Tentando conviver com um siso em fase de crescimento que resolveu se manifestar da maneira mais dolorosa possível (e que me fez decidir executá-lo muitíssimo em breve), revisitei um dos livros favoritos da minha adolescência: Ensaios, de Montaigne. Abri ao acaso, como quem consulta um oráculo, e eis que caio em "Da incoerência das nossas ações". Nele, o bom e velho divagador francês apresenta vários exemplos de como gestos grandiosos de coragem e desprendimento podem surgir em pessoas normalmente mesquinhas em reação a circunstâncias excepcionais -- e de como pode ser temerário avaliar essa gente unicamente por esses gestos isolados. Nesses casos, "o próprio vício nos impele a bem fazer", como no caso do soldado que se lança heroicamente contra uma companhia inimiga apenas por ter sido roubado por um deles. Ao retornar e ser promovido, nunca mais teve a mesma ousadia.
Isso me lembra um texto de Bourdieu que li no mestrado, chamado "A Ilusão Biográfica". O que me ficou dele é que tendemos a ver uma continuidade e uma lógica nas narrativas de vida que não está lá, necessariamente. Em outras palavras, pode-se dizer que alguém que tem hoje 40 anos é a mesma pessoa de quando tinha 20? É veraz essa nossa sensação intuitiva de que somos os mesmos seres ao longo do tempo? O senso comum rejeitaria isso como uma especulação tola, mas não deixa de ser uma possibilidade interessante. Afinal, somos notavelmente falhos em perceber objetivamente nosso próprio comportamento. O fato de nossa consciência ser contínua significa que é impossível que esse nosso senso de um "eu" estável seja, de alguma forma, ilusório? A visão de Bourdieu talvez não passe de uma advertência contra a teleologia biográfica, a ideia tentadora de analisar o passado de uma pessoa tendo em vista um evento específico como se toda a vida dela fosse determinada por este último, isto é, poderíamos ver o menino Einstein já procurando nele o físico brilhante que só depois se tornaria. Mas a ideia em si, de uma vida sem um fio narrativo, me parece interessante.
Gostaria de ter pensado nisso durante a discussão platônica de ontem. Há dias vinha pensando em Montaigne, mas sempre ia cuidar de outras coisas e o esquecia. Vejo agora que isso foi um erro, pois nada como um pensador clássico para aguçar a percepção e o raciocínio sobre os negócios humanos e as grandes questões.
Enfim, divago, para variar. De volta à política latino-americana do pós-independência e a este dente sádico. Oh, dor...
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