Correio da Bahia / Data:13/7/2004
A melhor tradução de um continente
Centenário de nascimento de Pablo Neruda reafirma engajamento e romantismo do poeta chileno
Paulo Sales
Há exatos cem anos nascia Pablo Neruda, escritor que quis amores tão ardentes quanto seus versos, não se esquivou das convicções políticas e se transformou em um dos grandes nomes da literatura no século passado.
Pablo Neruda costumava dizer que 'escrever é fácil - você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio, coloca as idéias'. Fácil para ele, que sabia como poucos construir um bom recheio. Seus versos encerravam a substância que serve de matéria-prima aos grandes poemas - a força vital, maciça e única do idealismo. Essa talvez seja a impressão mais nítida hoje, quando se comemora o centenário do poeta chileno, Prêmio Nobel de Literatura de 1971 e um dos mais obstinados tradutores do próprio continente.
Neruda certamente foi mais do que um poeta engajado. Parte significativa de sua obra versava sobre os labirintos do amor e a insaciabilidade permanente da paixão, que são o cerne de obras como Cem sonetos de amor (1959) e Vinte poemas de amor e uma canção desesperada (1924). Escancarados em três casamentos e número infinitamente maior de affairs ocasionais, esses sentimentos são dimensionados pelo próprio poeta em uma afirmação definitiva - 'Sou e serei sempre, antes de mais nada, o poeta do amor. Não sou um poeta político, mesmo que me tenha tornado um homem político'.
A boemia fez parte da lenda pessoal do poeta, incluindo uma predileção inapelável pelos prazeres da cama, mesa e copo. Algo que o aproxima, numa transposição para o universo literário brasileiro, do poetinha Vinicius de Moraes, outro amante do álcool, da alcova e dos versos de amor. Mas seria leviano não ressaltar sua militância. Ela o levou a combater diferentes graus de injustiças mundo afora e o aproximou de outros artistas de ideologia semelhante, sendo o principal deles o baiano e compadre Jorge Amado.
Marxistas convictos - embora o poeta não tenha vivido o suficiente para presenciar o desmoronamento da Cortina de Ferro, em 1989 -, os dois foram ligados aos partidos comunistas de seus países e passaram longos períodos exilados. Neruda foi senador da República nos anos 40, e chegou a se candidatar à Presidência, em 1970, sempre pelo Partido Comunista Chileno.
Ao contrário de outros grandes autores latino-americanos, como o colombiano Gabriel García Márquez, o mexicano Carlos Fuentes e o cubano Alejo Carpentier, Neruda explicitou o amor por seu continente em versos, não em prosa. Nesse ponto, junta-se a gente como o cubano Nicolás Guillén e o brasileiro Ferreira Gullar, também cantadores da aldeia que vai do Golfo do México à Terra do Fogo.
O fruto maior do engajamento político do autor é Canto geral, obra monumental, espécie de epopéia da dominação, miséria e grandeza do continente. Nele, o escritor procurou abarcar todos os dilemas e conflitos inerentes à América Latina, desde antes da chegada dos europeus até o caos vivido pelos países no século XX. Foi principalmente por ele que o poeta arrebatou o Prêmio Nobel de Literatura. Canto geral - e outros livros do autor, incluindo a autobiografia Confesso que vivi - ganhou recentemente uma nova edição pela Bertrand Brasil. Vinte poemas de amor e uma canção desesperada foi reeditado pela José Olympio.
Idealismo precoce - Nascido em Parral, no dia 12 de julho de 1904, Ricardo Eliezer Neftalí Reyes Basoalto passou a adolescência na pequena Temuco, no extremo sul da América, onde conviveu com os índios mapuches. Essa experiência foi fundamental para que ele travasse contato franco e espontâneo com o povo originalmente americano, desenvolvido intelectualmente em Canto geral. O pseudônimo Pablo Neruda nasceu em homenagem a um poeta checo, Jean Neruda, mas foi também a maneira encontrada por ele para ludibriar o pai opressor, que não admitia um filho dado a escrever versos, chegando ao extremo de queimar seus originais.
A atividade diplomática, que exerceu esporadicamente por mais de 30 anos, permitiu ao poeta conhecer amplamente o mundo e mensurar a real magnitude do continente em que nasceu. E também presenciar um episódio que modificou radicalmente sua personalidade. Neruda estava em Barcelona no ano de 1936, quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola e - principalmente - quando as tropas do Generalíssimo Franco assassinaram seu amigo Federico García Lorca. O sentimento de perda e de injustiça inoculou nele o idealismo e a intolerância aos regimes autoritários.
Sua morte, em decorrência de um infarto, se confunde com o início de um período lúgubre para a história do Chile - o golpe de Estado que provocou, no dia 11 de setembro de 1973, o assassinato de Salvador Allende e a ascensão do general Augusto Pinochet. Neruda definitivamente não suportou saber que amigos e companheiros de partido estavam sendo executados, e abandonou o mundo no dia 23 de setembro de 1973, aos 69 anos. Morreu de desgosto, mas foi poupado de assistir, em seu próprio país, à consolidação de uma das ditaduras mais sanguinárias da história da América Latina.