sábado, junho 20, 2009

Irã: entre o verde e o vermelho-sangue

Estou espantado e ao mesmo tempo emocionado. Espantado com a pouca cobertura que a guerra política, religiosa e cultural que começou no Irã tem recebido da nossa imprensa, sobretudo das redes de TV; e emocionado por estar ciente de que, seja qual for o desfecho imediato do que se passa nessa terra tão habitualmente vista como obscurantista e retrógrada, estou assistindo a algo que pode marcar um ponto de virada na posição do Oriente Médio no mundo -- e sob a égide principalmente da não-violência.


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Não sei se o que está se passando é o começo de uma revolução dentro da revolução iraniana, ou um arroubo efêmero que será sileciado a balas, bombas e terror. Tenho plena consciência de que, por trás de todo enfrentamento, os dois lados veneram e recorrem ao legado -- a meu ver, detestável -- do aiatolá Khomeini, um homem que não recuou ante a possibilidade de esmagar vários dos seus aliados na derrubada do também autoritário xá Reza Pahlevi, em 1979. Um homem que, com toda a admiração que lhe era dedicada por uma esquerda ocidental estúpida nos anos 1970, que o tomou por líder espiritual sábio, renegou todos os valores que seus admiradores ingênuos projetavam nele e mostrou qual era a sua concepção de liberdade. Um homem, enfim, que destruiu dissidências, condenou Salman Rushdie à morte e consolidou seu poder com base no medo, na paranóia e na repressão à discordância. São a sua foto e suas palavras que são tomadas como inspiração por parte das multidões de verde que lutam por democracia e, a partir de hoje, também por suas vidas nas ruas de Teerã, Shiraz e outras cidades de que nunca tínhamos ouvido falar até esta semana. Gente que procura uma vida melhor, que não quer baixar a cabeça ante uma mentira clara e, aparentemente, não aceita mais a desculpa de que a hostilidade ocidental serve de pretexto para calar suas insatisfações -- e que provavelmente não teria como fazer o que faz hoje enquanto seu herói teocrático estava vivo. E, ainda assim, hoje, essa gente toda, por mais ingênua que possa nos parecer à distância para confiar a tal patrono seu amor e sua lealdade, hoje concentra as mais concretas esperanças do que pode vir a ser um Oriente Médio capaz de romper o beco-sem-saída que tem dominado a maior parte dos países muçulmanos: a dualidade entre o atraso fundamentalista ou uma relativa modernidade ditatorial, entre a desconfiança acirrada do fanático e a corrupção e a brutalidade dos "líderes" cuja legitimidade vem da força e do comodismo de populações que não sabem ou podem ainda se organizar.

Há 30 anos, o Irã assombrou o mundo com uma revolução teocrática nunca antes vista. Nos anos seguintes, associou-se ao medo da expansão desse movimento nos outros países -- o Hezbollah, por exemplo, é fruto desse desejo -- e ao fomento da violência. Foi também uma ameaça simbólica, quando não de fato, aos regimes seculares e ditatoriais de seus vizinhos. Mas hoje, quando os ocidentais se arrepiam ou balançam a cabeça com uma superioridade condescendente ao olharem a pobreza reinante no Oriente Médio, o Irã representa outra coisa: é o levante popular, é a população marchando unida, é a cantoria cada vez mais alta das ruas a repetir "Alá é grande!". O Irã é hoje um grande "NÃO" ao fechamento da sociedade, ao uso da religião para negar às pessoas a escolha de seus rumos, à corrupção dos que confiam demais no próprio poder, à retórica dos que pretendem "proteger o povo de si mesmo". Independentemente do que o homem em torno do qual esse movimento se criou venha a fazer -- ele que foi braço-direito de Khomeini nos anos mais negros da Revolução --, ou de alguns de seus apoiadores mais poderosos venham a conquistar (como o milionário mulá Rafsanjani, cuja idoneidade, até onde sei, não é exatamente consensual), é o movimento em si que importa. É o clamor das manifestações que prova o que deveria ser óbvio a toda gente: que nenhuma repressão dura para sempre, e que o ímpeto pela liberdade, que não pode ser imposto pelas armas (vide Iraque), uma vez desperto, só tende a crescer. Enganaram-se os que outrora julgaram que revolucionário é aquele que precisa de um bando armado pronto a tudo para abrir um sanguinolento caminho até o poder; esse, mesmo que bem intencionado quanto aos fins, só perpetua erros milenares quanto aos meios. O verdadeiro revolucionário é aquele que catalisa os anseios dos seus semelhantes e age, não pelo terror, não se tornando igual ao inimigo que combate, mas que quebra o círculo vicioso da violência e demonstra, de uma vez por todas, que nenhuma arma, nenhuma tropa, é mais poderosa que uma multidão unida pronta a se fazer ouvir. E hoje, como tem provado a guerrilha virtual que os partidários do "mar verde" iraniano tem demonstrado, isso é mais demonstrável do que nunca.

Mesmo que o pior aconteça, o Irã não será mais o mesmo. Khamenei, Ahmadinejad e sua cáfila nunca mais terão a mesma tranquilidade, a mesma segurança, a mesma legitimidade. Seu poder, derivado de uma justificativa teocrática, foi deslegitimado aos olhos de milhões, e no fim das contas vêm se comportando como qualquer regime autoritário secular. Eles não são o Islã, mas somente pecadores como outros quaisquer, falíveis e por vezes renitentes no erro, como está evidente a quem testemunhe o que se passa. Mesmo que Moussavi seja preso ou morto, e o seu movimento se disperse, seu exemplo ficará -- até o próximo estopim, a próxima onda. E assim, quem sabe, a despeito de si mesmo, a Revolução Iraniana acabe finalmente sofrendo uma reforma por dentro.

Abaixo, algumas imagens coletadas na melhor fonte até o momento sobre os eventos no Irã, o blog de Andrew Sullivan.




Greenmask

Bloodgirl

Green-stream

0618MASKS:Getty

Crowd-wall

3 comentários:

Pablo disse...

Eu sei que como historiador você tem o dever profissional de discordar de mim, mas a interpretação de que as pessoas lutem por uma mudança de regime ou por qualquer outro movimento de grande importância histórica é apenas uma racionalização artificial. As pessoas lutam contra um governo ruim, não contra um sistema.

Rodrigo disse...

Olá.

Bem, eu diria que, no momento, as coisas estão bastante misturadas. No mais, eu aconselharia cuidado com o termo "as pessoas". Nenhum movimento de massas é monolítico, e suas divisões ficam particularmente notáveis quando se conquista a vitória. Contudo, eu acho seguro dizer que, ao menos para os jovens conectados que têm transmitido como podem o que tem acontecido no país, a percepção de que a figura do aiatolá não é sagrada nem acima de críticas -- o que, dizem alguns, era algo que ninguém se atreveria a dizer em voz alta por lá -- é um indicador de que esses, ao menos, podem ter alguma consciência de que, mais do que as pessoas, há um problema também com o regime.

Vejamos o que acontece.

Um abraço,
R.

clabrazil disse...

Lindas e emocionantes as fotos.
Irã por aqui até estava tendo bastante cobertura, mas claro, desde que o MJ morreu, as notícias se escacearam um pouco.

Beijos,
Cla