domingo, fevereiro 03, 2008

Será preciso um cânone literário?

Prospect Magazine
06/12/2007


Jonathan Sacks está certo quando diz que precisamos de uma cultura comum, mas errado em pensar que deve ser baseada em um cânone. Forçar os jovens a ler a Bíblia não vai promover um sentido de comunidade. As referências compartilhadas devem evoluir mais organicamente
Richard Jenkyns*

O rabino máximo dos EUA, Jonathan Sacks, recentemente escreveu: "A existência de um cânone é essencial a uma cultura. Significa que as pessoas compartilham um conjunto de referências e ressonâncias, um vocabulário público de narrativas e discursos". Esta herança compartilhada, segundo ele, está sendo destruída pelo multiculturalismo e pela tecnologia, televisão via satélite e a Internet em particular. Mas o que é um cânone? Precisamos de um? Estaremos sofrendo de "ansiedade canônica"? Por quê?

A idéia de um cânone tem uma origem religiosa. No início, a igreja teve que decidir quais dos seus textos eram escrituras sagradas e quais não eram. A decisão era sim ou não: o livro ou estava dentro ou estava fora.

Essa noção religiosa logo se misturou com outra tirada da cultura secular: a idéia do gênio. A noção que grandes poetas e músicos são homens destacados é muito antiga. A princípio, pensamos que pessoas especiais recebiam inspiração de fora delas, de um deus ou musa. Mais tarde, o gênio passou a ser visto como uma qualidade inata do artista.

Apesar de todo seu apelo emocional, essa idéia parece improvável à luz fria da razão: parece mais plausível supor um espectro mais ou menos contínuo de habilidade criativa do que uma divisão profunda entre o gênio e o resto. Mas, se é assim, podemos nos perguntar por que somos tão atraídos para as noções de gênio e de cânone. A resposta talvez esteja em nossa necessidade de heróis.

Aqui entra em cena a situação particular na qual nos encontramos no início do século 21. Vivemos em um mundo sem heróis. A única exceção é Nelson Mandela, e sua canonização é testemunha do vazio que ajuda a preencher. A metade do último século teve homens como Churchill, Mao e De Gaulle que, de um jeito ou de outro, foram grandes figuras. Duas décadas atrás havia líderes como Thatcher, Gorbatchev e novamente Mandela. Hoje, por outro lado, parece que nenhuma das quase 200 nações do mundo é liderada por uma pessoa de qualidade verdadeiramente excepcional. Talvez tenhamos sorte de viver em uma era que pede tecnocratas em vez de titãs, mas algo se perdeu. Nossa era tampouco tem heróis culturais vivos, e não deve ser surpresa se isso levar mais comentadores a colocarem mais peso em nossa herança do passado -ou seja, no cânone.

Outra razão para a ansiedade de cânone talvez seja uma sensação que a elite política e a mídia perderam o interesse ou a paciência. Aqui a atitude oficial é curiosamente dúbia. Por um lado, todo mundo elogia o valor das artes: talvez surpreendentemente não seja mais ouvida a voz vigorosa e sem papas na língua que declara que gastar em cultura é desperdício de dinheiro honesto.

Por outro lado, o governo defende as artes apenas em termos de vantagem econômica e de utilidade social estreitamente concebidas. A beleza e a glória não são termos do vocabulário político. E não apenas nossos políticos relutam em defender o valor das artes por si mesmas, mas parecem evitar ativamente mostrar um interesse nelas.

Sacks está certo em dizer que uma sociedade precisa de referências compartilhadas e ressonâncias, mas não há razão inerente para essas serem da alta cultura. As referências cruzadas precisam evoluir naturalmente, acima de tudo. A maior parte delas deriva da cultura popular, e muitas são como piadas da família. A televisão teve um enorme poder unificador, apesar desse poder agora declinar com a proliferação de canais e novas mídias.

Para compreender como um cânone é formado e como pode ser socialmente útil, podemos olhar para outro tipo de canonização, do indivíduo. Os santos mais antigos e mais duráveis não foram criados pelo papa: de alguma forma foram canonizados por um processo compartilhado entre a igreja e o povo. Similarmente, foi uma colaboração obscura entre os intelectuais e o povo que canonizou os grandes escritores.

Considere a mais impressionante canonização literária de nossos tempos. Jane Austen sempre foi estimada, mas, nos últimos 15 anos, ela se tornou a romancista inglesa, uma parte inescapável da consciência pública, mais universalmente presente do que qualquer outro autor além de Shakespeare. Em amplo senso os acadêmicos e outros admiram as mesmas coisas em Austen: tramas bem feitas, retrato sensível dos personagens e estudo agudo da interação social. É uma canonização genuinamente popular.

Isso significa que não podemos fazer nada sobre nossa condição cultural? Devemos deixar as coisas tomarem seu próprio rumo? Não inteiramente. Há muito que podemos fazer sobre a forma com a qual ensinamos literatura, apesar de ser preciso um equilíbrio entre atrair os jovens pelas obras mais naturalmente agradáveis a eles e afastá-los com trabalhos que podem ser menos atraentes. Devemos ensinar o desenvolvimento de um gosto pessoal: o risco em destacar o cânone demais é que pode nos deixar sempre no alto do Monte Parnaso, exigindo que gostemos daquilo que nos disseram para gostar. Entretanto, sem uma predileção pessoal, não há verdadeiro cultivo.

A classe política deve proclamar o valor da cultura por ela mesma. Os que têm entusiasmos culturais devem tirá-los do armário, e o resto, pelo menos fingir. Isso seria a coisa certa a fazer e duvido que votos fossem perdidos. As pessoas, no final, não querem que seus líderes sejam exatamente como elas e, independentemente do que dizem, há bastante evidência que o público ainda gosta de um cavalheiro.

Todos nós, inclusive os políticos, devemos parar de procurar uma cultura de "maior denominador comum" e, em vez disso, afirmar que nossa cultura tem base em uma história distinta: do cristianismo e da Bíblia, da Antigüidade greco-romana, Renascença, Reforma e Iluminismo.

O rabino superior está certo em dizer que o multiculturalismo foi um desastre. Por um lado porque de fato é monocultural: é uma demanda que todos os países devem ser como os EUA (apesar de sem a devoção dos EUA à nação e à constituição). Por outro, porque inibe a expressão robusta e confiante da cultura da maioria, apesar dessa robustez e confiança darem melhores condições para que culturas de minoria também floresçam.

*Richard Jenkyns é professor da Universidade de Oxford.

Tradução: Deborah Weinberg

Nenhum comentário: