Na ficção, o grande vilão tem lá sua dignidade. Apesar de atos abomináveis e um abismo no lugar do coração, ele costuma certa majestade, não raro um código de honra todo peculiar. Dependendo da habilidade do autor, pode-se até mesmo encontrar razões para admirá-lo e, quem sabe, preferi-lo ao herói, essa figura que é tantas vezes insípida. O vilão fascina, seja por transgredir, seja por ter uma trajetória com que nos identificamos -- ele se permite sentimentos e atitudes que todos têm, mas que não caem bem no protagonista --, ou, simplesmente, porque em várias vezes ele é o detentor do poder, que faz girar em torno de si toda a trama, com suas intrigas, seus crimes e suas ambições.
Na vida real, contudo, isso é muito mais raro. Os vilões concretos tendem a ser não figuras trágicas, de um heroísmo torto, que se lançam a empreendimentos colossais com uma entrega maior que qualquer ética. Não. Pelo contrário, quase sempre são figuras desprezíveis, medíocres, cuja imaturidade ou miséria interior não apenas se traduz em seus atos, como até os leva a cometê-los. Eles não têm imponência, ou a têm apenas por empréstimo -- de um cargo, um uniforme ou qualquer outra muleta sem a qual se mostram tão-somente como vermes, criaturas desagradáveis e sem maiores méritos estéticos e literários. Para usar uma expressão de Arendt, a face do Mal pode ser apenas a da mais absoluta banalidade. Não há muitos Darth Vaders, M. Bisons e Sarumans na vida cotidiana; porém abundam malandros, covardes e aproveitadores, meros duendes sem grandeza.
Esta resenha de O GLOBO, publicada no caderno Prosa e Verso de ontem, ilustra bem o quero dizer.
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Um pastiche grotesco do império nazistaAs entrevistas de Nuremberg, de Leon Goldensohn. Tradução de Ivo Korytowski. Ed. Companhia das Letras, 552 pgs. R$ 68
Carlos Haag
É banal falar, hoje, da banalidade do mal. O conceito de Hannah Arendt parece não dar conta da totalidade do fenômeno nazista, bem mais insidioso do que a redução dos criminosos a burocratas ou a mera demonização deles. Nem patetas, nem demônios (isso seria tão confortável, pois nos afastaria deles), foram humanos, demasiado humanos. Essa é sensação após a leitura de “As entrevistas de Nuremberg”, de Leon Goldensohn. Tão despretensioso quanto precioso, é o destaque da atual “nazimania” editorial provocada pelo filme “A queda”, que mostra um Hitler “humanizado”.
Goldensohn era um psiquiatra judeu de 34 anos que, em 1946, passou sete meses entrevistando 21 líderes nazistas no Julgamento de Nuremberg. Entre eles, Goering, Doenitz, Hans Frank, Julius Streicher, Ernst Kaltenbrunner Alfred Rosenberg e, entre outros, Hoess, o comandante de Auschwitz. A “nata” do Terceiro Reich. Goldensohn teve a simpatia de boa parte deles, que falaram (e mentiram) sobre o passado, o Führer e o Holocausto.
O analista os visitava diariamente e sua função era checar seu estado mental. Goldensohn aproveitou para tentar entender a psique dos assassinos e, para sua surpresa, descobriu homens normais, pais de família e, no geral, donos de Q.I.s elevados. O americano anotou o que ouvia, pois pensava em publicar um livro, mas morreu em 1961 sem o fazer. Seu irmão, Eli, entregou o material ao historiador Robert Gellately e, graças a ele, temos esse tesouro histórico que fala mais sobre os seres humanos sem escrúpulos do que sobre nazistas dementes.
Nas entrelinhas dos depoimentos, tentam renegar a condição de réus, renegar que um dia tiveram importância e juram ignorar tudo o que se passava. A distância é abissal, mas tudo parece um dejà vu dos mais recentes. Só que, naquele tempo, a culpa foi jogada sobre Hitler, Himmler, Goebbels e Bormann, convenientemente mortos. Nada da antiga arrogância e poucos se vangloriaram dos ideais nazistas. Não há remorsos, culpas ou o mínimo sentido de responsabilidade. Ao ser perguntado como podia matar inocentes e voltar para a família, tranqüilo, Hoess se defende: “Mas eu não matei ninguém. Eu fui apenas o comandante do programa de extermínio de Auschwitz.”
Goering, vaidoso, solta “pérolas”: “Acho um horror essa coisa de matar crianças e mulheres, uma notável falta de espírito esportivo.” Mesmo negando ódio aos judeus, o discurso de muitos é pontuado de anti-semitismo. “Eu era contra o extermínio de judeus e preferia que fossem realocados na Palestina ou em Madagascar. Agora, só porque mataram quatro milhões deles, os judeus viraram mártires. Por causa das mortes, o anti-semitismo, que ia tão bem em vários países, está comprometido por um bom tempo”, lamentou Streicher. O resto do bando se justifica dizendo que Hitler os mandava “cuidar dos próprios negócios”. Aparentemente, estavam muito ocupados para perceber o que se passava nos campos ou intervir. “Colocar algumas pessoas com idéias estrangeiras em campos de concentração significou poupar sangue alemão. Teria sido melhor uma guerra civil?”, pergunta Doenitz.
É também curioso ouvi-los afirmar que mal se conheceram e que viviam em constantes disputas de poder. Essa parece uma das chaves do mal nazista. Mais que vampiros sedentos por sangue, parecem homens sedentos por poder. Se isso implicava exterminar milhões, não importava. Há poucas juras de amor pela causa e muita reclamação comezinha da conduta dos colegas de fascismo. Fanáticos racistas, sim, mas, também e, acima de tudo, oportunistas.
Daí, o mal ser humano, demasiado humano. Os ex-líderes não são banais, mas próximos de muitos de nós na subserviência a tudo o que os aproximava da boa vida do poder. O império de Hitler se reduz a um pastiche grotesco, apesar do incalculável sofrimento que provocou. “Os nazistas vivam falando de um Reich de mil anos, mas não conseguiam planejar nem para cinco minutos”, resume Paul Schmidt, o intérprete do Führer. A banalidade do banal.
CARLOS HAAG é jornalista