Napoleão Bonaparte
A revista Superinteressante deste mês traz na capa um tema que quase todo o mundo só conhece de filmes de Hollywood: os psicopatas. Vulgarmente associados a assassinos em série, gênios canibais e donos de motéis com complexo de Édipo, o que pouca gente sabe é que as estatísticas indicam que 1 a 3% da população mundial apresenta traços desse distúrbio, o que, no caso brasileiro, representaria de 1,8 a 5,4 milhões de pessoas. Embora eu desconfie desse tipo de estatística -- já repararam como tudo quanto é doença atinge determinada porcentagem da população, de modo que ou somos todos doentes ou tem gente por aí com combinações de sífilis, psicopatia, caspa, verminose e câncer de panturrilha? --, ela dá o que pensar. Primeiro, elimina a idéia de que o psicopata é um indivíduo raro, que quando aparece logo chama a atenção das autoridades e da imprensa por causa das abominações que deixa pelo caminho. Não, longe disso. O que caracteriza esse tipo de pessoa não é a contagem de cadáveres, mas sim uma deficiência grave e muito instigante: o que define o psicopata é sua cegueira emocional, ou seja, a incapacidade de se pôr no lugar do outro (empatia). São pessoas que mentem, roubam, enganam, manipulam e, em casos mais raros, até matam sem aquele mal-estar característico que costuma nos acometer sempre que agimos contra os ditames da consciência. Imagine-se, caro leitor ou leitora, sem esse alerta emocional; pense como seria se, ao pegar aquele item cobiçado sem pagar numa loja, trair seu cônjuge, surrar quem lhe insultou, não lhe doesse a consciência, não houvesse qualquer aperto no coração, e tudo que lhe dissesse que o que fez foi "errado" fosse a compreensão meramente intelectual de que violou uma expectativa social, mas que pode ser, segundo as circunstância, facilmente burlada. Se você conseguir isso, terá começado a entender o que é o mundo de um psicopata.
Começado a entender porque, por mais criativos que sejamos, desde que nascemos somos criados dentro de estruturas morais, nas quais aprendemos que há o certo e o errado, e assimilamos essa distinção à orientação de nosso comportamento. Mas, para um psicopata, não existe isso, pelo menos não da mesma forma. Ele nunca experimentou o remorso quando criança, nunca associou uma sensação ruim ao fato de ser um mau menino. Mais do que isso, como é incapaz de ter empatia, ele também nunca sentiu pena de um animalzinho em perigo, nunca viu nada de especial em alguém que precisasse de ajuda, nunca compreendeu realmente o que significam palavras como amor e ternura. Seu mundo interior, no que tange a esses sentimentos que tanto peso adquirem na vida de uma pessoa normal, é seco. E uma vez que ele não tem esses sentimentos, o que lhe sobra? O que ele vê quando encontra um outro ser humano? Ora, ele o vê de forma instrumental, em termos de custo e benefício -- daí a facilidade com que prejudica os outros para atender aos seus próprios objetivos. Nas palavras de um garoto psicopata ao psicólogo Michael G. Conner, "As pessoas sabem quando fazem algo errado porque sentem que é errado. Eu tenho de lembrar ou ser lembrado de que roubar de alguém é errado. Eu não me sinto mal quando tomo alguma coisa."
Isso não significa que um psicopata necessariamente vá torturar alguém com requintes de crueldade (muito embora, se o fizesse, seria com a mesma naturalidade com que iria cortar a grama ou preparar um café). Mas a educação moral de alguém assim certamente é muito mais difícil e, arrisco-me a dizer, precária. Isso não significa que ela seja inútil: como o próprio artigo da Superinteressante observa, é justamente a educação e o meio ambiente que podem evitar que uma criança com traços de psicopatia se torne uma matadora e se enverede, digamos, para o "mero" estelionato ou o faço-qualquer-coisa-para-subir-no-emprego. Possivelmente, com uma terapia bem feita e o cuidado por parte da família, poder-se-á criar uma pessoa que não esteja sempre envolvida em problemas.
Convém lembrar que o grande perigo dos psicopatas é que, vendo os outros em termos instrumentais e necessariamente sendo cegos às recompensas do altruísmo, eles costumam ser uma pessoas com uma inteligência acima da média. Charmosos, capazes de contar mentiras com grande naturalidade, imunes ao nervosismo que tantas vezes trai os trapaceiros e mesmo ao medo mais elementar em situações de risco, sabem manipular os outros como ninguém. (De fato, se pensarmos bem, conhecer as reações emocionais dos outros sem compartilhar delas nem ter nada parecido com um código de ética facilita muito a influência sobre eles.) No trabalho, são aqueles que passam por cima de todos, criam intrigas e tramam, não raro, a queda de seus próprios superiores para lhes tomar o lugar; na vida amorosa, são promíscuos e infiéis contumazes, vampiros capaz de afetar o mais extremo dos amores e agir de forma oposta em seguida (daí suas relações durarem pouco). São atraídos por profissões que lhes dão alguma forma de poder -- policiais, executivos --, nas quais podem atuar sem grandes entraves ou, conforme o caso, sua ambição e pouca consideração pelos outros podem ser até bem-vindas.
Infelizmente, não se conhece nenhum tratamento ou cura para o problema. Psicopatas são incapazes de corrigir seu modo de ser com punições, motivo pelo qual é comum que, quando enveredam pelo crime e chegam a ser presos, acabem reincidindo. A terapia convencional também é inútil, podendo até estimulá-los a esconderem melhor seu comportamento e, por extensão, a aperfeiçoarem suas habilidades manipuladoras.
O assunto é rico e merece ser mais conhecido pelo público em geral. Deixo aqui alguns links e indicações bibliográficas que podem ajudar os interessados:
Wikipédia
Em português: http://pt.wikipedia.org/wiki/Psicopatia (ainda muito pobre, mas deve ser expandido no futuro).
Em inglês: http://en.wikipedia.org/wiki/Psychopath (muito mais completo, com bibliografia em inglês)
Robert Hare
Site do maior especialista sobre o assunto, criador de um teste de aferição de traços de personalidade psicopática: http://www.hare.org. Autor de vários livros, o mais popular é Without Conscience: The Disturbing World of the Psychopaths Among Us, disponível por menos de 12 dólares na Amazon.com.
Infelizmente não achei nenhuma publicação em português, exceto por um livro já esgotado. Se alguém souber de um, envie os dados que eu publicarei aqui.
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