segunda-feira, dezembro 24, 2007

Deuses obscuros

Uma das coisas que me dão profunda satisfação é descobrir autores novos. Não, não me refiro a nenhum talento que haja conquistado o Nobel antes dos 30 anos, nem a algum novo favorito dos críticos. Refiro-me simplesmente à considerável tribo dos negligenciados, se não pela mídia, certamente pelo grande público: a massa de talentos, às vezes até bastante prolíficos, sobre os quais é quase impossível ver algum comentário, seja na Academia ou nos bate-papos entre amigos letrados. Comumente escondem-se em edições esgotadas, títulos encalhados nas prateleiras dos sebos, em publicações eventualmente financiadas por eles mesmos e que vão parar nalguma banca de jornal do Centro da cidade. Às vezes, um deles, obscuro no Brasil mas renomado no exterior, é lançado aqui com certo estardalhaço — mas em uma edição tão cara que ele acaba por se manter um sub-celebridade, um notável entre os desconhecidos, como os nobilíssimos duques russos que foram trabalhar como porteiros e motoristas após a Revolução de Outubro. São esses tipos peculiares, aristocratas no mérito e plebeus no reconhecimento, que costumo procurar nas minhas patrulhas pelas prateleiras das livrarias. Em meio a títulos curiosos, capas esmaecidas e editoras naufragadas, estou sempre atrás da frase bem cunhada, da tese instigante, do tema incomum, que farão com que aquele nome inexpressivo na capa se torne minha mais nova referência mental.


Naturalmente, é sempre pequeno o número de autores assim. A mera ausência de fama não constitui mérito algum. É preciso o singular contraste entre a inexistência de celebridade e o impacto das palavras e idéias para que alguém entre nesse rol. Agora, de improviso, posso citar pelo menos três casos exemplares.


Diz-me uma dedicatória no frontispício que já se passaram quase 11 anos desde que Colin Wilson entrou no meu horizonte. Apareceu por obra e graça de um amigo que então fazia pesquisas extensas a respeito das manifestações da sexualidade na história e na cultura, e havia se interessado particularmente pelo campo das chamadas ciências ocultas. Lembro-me de que ele sempre falava que eu iria gostar de Colin, por se tratar de um cético explorando um assunto costumeiramente abordado apenas por adeptos. Eu concordava educadamente, mas sem qualquer intenção de adquirir um exemplar — aos 18 anos incompletos, meus recursos para livros eram limitados. Até que acabei ganhando o primeiro volume de O Oculto, uma história do ocultismo e da paranormalidade no Ocidente. Combinando história, literatura, antropologia, filosofia e seus próprios insights, tratava-se de uma investigação em que Wilson procurava, em meio às inúmeras histórias e lendas dessa área nebulosa da atividade humana, o que poderia haver de verdadeiro. Autor conhecido por obras de filosofia, crítica literária e — detalhe saboroso — ficção-científica, ele não partia da premissa freqüente de que tudo o que essas narrativas tinham de incomum era fruto da imaginação de alguém. Na verdade, como ele mesmo diz, ao longo de seus estudos ele foi percebendo notáveis convergências entre místicos, poetas, pensadores e casos comuns da imprensa — e ao mesmo tempo, foi apontando os absurdos e distorções em torno de mitos consagrados, como o do fabuloso e ainda reverenciado Conde de Saint-Germain. E tudo isso num texto agradável, repleto de referências eruditas e idéias profundas, que deram respeitabilidade a uma série de informações que até então eu vira, ainda garoto, apenas de forma fragmentada e sensacionalista em autores como este.

A partir daí, Wilson tinha um novo fã, que não tardou em comprar o segundo volume e vários outros livros seus de não-ficção. De poltergeist a Goethe, de experiências de quase-morte aos versos de William Blake, de assassinos seriais à ironia de Anatole France, lá estava eu encantado com esse autodidata, filho de pais trabalhadores, que só freqüentou a universidade como zelador, mas conseguiu ser reconhecido por uma obra-prima aos 24 anos e acumular cultura suficiente para envergonhar mais de um acadêmico de ofício — e mesmo assim sem se deixar infectar pela atitude blasé tão comum nestes últimos.


O segundo... Bem, não me recordo bem se ele foi mesmo o segundo ou o terceiro. Não é sempre que dato os livros que adquiro, e a memória, deixada sozinha, nem sempre merece confiança. Então, contentemo-nos com a afirmação de que achei Antônio Bulhões em pleno rush das seis da tarde na Av. Rio Branco, no Centro do Rio. A Livraria Brasileira, hoje extinta, havia posto um “saldão” de livros a um real na porta, e lá fui eu garimpar alguma coisa no meio de paginas amarelas e capas periclitantes. Achei um livro de contos, Estudos para a Mão Direita, de um autor de quem nunca ouvira falar. A vantagem do livro de contos é que ele permite passear rapidamente pelos diferentes “sabores” de um autor, avaliar, mesmo que de forma impressionista e apressada, seu estilo, como a um cantor a quem se pede para mostrar trechos de várias canções de gêneros diversos. E foi então que abri o primeiro, “Valsa”, e li:


Traje dos rapazes, branco a rigor. Para quem não viu, ou não se lembra, constituía-se de, alvos como a neve, jaquetão e caça de linho fosco ou esmaltado brim, camisa de cambraia ou tricolina, meia de fio de Escócia, engomado colarinho de ponta virada, e, negro como a asa da graúna, sapatos de verniz refletindo as lâmpadas do teto, e gravata borboleta de rebrilhante cetim. Traje das moças, vestido comprido. O que hoje se chamaria de longo, em seda chamalotada, musselina, organdi, tafetá, rendas valencianas, e em cores suaves, que estas faziam a moda: rosa, azul-pálido, verde-água, no máximo amarelo canário, de esquecidos feitios: evasée, godê-soleil, Império, Diretório, Jean Harlow (para as realmente ousadas) e, à falta de novos lançamentos e das revistas femininas que o conflito europeu colocara em recesso, um certo vale-tudo, com profusão de laços e bordados, mas nada de ultrapassadas melindrosas, que as forma se queriam, conquanto protegidas, roliças e prometedoras.


Por alguma razão, fosse a dosagem dos adjetivos, a alongar da descrição, ou a nítida impressão de que se tratava antes de uma memória afetuosa que de uma criação ficcional, esse primeiro parágrafo me agradou. Já por natureza dado a nostalgias, em particular daquilo que jamais vivi nem presenciei, eis que me vi num Rio de Janeiro idealizado, distante, que o saudosismo dos velhos, a distância dos costumes e a modéstia das estatísticas sociais costumam glorificar como mais inocente. Como se vê, era qualquer coisa de romântico o que me manteve com o livro na mão. Como o próprio autor diria, mais adiante:


Nesses idos, o teatro era ruim, era precária a vida noturna ao nosso alcance, e não existia a televisão. Nosso ócio pesava, bem custava preenchê-lo. Durante o ano, não nos restava, para vencer o tédio, senão o recurso ao esporte amador, que praticávamos canhestros com afinco, às comédias ingênuas e aos musicais da Metro Goldwyn Mayer, à desapoderada torcida pelos times de estimação de cada um: Fluminense, flamengo, Botafogo, Vasco, América... O escrete nacional não nos sensibilizava tanto quanto a paixão clubística. O Brasil era tão municipal!...


Desconhecíamos a luta de classes e nos uníamos, do cimo ao fundo das hierarquias coletivas, nas peladas de rua, de areia ou de terrenos baldios, nos carambolados torneios de sinuca ou bilhar francês, nas ingênuas tardes chuvosas gastas em disputas ferrenhas de sete-e-meio ou de xadrez. Líamos, líamos bastante: Rafael Sabattini, Edgar Wallace, Robert Louis Stevenson, Júlio Verne, e os metidos a intelectuais traçavam Eça de Queirós, Paulo Setúbal, José de Alencar, Anatole France,Victor Hugo.


E assim seguem os contos, num tom afetuoso, em divagações repletas de memória e delicadeza, ora para descrever uma paixão juvenil pela professora de natação, ora a descoberta do próprio corpo púbere, uma noite melancólica, a contemplação sedenta de um corpo atraente — momentos que poderiam fazer parte da vida de tantos de nós, e de fato terão feito mais de uma vez. Comprei o livro e, quando pude enfim lê-lo depois dos sufocos do metrô lotado, fiquei me perguntando quem era esse homem, esse tal Bulhões de quem nunca ouvira falar, mas que me fizera sentir como se o tivesse procurado a vida toda. Por que nunca soubera dele? Que prêmios ganhou, que outros livros escreveu? Estaria ainda vindo? Produzindo?


Passou-se um tempo que não consigo mais determinar, e eis que o Destino me respondeu. No suplemento literário de O GLOBO, vejo uma matéria sobre uma nova obra em três volumes sobre o Rio de Janeiro, mais precisamente sobre o que a cidade era em 1922. Tratava-se de uma “história afetiva” da cidade, extensa e deliciosa, escrita em forma de diário por um advogado de 84 anos residente em Copacabana. Bastava olhar para o tamanho dos volumes, vendidos numa caixa, para entender que se tratava da obra de uma vida. E não foi sem um sorriso que vi ali o mesmo autor descoberto no sebo, o que tanto prazer me dera por apenas um real.


Ainda sei pouco sobre o Sr. Bulhões. Comprei outro livro dele, mais recente (Estudos... era de 1976), de contos mais curtos, mas ainda assim deliciosos. E confesso ainda estar aguardando pela trilogia sobre o Rio — cara demais para comprar por impulso, preciosa demais para deixar abandonada na estante. Mas eu o admiro como a um modelo, dono de um estilo que, talvez pretensiosamente, eu julgo de alguma forma parecido com o meu. Não, o mais correto (e modesto) seria dizer que gostaria de ter o estilo mais parecido com o dele. Pouco importa. Por um desses caprichos da vida, eu o incorporei ao meu panteão particular, e o tenho como uma referência valiosa.


Enfim, há Jacques Barzun. Não me recordo mais como foi que o descobri, exatamente. Talvez tenha sido numa matéria de jornal, quando uma editora brasileira traduziu From Dawn to Decadence – From 1500 to the Present: 500 Years of Western Cultural Life. O fato é que, avesso ao preço absurdo da versão brasileira, logo achei o original em capa dura por míseros 12 dólares na Amazon.com. Devo ter lido as resenhas dos leitores, quase todas elogiosas, e certamente achei que um livro de tão grande escopo seria uma aquisição útil. Quando finalmente o recebi, um ou dois meses depois, e li o primeiro capítulo, que tratava da Reforma Protestante, tive a certeza de fiz a escolha certa: ainda não tinha visto o movimento luterano ser apresentado daquela forma, cheia de detalhes deliciosos, mas sem perder a análise geral, auxiliada por citações na margem das páginas. Porém, não preciso discorrer aqui sobre os méritos de meu centenário colega (sim, completou 100 anos em plena forma, ao que tudo indica). Barzun é justamente o caso de alguém cujos méritos são desconhecidos apenas aqui, abaixo da linha do Equador, o que eu mesmo pude apurar (mas de forma pouco científica, admito) ao dar uma busca por seu nome no Orkut e só ter achado uma usuária que o mencionava.


Deixo aos leitores a oportunidade de conhecê-lo nos posts abaixo. Espero que apreciem.

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