vítima passiva da atividade incessante do colonizador europeu, mas como parte importante de um processo dialético de cooperação, luta e negociações complicadas.
O mais fascinante ao se dotar tal ponto de vista é a desconstrução da própria noção de "índio", bem como de "branco" e "negros": como o autor lembra logo na introdução, esses rótulos são simplificações construídas ao longo do tempo. Algonquianos, iroqueses, hopi, pueblos, entre outros, nunca se viram como parte de uma massa indistinta e homogênea de "índios", e a história de suas relações com os colonizadores europeus bem mostra a diversidade considerável desses povos, inclusive na parte que lhes coube na destruição de outros "índios"; da mesma forma, o que normalmente se considera genericamente como "ingleses" ou somente "brancos" envolvia escoceses, suecos, holandeses, irlandeses, franceses, espanhóis, ingleses propriamente ditos etc., uma gama tal de etnias e culturas que levou um bom tempo para se ver considerada sob o rótulo. de "brancos".
Nessa mesma linha, o fato da colonização europeia deixa de ser visto como o "início" de uma história americana progressiva. Como Taylor bem lembra, ao se olhar a história do povoamento americano na longa duração, a chegada europeia representou um grande recuo demográfico e, sob vários aspectos, uma perda material, humana e, claro, cultural. Nessa ótica, é difícil continuar adotando a velha narrativa de uma terra vazia a ser "desenvolvida" e que vai crescendo teleologicamente rumo à suprema realização que é o país no presente. A presença europeia torna-se apenas parte, ainda que inegavelmente importante, em um processo maior e mais longo da ocupação humana no continente.
O livro é muito envolvente e já retirei dele uma farta quantidade de material para aulas futuras de história norte-americana. É apaixonante essa descoberta e o aprofundamento em um assunto que, pelo menos nos cursos brasileiros de História, é quase sempre muito marginalizado, para não dizer desprezado. E embora não possa ficar muito tempo nele, espero conseguir inspirar nas novas turmas que adquiri um pouco da curiosidade pelo fascinante (ainda que trágico) mundo colonial no que viria a ser os Estados Unidos da América.
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