quinta-feira, maio 24, 2007

Natureza x Educação: novo round

Mais um cartucho disparado na guerra pelas origens de nosso comportamento, a velha disputa entre inatistas e empiristas agora embrulhada em fitas de DNA e argumentos darwinistas. A posição básica da autora abaixo certamente soará bizarra frente ao senso comum, mas é sempre saudável ouvir uma posição nova (ou a reencarnação de uma antiga) sobre um tema tão instigante. E como não poderia deixar de ser, partilho esta descoberta virtual com meus cinco leitores.

Descanso, de William-Adolphe Bouguereau (1879)

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Prospect Magazine, maio de 2007



Por que o lar não tem importância
Ao contrário do que afirmam alguns especialistas, uma pesquisa mostra que o ambiente familiar em que crescemos não é decisivo para a formação da nossa personalidade

Judith Roch Harris*

Desde os anos 1970, os geneticistas do comportamento vêm estudando de muitas maneiras as características do ser humano. Eles observaram traços da personalidade como a extroversão, a consciência e a agressividade. Eles examinaram as desordens mentais, a inteligência e aspectos das histórias de vida de pessoas. Em praticamente todos os casos, os resultados foram os mesmos. Cerca de metade das alterações encontradas nas características estudadas podia ser atribuída a diferenças genéticas. A hipótese, portanto, era de que a outra metade das alterações encontradas em certas pessoas era imputável aos efeitos do seu meio-ambiente.

Os pesquisadores até agora não conseguiram estabelecer quais aspectos do meio-ambiente em que vive uma pessoa são importantes. Mas eles foram capazes de determinar quais aspectos do meio-ambiente não são importantes, montando uma lista na qual eles incluíram todos aqueles que são compartilhados por todas as crianças de uma dada família.

Quer o lar seja chefiado pelo pai, pela mãe ou pelos dois, quer os pais tenham um casamento feliz ou se disputem constantemente, quer eles se dediquem a incentivar os seus filhos a serem bem-sucedidos ou prefiram deixá-los encontrar o seu próprio caminho na vida, quer a casa familiar esteja repleta de livros ou de equipamentos de esporte, quer ela seja ordenada ou bagunçada, um apartamento na cidade ou uma fazenda - a pesquisa mostra, de modo contra-intuitivo, que nenhuma dessas coisas faz diferença.

Ela também mostra que, em média, a criança que cresce num lar ordeiro e bem organizado não se revela mais conscienciosa ao se tornar um adulto do que aquela que cresceu num lar bagunçado. Ou ainda, melhor dizendo, ele ou ela será mais consciencioso apenas na medida em que ele ou ela terá herdado esta característica de forma mais ou menos pronunciada.

E, ainda assim, quase todos os psicólogos do desenvolvimento infantil cometem o erro de admitir que, ao se mudar para outro lugar, a criança leva automaticamente com ela aquilo que ela aprendeu até então no ambiente do seu lar. Por exemplo, há pesquisadores que acreditam que a qualidade do apego de uma criança pela sua mãe durante a infância determina o padrão que caracterizará todos os seus relacionamentos posteriores. Se a sua mãe lhe deu todo o amor e a atenção que ela pudesse querer, ela se dará bem em sua vida porque ela aprendeu a confiar nas pessoas.

Mas os recém-nascidos não funcionam dessa maneira. Um bebê é inteligente o suficiente para entender, praticamente a partir do nascimento, que as pessoas são diferentes umas das outras. O fato de a sua mãe tratá-lo bem não o conduz a esperar que a sua irmã ou a sua babá farão o mesmo. De que maneira as outras pessoas irão se comportar com ela, é algo que esta criança terá de descobrir por conta própria, e de uma pessoa para a outra. As crianças parecem saber instintivamente que os padrões de comportamento que elas adquiriram no lar precisam ser cuidadosamente testados, e possivelmente modificados ou abandonados, quando elas começam a ter uma vida fora do lar. Além disso, a influência das pessoas próximas não começa nos anos da adolescência: ela pode ser observada desde os 3 anos de idade.

Ainda assim, algumas crianças são mais agressivas, ou mais impulsivas, ou mais conscienciosas do que outras, onde quer que elas vão. Os pesquisadores descobriram que quando certas crianças apresentam as mesmas características numa variedade de situações, isso se deve geralmente a influências genéticas. Uma criança que herdou uma predisposição a ser agressiva ou conscienciosa reproduzirá esses traços tanto no lar quanto na escola. É este transporte das predisposições herdadas de um meio-ambiente para outro - além do fato de que essas predisposições tendem a aparecer muito cedo durante a vida - que transmite a falsa impressão de um efeito duradouro do ambiente do lar sobre a formação da personalidade.

Seria um equívoco, entretanto, superestimar o poder das predisposições herdadas. O comportamento de gêmeas idênticas fornece uma boa ilustração para isso: mesmo quando elas são criadas no mesmo lar, pelos mesmos pais, em sua maioria as gêmeas idênticas apresentam notáveis diferenças de personalidade.

Nenhuma das teorias do desenvolvimento da personalidade existentes oferece explicações adequadas para esse fato. O raciocínio que eu inventei baseia-se numa descoberta feita por neurobiólogos e psicólogos da evolução. Ao que tudo indica, o cérebro humano não é um órgão unitário e sim uma caixa de ferramentas dotada de vários dispositivos, ou "módulos", cada um dos quais sendo destinado pela evolução a executar uma função específica.

O que eu estou postulando é que a mente humana contém três módulos diferentes cuja função é de coletar e responder às informações que emanam do meio-ambiente social. Eu os chamo de sistema de socialização, sistema de status e sistema de relacionamento. O sistema de socialização nos estimula a querer nos integrar - para agir de acordo com os nossos pares. O sistema de status nos conduz a querer nos sobressair - para ser melhor do que os nossos pares. Nós podemos observar essas motivações em pessoas de todas as idades.

Esses sistemas são órgãos da mente. Assim como outros órgãos, eles são encontrados em todos os seres humanos neurologicamente normais. Mas, assim como acontece com os outros órgãos, eles variam um pouco de um indivíduo a outro. Para algumas crianças, o sistema de socialização geralmente se torna prioritário; para outras, o sistema de status não raro se revela preponderante. Essas diferenças tornam-se visíveis somente quando as duas metas - integrar-se ou diferenciar-se - entram em conflito entre elas. Em outros períodos, as duas metas podem coexistir pacificamente. A criança na escola está sentada calmamente na sua cadeira, assim como os seus colegas de classe: ela age em conformidade com o ambiente. No mesmo momento, ela pode tentar se destacar esmerando-se na leitura ou nos cálculos.

Para poder competir de modo bem-sucedido com os seus colegas, as crianças precisam adquirir um conhecimento de si mesmas. Elas devem descobrir como podem se comparar com as outras crianças no quadro de uma variedade de dimensões. Serei eu alto ou baixo, forte ou fraco, bonito ou comum, inteligente ou medíocre? Baseadas na sua compreensão das suas próprias forças e fraquezas, em função das opções oferecidas pelo seu meio-ambiente, e do conjunto particular formado pelas outras crianças com as quais eles precisam competir, as crianças elaboram a sua própria estratégia individual de comportamento. Até mesmo gêmeos idênticos vão encontrar nichos diferentes para ocupar.

A maior parte das tarefas do sistema de socialização se desenvolve abaixo do nível da consciência, assim como ocorre com parte das tarefas empreendidas pelo sistema de status. Em contraste, as tarefas executadas pelo terceiro módulo, o sistema de relacionamento, são plenamente conscientes. O sistema de relacionamento é também aquele que se desenvolve o mais cedo - ele já vem pronto ao nascer.

O sistema de relacionamento nos motiva a criar novos relacionamentos, a manter os que já existem se eles estão dando certo, e a descobrir tudo o que nos for possível sobre as novas pessoas que encontramos. A urgência de aprender novas palavras e novos fatos desaparece gradativamente à medida que nos tornamos mais velhos, mas nunca perdemos a nossa curiosidade em relação às pessoas. A bisbilhotice e o mexerico é um esporte popular até mesmo nos lares dos idosos. É o sistema de relacionamento que atiça a nossa fome por biografias e novelas, e que nos estimula a querer ver fotos de atores de filmes e de estrelas dos esportes.

A função do sistema de relacionamento é de rachar, dividir, e não de amontoar, acumular. A sua tarefa é de estabelecer diferenças entre as pessoas - de constatar e recordar aquilo que torna cada indivíduo diferente de todos os outros. Ele escolhe os nossos amigos, seleciona os nossos parceiros sentimentais, e nos diz quem são os nossos próximos e como devemos nos comportar com eles. O fato de saber que alguém é um parente próximo aumenta as chances de querermos ajudá-lo, mas reduz as chances de querermos ter uma relação sexual com ele.

É o sistema de relacionamento, com o seu armazém repleto de recordações da mãe e do pai, que nos conduz a acreditar que os nossos pais exerceram um papel central ao fazerem de nós o que somos. Este sistema contribui mais do que ele deveria para as nossas recordações conscientes. As emoções fortes associadas a essas recordações nos conduzem a sentir que elas devem ser importantes. Mas a verdade é que as pessoas não sabem por que, nem como elas se tornaram o que elas são.

Elas podem até mesmo perguntar isso para os seus pais, o que teria pouquíssimas chances de ser proveitoso, porque os pais enxergam apenas uma parte da vida dos seus filhos. Embora os relacionamentos com os pais exerçam efeitos profundos sobre a felicidade das crianças no seu dia-a-dia, exatamente da mesma forma que os relacionamentos maritais influenciam fortemente a felicidade dos adultos no seu dia-a-dia, eles não deixam marcas profundas na personalidade. Com o correr do tempo, é o que acontece com elas fora do ambiente familiar que conduz as crianças a se transformarem no que elas são. Afinal, é fora do ambiente familiar que elas são destinadas a levar a sua vida de adultos.

*Judith Rich Harris é uma psicóloga, autora do livro Não Há Dois Iguais: natureza humana e individualidade)

Tradução: Jean-Yves de Neufville

2 comentários:

Marconi Leal disse...

A tese é interessante porque põe de cabeça para baixo aquilo em que tradicionalmente se acreditava. Ótimo post.

Barbara Lucas disse...

gostei... bom quebrar paradigmas.
:)