Há crimes para os quais toda justiça parece insuficiente. Ainda assim, é preciso encontrar uma forma de aplicá-la, senão por alguma compensação cósmica, ao menos como uma gesto em honra dos que foram vitimados e também como sinal para os pósteros de que a geração que os viu serem cometidos ainda tem senso de humanidade. Embora pessoalmente seja contra a pena capital, nem por isso Nuremberg deixa de ser um marco respeitável na história da civilização -- quando se fez patente que existem crimes diante dos quais nenhum poder ou razão de Estado podem ser aceitos como justificativa. ------------- O GLOBO Rio, 20 de novembro de 2005 | |
Renato Galeno
Julius Streicher, editor do jornal anti-semita “Der Stürmer” e amigo pessoal de Hitler, comandava uma multidão agitada. Gritando, dizia a todos que o propósito da reunião, a destruição da sinagoga da cidade alemã de Nuremberg, era justo:
— Queremos assegurar que o sangue e a alma alemães permaneçam puros porque, se os judeus tomarem o poder na Alemanha, a nação estará condenada para sempre — bradou ele, em agosto de 1938. — A vocês, trabalhadores de Nuremberg, que um dia foram escravos dos judeus e que hoje ajudam na construção do novo Reich de Hitler, eu lhes dou agora uma ordem histórica: comecem!
Sete anos e mais de 50 milhões de mortes depois — cerca de seis milhões judeus mortos em campos de extermínio —, Streicher, ao lado de outras 20 autoridades do Terceiro Reich, estava sentado no banco dos réus no Palácio da Justiça da mesma cidade. Há exatamente 60 anos, em 20 de novembro de 1945, começava o Tribunal Militar Internacional, que entrou para a História como Tribunal de Nuremberg, cidade onde era realizado os encontros anuais do Partido Nazista. Nos 11 meses seguintes, os horrores nazistas foram apresentados a um planeta aturdido.
O mundo viu as imagens de campos de extermínio como Auschwitz e detalhes macabros do nazismo. A mulher do comandante do campo de Buechenwald, por exemplo, apreciava ter abajures com pele humana tatuada. O comandante Koch usava a cabeça decepada de um polonês como peso de papel. Rudolf Hoess, comandante de Auschwitz, disse não se sentir um sádico por nunca “ter pessoalmente batido num preso”, apesar de ter supervisionado um número, calculado por ele mesmo, de 2,5 milhões de assassinatos nas câmeras de gás.
Mais do que isso, porém, a corte representou um marco no direito internacional, por ter codificado o conceito de crime contra a Humanidade.
Hermann Goering criticou “tribunal dos vencedores”
Na verdade, o preâmbulo da Convenção de Haia de 1907 para leis de conflitos armados mencionou pela primeira vez o termo “leis da Humanidade”, mas sem defini-las. Uma comissão de 1919, criada pelo Tratado de Versalhes, considerou que autoridades turcas teriam cometido “crimes contra as leis da Humanidade” contra armênios, mas também não definia o crime.
O termo foi incluído no Tribunal de Nuremberg devido a esforços de pessoas como o jurista inglês Hersch Lauterpacht. Segundo a professora de direito internacional Monica Paraguassú, a corte foi um marco que não se limita ao direito.
— Sua importância se estende às relações internacionais e, mais ainda, à Humanidade enquanto uma representação da tomada de consciência pública sobre a perseguição e o extermínio, sistematizados, de um grupo religioso, uma nação, uma etnia. Nesse sentido, foi cristalizada, como moral e ética internacionais, a punição da perseguição para o extermínio de uma particularidade da Humanidade. Isto é, de um grupo portador de tradição, cultura, costumes como sendo, na verdade, a eliminação da própria Humanidade — disse Paraguassú, doutora em direito comparado pela Sorbonne.
O tribunal foi o modo encontrado pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial — EUA, URSS e Reino Unido, com a participação também da França — para punir os líderes nazistas. Hermann Goering, o mais alto funcionário nazista presente ao tribunal (Adolf Hitler, Heinrich Himmler e Joseph Goebbels tinham se matado antes de ser capturados e Martin Bormann — que também já estava morto — estava desaparecido), ironizou o tribunal dizendo que “os vencedores serão sempre o juiz e os derrotados, os réus.” A corte enfrentou muitas resistências e críticas à sua legitimidade.
Os réus eram acusados de conspiração, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a Humanidade. No caso dos crimes contra a paz, eram acusados por agressão, como no caso da invasão da Polônia. Mas não foi mencionado que a URSS tinha um tratado com a Alemanha para a divisão do país. Os bombardeios alemães contra Londres e Varsóvia também não foram citados, pois os bombardeios aliados de Dresden e Tóquio seriam lembrados.
Quanto aos crimes contra a Humanidade, os acusados estavam sendo responsabilizados por um crime que ainda não fora tipificado quando as ações foram cometidas. Os juízes, porém, ressaltaram que os crimes praticados pelos nazistas não tinham sido ainda registrados.
Exemplo para TPI e cortes de Ruanda e ex-Iugoslávia
No entanto, as questões de legitimidade levantadas pela defesa não alteraram grandemente o futuro dos acusados. Até porque a alternativa era pior, e por pouco não ocorreu: o simples fuzilamento dos réus, em números que variavam entre 50 (proposta do britânico Churchill) a 50 mil, como sugeriu Stalin na Conferência de Teerã (1943). No fim, com a morte do presidente Roosevelt (que defendia os fuzilamentos) em abril de 1945 e a discordância de seu sucessor, Harry Truman, além da mudança de idéia de Stalin (talvez para fazer propaganda), foi acertada a criação de um tribunal.
A importância de Nuremberg para os direitos humanos se mantém até hoje. Ele foi o marco que tornou possíveis as atuais cortes internacionais.
— Os tribunais posteriores (de ex-Iugoslávia, Ruanda e Penal Internacional) têm em Nuremberg a referência de uma linguagem comum de universalização dos direitos do homem e da sua proteção no campo supranacional que vêm sendo desenvolvidas. Nos campos moral e ético atua como referência da consciência mundial no campo político, no sentido da capacidade de articulação internacional em torno de valores comuns — disse Paraguassú.
Onze réus foram condenados à morte por enforcamento (entre eles Goering, Alfred Jodl, Joachin von Ribbentrop e Hans Frank), três, à prisão perpétua (como o líder do Partido Nazista Rudolf Hess), dois a 20 anos de prisão, um a 15 e outro a dez anos. Três réus foram inocentados.
Julius Streicher foi enforcado, ao lado de outros nove réus, em 16 de outubro de 1946. Frank, governador-geral da Polônia ocupada, sorria no momento de ser enforcado. Duas horas antes de ser enforcado, Goering matou-se por envenenamento.
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