sábado, maio 19, 2007

Sexualidade e religiosidade nas origens do Cristianismo

Sexualidade e Religiosidade
nas origens do Cristianismo

BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

Gabriel Passetti *
Mestrando em História Social/USP
passetti@klepsidra.net


Peter Brown, professor de História Antiga na Universidade de Princeton (EUA), publicou em 1990 uma obra que rapidamente foi transformada em um clássico a respeito da pouca estudada era da Baixa Antigüidade, aquela compreendida entre a ascensão do cristianismo em Roma e a queda do Império.

Seu Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo, trabalha com a nebulosa construção do poder da Igreja Católica em sua fase atualmente denominada de Igreja Primitiva, ou seja, o período compreendido entre as peregrinações de São Paulo na década de 40 d.C até os escritos de Santo Agostinho, no século V: da sociedade pagã à sociedade cristianizada.
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O livro tem como eixo principal as discussões dentro da Igreja Primitiva a respeito da sexualidade e da espiritualidade, ou seja, continência sexual, jejuns, peregrinações, messianismo, celibato e virgindade. Dividido em três grandes partes – “De Paulo a Antônio”, “O ascetismo e a sociedade no Império do Oriente”, e “De Ambrósio a Agostinho: a formação latina” – o livro está estruturado cronologicamente e geograficamente. Ou seja, primeiro trabalha o surgimento da Igreja e dos grupos cristãos, passando então a focar as manifestações, grupos, pensadores e tendências religiosas no Império Romano do Oriente, para então partir para uma análise semelhante no Império Romano do Ocidente.


Alguns dos principais dogmas – além de alguns grandes estereótipos de nossa sociedade – têm sua origem neste período. Podemos acompanhar, por exemplo, o surgimento dos originais “gnósticos” ou “maniqueístas”. Segundo o Dicionário Aurélio, entende-se hoje por “Gnóstico”, algo que remete a “gnose”. Esta, “Conhecimento esotérico e perfeito da divindade, e que se transmite por tradição e mediante ritos de iniciação”. Já “Maniqueísta” remete a “Maniqueísmo”: “Doutrina que se funda em princípios opostos, bem e mal”.


O termo “gnóstico” original talvez tenha sido perpetuado, segundo Brown, devido à atuação de Valentino. Na sua época (séc II), “gnose” significava “conhecimento verdadeiro”. Ou seja, declarar-se “gnóstico” significava que a pessoa dizia ser conhecedora e portadora da verdadeira mensagem de Cristo – no caso. Isto nos remete à realidade vivida nos princípios do cristianismo: um clero sem forte autoridade nem discurso coeso, convivendo com diversos grupos (“didascálias”) liderados por professores-líderes espirituais, cada um dizendo ser o verdadeiro portador da mensagem de Cristo e acusando os demais de hereges. Será, portanto, nesta época de disputa interna por poder e por uma tendência única no cristianismo, que surgirá a importante idéia de heresia: visão incorreta e distorcida da fé.


Vê-se, portanto que a noção tradicional de gnose (“conhecimento verdadeiro”), nada tem a ver com o que hoje é entendido pelo mesmo termo (“conhecimento perfeito e esotérico da divindade”). Porém, de onde teria surgido esta deturpação da idéia de gnose? Isto ocorre exatamente nas lutas entre as didascálias e o clero, envolvendo Valentino. Este, propunha o mito como veículo da instrução religiosa. Para ele, o sexo seria o alimento para o fogo que destruía o Universo. Sua extirpação acabaria com a diferença entre os sexos. Os celibatários e os continentes, portanto, seriam assexuados, seriam apenas espírito e não carne. Durante as disputas internas de poder da Igreja, tais concepções serão postas de lado e classificadas por heréticas e, então, o termo “gnose” passará a assumir o tom pejorativo e negativo atual.


Com o “maniqueísmo” ocorreu um processo semelhante. Originalmente entendido como a linha teológica pensada por Mani, logo também foi classificada por herética e rotulada negativamente. Mani viveu no século III e acreditava que o corpo, por mais que se tentasse, era originalmente uma “argila imunda”. O sexo seria a representação do oposto da Criação, o caminho às Trevas. O anseio sexual deveria, então, ser banido para sempre, para que a Luz vencesse a batalha vital contra as Trevas. Sua doutrina exigia uma dura disciplina sexual e de alimentação, com uma hierarquia entre os Eleitos e os maniqueus. Sua adoração ao Sol e à Lua logo foram transformadas, no jogo político interno da Igreja, em heresia, e toda sua filosofia de embate entre a Luz e as Trevas foi reduzida ao que hoje é entendido por “doutrina que se funda em princípios opostos”.

É interessante notar como as discussões e idéias acerca da sexualidade sempre estiveram presentes nos embates teológicos cristãos. A humanidade, após o pecado de Adão e Eva, deveria pensar o que fazer com a maldição do sexo – fogo que mantinha a sociedade viva, porém distante de Jesus.

De São Paulo a Santo Agostinho, podemos acompanhar como que os conceitos de virgindade, sexo após o casamento, e celibato clerical foram sendo trabalhados até chegarem nas concepções que conhecemos da Idade Média. Se Paulo dizia que o celibato era perigoso por não permitir a reprodução da sociedade cristã – preocupação fundamental no começo da expansão cristã – já Márcio e Taciano, no século II, defenderão a total renúncia sexual para a formação de uma nova sociedade, com novos valores. Continuamos vendo o reflexo do pequeno grupo cristão à época existente: uma forma de diferenciar-se da maioria pagã era através da renúncia sexual, em um momento em que o número de adeptos do cristianismo era substancialmente maior do que na época de Paulo.

Após a oficialização da religião cristã no Império, com Constantino, podemos ver uma mudança nas idéias acerca da sexualidade. Não havia mais porque diferenciar a minoria cristã da maioria pagã. Agora, os cristãos eram a maioria. Então, as discussões passaram a ser em torno da virgindade – o símbolo do corpo imaculado para Orígenes deveria estar presente no clero: o corpo imaculado da Santa Igreja.

No século IV, então, a castidade – que havia sido fortemente defendida por Clemente no século II como diferenciação dos pagãos – passará a ter um novo significado: os casados serão autorizados a manterem relações sexuais, desde que preservando os dias santos, a menstruação, a gravidez e a lactação. Isto sendo cumprido, serão considerados castos: chega a idéia do sexo para reprodução, dentro do casamento sem adultério. Para João Crisóstomo, (séc IV), o casamento seria a única forma possível de controlar o desejo sexual.

Portanto, até o século V, estarão instaurados alguns dos principais dogmas católicos: o celibato clerical necessário para manter a pureza do corpo dos Ministros de Deus e da Santa Igreja; a virgindade como renúncia ao fogo sexual antes do sagrado matrimônio; e o sexo para reprodução e com restrições de datas, somente no casamento.

Santo Agostinho, aquele que pode ser entendido como o elo entre a Igreja Primitiva e a Igreja Medieval, instituída, regulada e dogmatizada, foi então quem consolidou tais idéias centrais do cristianismo, legitimando o casamento como o estado natural dos seres criados por Deus, e dentro deste, a dominação da mulher pelo marido, e dos filhos pelo pai – características fundamentais da sociedade medieval.


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Peter Brown narra o crucial período da consolidação dos ideais cristãos: época de duros embates e discussões sobre os principais dogmas religiosos, e da criação de alguns importantes mitos, como o da Virgem Maria (defendido duramente por Ambrósio), aquela com o corpo imaculado, teria sido escolhida por seu perfeito ascetismo. Narra-se, portanto, o embate entre o corpo e a alma, onde o sexo é o campo de batalha e onde a mulher é vista como a fonte de todo o pecado – reflexo maior de uma sociedade altamente machista e hierarquizada.

Brown escreve sobre o importante período da consolidação da mentalidade cristã, sobre a transição da era pagã à era cristã. Seu livro, um primoroso estudo sobre a História das Mentalidades, está baseado em farta documentação – composta quase que exclusivamente por obras teóricas escritas por homens – e apresenta ao leitor, em suas longas 485 páginas, as origens morais e teológicas que ainda hoje regem a sociedade ocidental.


Nota:
* - Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp

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