Especial Os santos do capitalismo A doação do investidor Warren Buffett à fundação de Bill Gates é o maior exemplo de como o capitalismo americano consegue não só gerar riquezas astronômicas como também devolvê-las de forma solidária e produtiva à sociedade Marcio Aith e Giuliano Guandalini | |
É com certa dose de cinismo que os americanos reagem sempre que um bilionário doa sua fortuna à filantropia em vez de entregá-la aos descendentes. Nos Estados Unidos, como o imposto sobre a transmissão de grandes heranças pode atingir 70%, faz mais sentido criar fundações com objetivos sociais e colocar os filhos para comandá-las do que transferir o patrimônio diretamente a eles. Isso sem contar a possibilidade de abater do imposto de renda boa parte do dinheiro gasto com caridade. Em muitos casos, doações vultosas também se prestam a purgar pecados empresariais sobre os quais grandes fortunas se formaram, preservando um bom nome para as famílias que delas se beneficiaram em vida. Essa foi uma (não a única, vale lembrar) das motivações que fizeram os lendários empresários John D. Rockefeller, criador da Standard Oil, e Andrew Carnegie, o pioneiro da siderurgia americana, criar fundações filantrópicas, hoje centenárias. Esses fatores ajudam a entender por que os EUA tornaram-se pioneiros da moderna filantropia, com doações anuais que chegam a 260 bilhões de dólares. Mas são incapazes de explicar a dimensão histórica do gesto anunciado na semana passada pelo investidor Warren Buffett, o segundo homem mais rico do mundo. Aos 75 anos, Buffett decidiu doar em vida 85% (o equivalente a 37,4 bilhões de dólares) de sua fortuna, construída ao longo de quatro décadas à frente do fundo de investimentos Berkshire Hathaway. A maior parte desse dinheiro, 30,7 bilhões de dólares, será transferida de forma escalonada para a fundação administrada por Bill Gates, o homem mais rico do mundo, e sua mulher – a Fundação Bill & Melinda Gates, que financia escolas públicas e pesquisas para a cura de doenças. O restante do dinheiro vai para a própria fundação de Buffett e para três outras geridas por seus filhos. É a maior doação da história. Mesmo em valores atualizados, ela equivale a todas as doações de Rockefeller e de Carnegie somadas. Antes do anúncio de Buffett, o recorde de filantropia estava com o próprio Gates, que destinara 28 bilhões de sua fortuna de 50 bilhões de dólares à fundação que leva seu nome. Somadas, as doações de Buffett e Gates compõem a mais formidável instituição jamais montada com o objetivo de ajudar pessoas e países necessitados – uma multinacional do bem do tamanho de uma montadora como a japonesa Honda ou uma fábrica de computadores como a Dell, a maior do mundo. As ações filantrópicas de Gates e de Buffett jogam mais uma pá de cal sobre a balela marxista segundo a qual o objetivo do capitalismo é a concentração de renda e a exclusão do proletariado. Ao construírem sua fortuna, os dois ajudaram a elevar a eficiência da economia americana, enriqueceram acionistas e criaram empregos – para não falar da democratização da informação promovida pelos computadores pessoais difundidos por Gates. Depois, ainda em vida, decidiram devolver à sociedade grande parte do espetacular excedente de riqueza que acumularam em períodos curtos – Buffett tornou-se bilionário aos 55 anos; Gates fez seu primeiro bilhão aos 31 anos. O gesto filantrópico de ambos não só se insere na lógica do capitalismo moderno, como também coloca o regime de mercado num patamar moral superior. O filósofo alemão Karl Marx, arauto do comunismo, previa o fracasso do capitalismo porque o sistema dependia da exploração crescente e infinita do proletariado para gerar lucros e produtividade. Segundo ele, como existe um limite para a exploração do trabalho humano, os lucros parariam de crescer, assim como a produtividade. O socialismo triunfaria. Tudo errado. O capitalismo não precisa de pobres como imaginava Marx, uma mente de terceira categoria que conseguiu enorme legião de seguidores no século passado por sua pregação de natureza religiosa. Exige, isso sim, consumidores com dinheiro, boa formação educacional e vontade de ascender socialmente. O próprio sistema cria um círculo virtuoso de riqueza, como mostram os indicadores sociais dos países que liberalizaram sua economia (veja quadro). Há, é claro, excluídos – e aqui entra a função dos filantropos bilionários (ou "bilhãotropos", como os batizou a revista inglesa The Economist). Com muito dinheiro, fruto de uma geração de excedentes financeiros sem paralelo na história, e não apenas trocados para a caridade eventual, eles são capazes de fazer diferença e fornecer um modelo para que ações filantrópicas se multipliquem mundo afora. Esses filantropos bilionários não querem apenas aliviar o sofrimento dos excluídos, mas promover sua ascensão e trazê-los, como consumidores e acionistas, ao sistema de mercado. Com o gesto espetacular de Buffett, a fundação de Gates terá 60 bilhões de dólares para projetos sociais. É de longe a maior entidade filantrópica que já existiu. Seu poder de fogo, o mesmo de companhias de grande porte, supera até orçamentos de entidades multilaterais ligadas à ONU e de programas sociais do próprio governo americano. Para se ter uma idéia, enquanto o programa antiaids das Nações Unidas liberou 172 milhões de dólares para portadores do HIV e filhos de vítimas da doença no ano passado, a fundação de Gates investiu 1 bilhão de dólares apenas para financiar pesquisadores que buscam a cura de doenças como a aids, a tuberculose e a malária. Além disso, dado o fracasso dos governos e das entidades multilaterais no combate à pobreza e às endemias, os filantropos bilionários dispõem-se a transportar eficiência empresarial para a causa. Há muito que mudar na própria filantropia. Em 1999, em artigo publicado na Harvard Business Review, o professor Michael Porter apontou problemas sérios de administração dentro das maiores entidades americanas destinadas a causas sociais e culturais. De acordo com ele, gastos não eram fiscalizados e ninguém verificava se os investimentos sociais davam retorno. Recentemente, a própria fundação de Gates admitiu que piorou a qualidade de ensino em várias das pouco mais de 1.000 escolas públicas americanas nas quais investiu. A piora se deu por um motivo prosaico. Sob a supervisão de especialistas contratados pela Fundação Bill & Melinda, as escolas maiores foram divididas em dois ou até três novos estabelecimentos. Além disso, o número de alunos em cada classe foi reduzido. Imaginava-se que, assim, os alunos receberiam mais atenção. No entanto, como não havia professores de qualidade para suprir as vagas que se abriram por causa dessas mudanças, o ensino piorou. "Não me abalo com isso. Vamos aprender com os erros. Temos paciência, dinheiro e especialistas excelentes para nos ajudar", disse Gates. Outros jovens bilionários da filantropia também compartilham dessa visão, além do tempo necessário para perseguir seus objetivos. Larry Page e Sergey Brin (Google), Pierre Omidyar (fundador do site de leilões eBay), David Duffield (PeopleSoft) e David Geffen (DreamWorks) são alguns dos bilionários que trouxeram novos princípios para a filantropia. Suas ações são guiadas por critérios que vão da auto-suficiência dos projetos sociais ao foco dos investimentos. Bill Gates é o maior inspirador dessa turma do bem. Homem mais rico do mundo, é co-fundador da maior fabricante de programas para computador, a Microsoft, criada em 1975. Foi o idealizador do sistema operacional mais popular que existe, o Windows, lançado no início dos anos 80. Estudou matemática da computação em Harvard, mas abandonou os estudos para se dedicar, juntamente com o colega Paul Allen, à criação de sua empresa, que nasceu como uma pequena firma de garagem. Durante a bolha de valorização das ações da internet, a fortuna de Gates chegou a ser avaliada em 100 bilhões de dólares (foi o primeiro americano a atingir a cifra). Sempre manifestou o interesse de trabalhar com filantropia e, em 2000, fundou com sua mulher, Melinda, a fundação que leva o nome de ambos. Recentemente, Gates anunciou que deixará o comando da Microsoft em 2008 e passará a dedicar seu tempo quase que exclusivamente à filantropia. Com a megadoação de Buffett, os recursos serão dobrados, e a fundação deverá investir 3 bilhões de dólares ao ano. Nati Harnik/AP
| TEMPLOS DO CAPITALISMO Reunião anual dos acionistas da empresa de Buffett, em Omaha, e loja ocidental no Vietnã: a fase da democratização do capitalismo | AFP
| Buffett, que vai orientar as aplicações financeiras da fundação de Gates, também é ícone de eficiência. Mas de uma geração anterior. Filho de um corretor de investimentos, ele começou a trabalhar na empresa do pai aos 11 anos, em Omaha (Nebraska), registrando numa lousa o preço das ações. Aos 13, já comprava e vendia ações. Estudou administração na Universidade de Nebraska e depois em Colúmbia, em Nova York, onde teve aulas com Benjamin Graham, pai da moderna teoria de investimento em ações. Trabalhou por algum tempo em Nova York, mas logo voltou para sua Omaha natal, onde se estabeleceu e até hoje mantém seu quartel-general – com instalações relativamente modestas. Ele abriu sua primeira empresa de investimentos em 1956, aos 25 anos de idade, com um capital de 100 dólares. O primeiro milhão veio aos 32 anos, e o primeiro bilhão, aos 55. Em 1993, já era o homem mais rico dos Estados Unidos, com uma fortuna estimada em 8,3 bilhões de dólares, mas nunca se enquadrou no perfil do especulador típico. Seu foco sempre foi o investimento de longo prazo e em empresas normalmente associadas ao setor produtivo. Comprou milhares de ações de gigantes do capitalismo americano, como a Coca-Cola e a Gillette, quando essas firmas estavam em baixa e seus papéis, desvalorizados. Sua estratégia é investigar as empresas a fundo, para saber se são bem administradas e se há potencial de crescimento. Sobre o motivo de investir na Gillette, afirmou: "Você vai dormir tranqüilamente só de pensar que a barba de 2 bilhões e meio de homens está crescendo enquanto você dorme. Ninguém da Gillette tem insônia". O desempenho de seus negócios espelha seu enorme talento para multiplicar dinheiro – dele e dos outros. Em 1965, quando assumiu o controle da Berkshire Hathaway, então uma firma de origem no setor têxtil mas que também vendia seguros, as ações da companhia eram negociadas a menos de 10 dólares cada uma. Hoje, uma única ação custa quase 100.000 dólares, uma assombrosa valorização de 1.000.000% em quarenta anos. Quem tivesse aplicado 100 dólares na firma de Buffett, em 1965, teria hoje 1 milhão de dólares. Os mesmos 100 dólares aplicados na média do Dow Jones equivaleriam a 1 500 dólares. Entre as companhias em que Buffett investe estão algumas das marcas mais poderosas dos Estados Unidos, como Nike, Gap, General Electric, Wal-Mart e Washington Post. O congresso anual dos acionistas da Berkshire, comandado pelo bilionário, leva uma multidão a Omaha. São pessoas que, muitas vezes, compram ações da empresa só para ter o direito de ver de perto o ídolo Buffett, na esperança de absorver um pouco da genialidade do mestre. É o Woodstock dos capitalistas. Sobre o destino de sua fortuna, Buffett costumava dizer que deixaria para os filhos apenas o suficiente para que eles fizessem o que quisessem – e não demais, senão eles não fariam coisa alguma. O resto doaria para a caridade. Foi o que fez. Outros países podem adotar o exemplo dos filantropos americanos? Não é fácil, dado que a filantropia está entranhada na cultura dos Estados Unidos e, por lá, existe uma moldura fiscal que a incentiva fortemente. Além disso, a pujança econômica do país funciona como mola propulsora. Os Estados Unidos contam com o maior número de milionários no planeta. Existem 2,6 milhões de americanos com mais de 1 milhão de dólares em investimentos, segundo uma pesquisa das consultorias Merrill Lynch e Capgemini. Em dez anos houve o ingresso de 100.000 novos milionários na economia americana. De acordo com outro estudo, feito pela Universidade Johns Hopkins entre 1995 e 2002, as doações filantrópicas nos Estados Unidos chegaram a 2% do produto interno bruto (PIB). Para efeito de comparação, as doações na França não passaram de 0,3% e as da Itália ficaram em 0,1% do PIB. No Brasil, quase não há facilidades fiscais para estimular as doações e ações de filantropia. Na verdade, sobram dificuldades. Segundo um estudo do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), 20% da população economicamente ativa faz algum tipo de doação cujo valor médio é equivalente a um salário mínimo por ano. "É um milagre se considerarmos que não há quase nenhum incentivo para isso", diz Marcos Kisil, presidente do instituto. Como pessoa física, o brasileiro consegue abater no máximo 6% do que deve ao imposto de renda, se fizer doações para os conselhos municipais, estaduais e federais dos direitos da criança e do adolescente, que são os controladores dos fundos beneficiados pelas doações. A legislação para empresas e fundações é um pouco mais flexível – dependendo da área de atuação ou do tipo da doação pode até haver a isenção tributária total. Sérgio Castro/AE
| NO BERÇÁRIO Fundação Bradesco: burocracia e falta de cultura emperram a filantropia no Brasil | Mas o problema brasileiro não é só fiscal. É mental, burrice mesmo. O empresário José Mindlin, dono de uma biblioteca com mais de 50.000 livros, levou oito anos para conseguir doar parte de sua biblioteca. Inicialmente, Mindlin descobriu que, para isso, precisaria atualizar o valor das obras pelo valor de mercado. Ele teria de pagar, assim, um imposto de 15% sobre a diferença entre os valores inicial e final. A quantia era altíssima. Mindlin, então, decidiu criar sua própria fundação, que serviria como receptora dos livros. Descobriu, no entanto, que, ao colocar as obras sob a propriedade de sua própria entidade, teria de pagar um imposto de transmissão de bens de 4%. Mindlin só conseguiu fazer a doação quando a lei foi alterada para deixar os livros isentos do pagamento de impostos em doações. As obras serão encaminhadas para a Universidade de São Paulo dentro de três anos. Diante das dificuldades enfrentadas por Mindlin no Brasil, a declaração de Buffett, na cerimônia em que anunciou a doação bilionária, ganha um sentido para além da piada patriótica: "Nasci nos Estados Unidos, em 1930. As chances de ter nascido neste país eram de uma em quarenta. Então, foi como ter ganhado na loteria". AS REGRAS DA NOVA FILANTROPIA Bill Gates lidera uma geração de jovens milionários que buscam a máxima eficiência e elevados retornos para investimentos sociais. Suas ações filantrópicas são guiadas pelos seguintes critérios empresariais: AUTO-SUFICIÊNCIA Projetos sociais não devem ser ralos de dinheiro. Sempre que possível, devem criar suas próprias fontes de renda e se tornar auto-suficientes financeiramente. Exemplo: programas de microcrédito que rendem juros EFICIÊNCIA Há metas para a obtenção de resultados efetivos e controles para impedir um inchaço da burocracia filantrópica. Fundações não devem gastar mais que 20% do que emprestam FOCO Não se doa dinheiro aleatoriamente. Os projetos são escolhidos com cuidado, de acordo com o retorno econômico ou social que podem gerar. As fundações trabalham com objetivos claros, como a descoberta da vacina contra a aids ou a malária TRANSPARÊNCIA As ações filantrópicas e sua administração financeira passam por auditoria e apresentam relatórios anuais de suas atividades e resultados | | ENTRAVES À FILANTROPIA NO BRASIL LEGISLAÇÃO Nos EUA, onde doações individuais à filantropia geram créditos tributários, 89% das famílias dão dinheiro a programas sociais ou religiosos. Do total de recursos doados por lá, 75% vêm de cidadãos comuns. Pessoas físicas praticamente não gozam desse benefício fiscal no Brasil – apenas empresas e fundações BUROCRACIA Restrições legais quase intransponíveis dificultam a doação individual de dinheiro e equipamentos para universidades públicas. O brasileiro que quiser doar livros para uma universidade, por exemplo, é obrigado a pagar impostos CORRUPÇÃO E CAIXA DOIS Escândalos sucessivos com empresas de filantropia jogaram uma nuvem de suspeição sobre entidades do setor.
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