domingo, maio 11, 2008

A paz possível: de novo a não-violência

Estou lendo, dentre outras obras, O Princípio da Não-Violência, do autor abaixo mencionado. Encontrei o livro na quinta passada, então ainda estou no primeiro capítulo, mas tem sido uma leitura excelente. Em poucas páginas, Jean-Marie Muller conseguiu me fascinar, não apenas pelo estilo elegante e incisivo, mas também pela honestidade. Ele repudia a violência, sim, mas reconhece os elementos que levam a ela; reafirma a brutalidade da força e a corrupção que seu emprego costuma trazer aos que dela se valem, mas não nega o valor da agressividade. Em suma, ele não apresenta uma utopia pacifista que devemos abraçar em nome de altos princípios morais, mas começa o livro já reconhecendo a natureza de nossos impulsos. Vivemos num mundo violento, cuja cultura nos instiga desde cedo um sentimento de naturalidade para com ela... mas isso acontece por determinadas razões que devem ser encaradas. E, por isso mesmo, embora defenda a não-violência inclusive como princípio de vida (e não como mero meio para um fim), ele não nega a ninguém o direito à defesa ou à indignação frente à injustiça. Para mim, essa é a chave para uma postura não-violenta que não implique um quietismo improdutivo, cúmplice do abuso e da tirania.

Ainda estou começando nesse campo, mas desde já identifiquei uma questão crucial e inevitável. A. J. Muste (1885-1967), um renomado militante pacifista americano, escreveu durante a Segunda Guerra Mundial que o pacifismo só podia ser plenamente entendido por alguém acostumado a uma visão religiosa do mundo, isto é, com parâmetros que transcendem o aqui e o agora. Dessa forma, o verdadeiro pacifista poderia não só abraçar sua causa como aceitar plenamente os custos e sacrifícios dela decorrentes -- inclusive o sacrifício da própria vida. Não nego isso, uma visão transcendente realmente relativiza noções que, numa perspectiva mundana, não dariam margem a dúvida. Por exemplo, pouca gente duvidaria que os movimentos para evitar a Guerra do Iraque foram um fracasso, já que não atingiram seu objetivo principal; contudo, espiritualmente falando, não se pode medir o quanto eles foram bem-sucedidos em pelo menos mudar as idéias sobre guerra e paz daqueles que com eles tomaram contato. Disse Gandhi, não sei se com essas palavras, que "o caminho é a meta" -- na não-violência, o mero esforço para alcançá-la, a vivência sincera dessa opção de vida, já consiste numa vitória, nem que seja para os próprios ativistas. E lendo os testemunhos de membros e ex-membros de vários movimentos sociais, não apenas os religiosos, vê-se que realmente eles podem promover significativas mudanças nas consciências dos que com eles se relacionam. São "olhos que se abrem", emoções que se educam, horizontes que se expandem. Isso já independe da conquista de uma causa concreta, e dificilmente será uma experiência a ser esquecida por aqueles que tomaram parte nela. Na pior das hipóteses, ao menos para eles o movimento terá sido um marco em sua vida.

É possível difundir uma perspectiva assim? É prática numa cultura laicizada? Mesmo aceitando o que "o caminho é a meta", não devemos nos preocupar ao máximo com a eficácia do movimento? E se esta não existir ou demorar, como lidar com a frustração daqueles que deram seu suor e seu sangue (até literalmente) pela causa?

Tenho pensado muito nessas coisas e ainda à procura de interlocutores.

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Para Filósofo Francês, Violência é Método Ultrapassado

Entrevista de Jean-Marie Muller publicada no jornal
Folha de S. Paulo em 01/12/2005

FLÁVIA MANTOVANI
da Folha de S. Paulo

A não-violência não é uma teoria idealista ou fora da realidade. A violência é que é.Quem inverte o senso comum é o filósofo francês Jean-Marie Muller, que pesquisa, hámais de 30 anos, a teoria da não-violência. Para ele, é preciso experimentar um novocaminho para resolver os conflitos humanos. "A violência dá exemplos em excesso de fracassos para que não tenhamos a inteligência de tentar a não-violência", afirma.

Autor de 27 livros na área, Muller coloca em prática o que prega. Em 1970, fez greve de fome para protestar contra a venda de aviões Mirage ao governo militar brasileiro. Em 1972, participou da ação do Batalhão da Paz, que conseguiu pôr fim aos testes nucleares a céu aberto realizados pela França. Muller é fundador e diretor do Instituto de Pesquisas sobre a Resolução Não-Violenta de Conflitos, que participa das reuniões da defesa nacional francesa. Em São Paulo a convite da Associação Palas Athena, ele concedeu a seguinte entrevista à Folha.


Folha- Como educar as crianças para a não-violência?

Jean-Marie Muller- Antes, gostaria de falar sobre a não-violência na educação. Ao
longo da história, a violência contra a criança foi considerada um meio de educar: pais e educadores batiam nelas. Hoje, a violência por parte dos professores é proibida em muitos países, mas é permitida nas famílias. A experiência e as pesquisas mostram que crianças que apanham tornam-se pais violentos. Ao mesmo tempo, a criança precisa da autoridade do adulto e não vamos permitir que ela faça tudo. É preciso colocar limites e fazê-la compreender que é do interesse dela respeitar as regras. É o que chamamos de regra de ouro, que é "não faça ao outro o que você não quer que o outro faça com você". No fim das contas, é a educação do respeito ao outro. Quando acontece o conflito entre duas crianças no pátio do recreio, por exemplo, é preciso que o adulto intervenha e faça o que chamamos de mediação. Nesse caso, trata-se de reunir as duas para uma conversa.

Folha - Isso vale também para conflitos entre adultos?

Muller- No essencial, sim. Se podemos fazer com que as crianças compreendam a regra de ouro, esperamos que os adultos também o façam. As pessoas devem entender que a violência é sempre um fracasso, um drama, um sofrimento que jamais solucionará os conflitos humanos. Conflitos são naturais, mas é preciso resolvê-los de forma que tenhamos dois ganhadores, seja no nível da vida pessoal, na vida política em uma sociedade ou mesmo no nível internacional.


Folha - A não-violência é diferente da passividade ou da covardia?

Muller- Gandhi dizia que, se a escolha fosse unicamente entre a violência e a covardia, ficaria com a primeira. Para ele, era preferível que os indianos resistissem violentamente a aceitar a dominação. Ele afirmava que havia muito mais coragem na não-violência do que na violência. Um episódio que ilustra bem isso foi o que ocorreu com Rosa Parks, a primeira mulher que lançou a resistência dos negros nos EUA. Na época, os ônibus tinham lugares reservados para os brancos. Um dia, ela se sentou em um desses lugares. Quando um branco pediu que ela se levantasse, ela permaneceu sentada. Quando o condutor do ônibus pediu o mesmo, ela continuou lá, e não se moveu nem quando os policiais chegaram. Permanecer sentada exigia muita resistência, energia e coragem. A covardia teria sido levantar-se.

Folha - O uso da violência não é necessário nem para se defender de um ataque?

Muller- O homem violento se defende sempre de um ataque. É sempre o outro que começou. No conflito entre israelenses e palestinos, cada lado usa a violência para se defender da violência do outro. Os dois justificam seus assassinatos pelos seus mortos. É verdade que é preciso se defender. A questão é encontrar as estratégias não violentas eficazes para isso. No nível pessoal, as artes marciais são métodos não violentos de autodefesa. O aikido, por exemplo, permite que um japonês pequenininho se defenda de um japonês enorme que tem uma espada. No caso de Israel e Palestina, é evidente que a violência não vai resolver o problema. Hoje, eles são praticamente incapazes de encontrar por si próprios uma solução. É necessária uma mediação
internacional. Seria preciso que centenas, milhares de voluntários internacionais formados na resistência não violenta de conflitos se dirijam para lá e usem os métodos de mediação no interior sociedade civil.

Folha - Os jovens filhos de imigrantes que queimaram carros na França poderiam ter
usado métodos não violentos de protesto?

Muller- Eu deveria dizer sim, mas isso seria fácil demais. Não devemos reescrever a história. O que é necessário é compreender por que houve essa violência. Esses jovens estão numa situação de ruptura social: fracasso na escola, falta de trabalho, famílias desestruturadas, racismo. São jovens a quem a palavra nunca foi dada. Para eles, a violência não é um meio de ação: é uma forma de expressão, um grito de revolta que expressa o sofrimento e a falta de esperança. E eu diria, contrariamente ao que diz o presidente da França, que a primeira coisa que precisamos fazer é compreender, e a segunda, proibir. Não são os policiais que devem resolver a situação. O que é grave é que nós esperamos que os carros fossem queimados para cuidarmos dos problemas. O governo tinha suprimido quase que a totalidade das subvenções para associações sociais, tinha suprimido a polícia comunitária. Parece que eles vão restabelecer isso tudo. Agora eu acredito que, depois dessa explosão de violência, seria essencial que esses jovens pudessem encontrar outros meios de expressão não violentos.

Folha - A construção de uma civilização não violenta é possível?

Muller- Não vou responder que é impossível e sei que não é suficiente responder que ela é possível. Vou dizer que ela é difícil. Isso porque ela não vai acontecer naturalmente. Quando me perguntam se sou otimista ou pessimista, cito o escritor francês George Bernanos, que dizia que o otimista é um imbecil feliz e o pessimista, um imbecil infeliz. Recuso-me a escolher entre duas formas de imbecilidade. O peso da herança da violência sobre a sociedade é tão grande que não posso ser otimista. Mas não sou pessimista, porque a violência não é uma fatalidade. Ela é construída pelas mãos dos homens. Nossas mãos podem desconstruir a fatalidade da violência. Acredito que há lugar para uma esperança. Nos oito dias que passei em São Paulo, encontrei muitas pessoas dispostas a experimentar a não-violência. Certamente, sairei do Brasil com mais esperança do que quando cheguei aqui.

4 comentários:

Anônimo disse...

Padawan,
você está encarando a questão do "resultado" de uma forma mecanicista, de consequência direta da ação. Medite sobre o versículo 2.35 do Yoga Sutra de Patanjali, e você encontrará a resposta que procura.

Rodrigo disse...

Meu caro amigo,

Há quanto tempo! O Yahoo proscreveu meu email de algumas listas, e isso inclui a Espiritismo 21. Fiquei sem contato com vocês... :-(

Obrigado pela dica, eu encontrei o verso. Desconfio que Muste, no fundo, é que está certo... ao menos por enquanto. Nem todas as coisas são plenamente traduzíveis para uma linguagem estritamente pragmática, e isso, se permite grandes insights por quem adere a elas, limita sua difusão entre os demais. Não sei, estou pensando -- com a mente e o coração -- nessas coisas. O objetivo/pretexto seria uma exploração acadêmica, mas tem muito mais envolvido.

Parece que para você elas já estão resolvidas há tempos. Tenho saudades do grupo e de nossos (raros, admito) papos "viajantes". Numa próxima vez, deixe um email, vamos retomar contato. Afinal, para assuntos dessa ordem, ainda estou para encontrar interlocutores melhores.

Um grande e fraternal abraço,
R.

Anônimo disse...

Nossa, esse tema é muito interessante. A forma com que Muller fala da prática da não-violência ser real é realmente muito reflexiva. O exemplo da guerra do conflito entre Israel e Palestina é simplesmente perfeito pra uma discussão como essa (ainda mais que se trata de uma região "sagrada").

Adorei o post Azel! Espero ler mais sobre isso por aqui :)

Beijos estrelados ;*

Caucuz disse...

Ei vc se elmbra da minha voz...hahahah, mas os meus cabelos quanta diferença.
Não li o post,vim mais para visitar vc mesmo.
beijos da sua amiga.
Claudinha