quarta-feira, novembro 02, 2005

Apertando as mãos do demônio

Roméo Dallaire deve estar em seus sessenta anos, pela aparência. É um homem vigoroso, de belos traços, que, com seu bigode respeitável, fica muito bem no seu papel de general aposentado. Porém, quem o contemple hoje por mais alguns minutos logo nota que há um certa tristeza no seu semblante — um traço que ele carrega há quase doze anos. O motivo? Romeo Dallaire, militar canadense, serviu como comandante das tropas da ONU em Ruanda, no início de 1994. Para quem não ligou o país e a data ao evento, isso significa que ele testemunhou o último grande genocídio do século XX.



O saldo aproximado foi de 800.000 mortos, boa parte dos quais ainda vivia quando Dallaire chegou ao país, em janeiro. Em menos de quatro meses, porém, o que era mais um conflito étnico em um continente marcado por fronteiras arbitrárias e governos instáveis se transformou numa limpeza étnica de grandes proporções. A etnia hutu, fazendo uso de mercenários e forças paramilitares, além da colaboração de parte da própria população civil, resolveu exterminar a outra grande população do país, os tutsis. E o fez com uma diabólica eficiência: com armas de fogo ou machetes, homens, mulheres, crianças, e até religiosos entraram num conflito fratricida tão violento o próprio Dallaire, um homem educado no Ocidente, só pôde definir com uma metáfora: “O demônio entrou no Paraíso, e fez de tudo para destruí-lo”. O testemunho desse esforço luciferino está nos diversos monumentos erguidos sobre grandes covas coletivas espalhadas pelo país, e também em um grande depósito de crânios, de todos os tipos e tamanhos, trazendo ainda, em fraturas e orifícios, a lembrança do sofrimento de seus donos.

O que Dallaire podia fazer? Segundo ele próprio, a força que ele comandava não tinha ordens, nem recursos. Num país em que metade da população fugia do potencial assassino da outra metade, a ONU contava com 450 homens. Para se ter uma idéia, houve operações da Polícia Militar do Rio de Janeiro com um efetivo maior que esse. E, no entanto, era o que as Nações Unidas, àquela época mais preocupadas com os brancos “civilizados” da Iugoslávia, estavam dispostas a empregar. Dallaire sabia que sua presença seria inútil. Sua força bastava para assegurar o único prédio realmente seguro em Ruanda, o da própria ONU, e pouco mais do que isso. E, no entanto, ele tentou fazer alguma coisa. Para começar, chamou um repórter da BBC, deu-lhe todas as garantias possíveis e pediu-lhe uma matéria por dia sobre a guerra civil. Diante de superiores insensíveis, ele tentou usar a mídia como instrumento de pressão. Talvez se imagens diárias de multidões maltrapilhas e mal acomodadas, em condições precarísimas de alimentação e higiene, invadissem os jornais ocidentais, alguém resolvesse fazer a mesma coisa.

No seu relato a um documentarista canadense, Peter Raymond, a palavra mais usada por Dallaire é “mau-cheiro”: nos locais de execução coletiva, nas ruas, até mesmo no estádio de futebol transformado em campos de refugiados, onde Dallaire podia oferecer proteção armada, mas não os alimentos e os cuidados médicos necessário. Era um campo de concentração, reconheceu o general, acompanhado pelas imagens da época, e não havia um cemitério disponível. Para fugir das balas e facões hutus, os refugiados tutsis conviviam com a fome, a doença e o fedor permanente dos cadáveres que se amontoavam nem mesmo ao seu redor, mas em seu meio.

Depois de poucos meses em serviço, Dallaire começou a sentir os efeitos da impotência prolongada em meio ao caos. Passava longas horas sozinho, emitia ordens incoerentes, tinha o olhar vidrado Obviamente dera tudo que podia, e ainda era muito pouco. O velho militar estava fazendo o quê, afinal? Dar àqueles que podia proteger a chance de optar entre a degola e a disenteria não era um gesto exatamente recompensador. Assim, enquanto o Conselho de Segurança fazia-se de desentendido e Ruanda era olvidada como a terra de ninguém que boa parte da África sempre fora aos olhos do mundo, o velho general entrava em colapso. Era demais.

Desde então, quando voltou ao Canadá, Ruanda nunca mais saiu de dentro dele. O senso de fracasso ainda o incomoda, a culpa decorrente o atormenta. “Eu fracassei com Ruanda”, disse, em uma palestra em uma universidade local. Quem quer que tenha perdido um ente querido naquele loucura sabe que é verdade. No entanto, a questão da culpa é outra história. Quando se é largado numa guerra civil em uma terra estranha, sem orientação adequada, recursos logísticos ou tropas decentes, não se pode ser culpado por uma derrota. Provavelmente, Roméo Dallaire sabe disso; mas entre o que a razão aceita e o que o coração confirma vai grande distância — no caso, uma distância medida em cadáveres e mau cheiro.

O relato dos meses que Dallaire passou nesse inferno sangrento está em seu livro Shake Hands with the Devil, e no documentário homônimo de Peter Raymond exibido recentemente no canal Cinemax Prime. Os interessados no massacre ruandense podem obter maiores informações em http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/ghosts. Dados gerais sobre o país estão disponíveis no site do Departamento de Estado dos EUA: http://www.state.gov.

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