Vale a pena ler o artigo na íntegra. Abaixo reproduzo apenas o início.
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Tirado de http://www.espacoacademico.com.br/089/89pra.htm.
Falácias acadêmicas, 3: o mito do marco teórico
Paulo Roberto de Almeida
1. Tente entender...
Veja, caro leitor, se você consegue entender este filósofo francês, muito lido e muito citado em certos círculos acadêmicos:
“Assim, por um lado, a repetição é isso, sem o que não haveria verdade: a verdade do ente sob a forma inteligível da idealidade descobre no eîdos o que pode se repetir, sendo o mesmo, o claro, o estável, o identificável em sua igualdade a si. E apenas o eîdos pode dar lugar à repetição como anamnésia ou maêutica, dialética ou diática. Aqui a repetição se dá como repetição de vida. A tautologia é a vida, só saindo de si para voltar a entrar em si. Mantendo-se junto a si na mnéme, no lógos e na phoné. Mas, por outro lado, a repetição é o próprio movimento da não-verdade: a presença do ente perde-se nele, dispersa-se, multiplica-se por mimemas, ícones, fantasmas, simulacros etc.” (J. Derrida, A Farmácia de Platão. SP: Iluminuras, 2005, p. 122).
Entendeu, leitor? Provavelmente não, mas não se preocupe, eu também não entendi nada, mas não me preocupo mais com isto: há muito tempo desisti de tentar entender esses filósofos franceses, que converteram em hábito – praticamente uma profissão – os atos de escrever difícil e de falar complicado, apenas para épater la galerie e impressionar o distinto público, no que eles foram, aparentemente, bem sucedidos (alguns ficaram ricos e famosos com toda essa empulhação). Aliás, acredito que esse autor não estava querendo explicar absolutamente nada a ninguém: estava apenas gozando da cara de eventuais alunos e de leitores desprevenidos. No que me concerne, não me deixo impressionar por falcatruas intelectuais.
Agora, considere este outro filósofo francês, ainda mais lido e mais citado nos mesmos meios (provavelmente não pelas boas ou corretas razões), e que se converteu em verdadeiro paradigma das ditas ciências sociais, quando ele, na verdade, é apenas um comentarista filosófico da história (o que não o impediu de monopolizar várias áreas das ciências humanas, impregnando todo o discurso acadêmico durante mais de uma geração):
“Deveríamos fazer uma tentativa de estudar o poder não a partir dos termos primitivos da relação de poder, mas a partir da relação de poder em si, na medida que ela mesma determina os elementos sobre os quais se estabelece: em lugar de pensar em indivíduos ideais aos quais se pede que cedam algo de si mesmos ou de seus poderes para serem submetidos, deveríamos indagar como as relações de dominação podem por si mesmas construir os indivíduos. Da mesma forma, em vez de investigar a única forma, o ponto central ao qual todas as formas de poder derivam como conseqüência ou como desenvolvimento, deveríamos abordar sua multiplicidade, suas diferenças, suas especificidades, sua reversibilidade: estudá-las, portanto, como relações de força que se entrecruzam, se excluem mutuamente, convergem ou, ao contrário, se opõem e tendem a se anular. Em resumo, em lugar de considerar a lei uma manifestação do poder, nos seria talvez mais útil tentar descobrir as diferentes técnicas de coerção que coloca a lei em funcionamento.” (Michel Foucault, trecho do Résumé des Cours; Paris: Collège de France, 1989)
Bem mais compreensível, não é mesmo, caro leitor? Você acha que poderia “trabalhar” com ele, por exemplo, para sustentar a argumentação teórica de algum ensaio acadêmico, talvez “encomendado” ou sugerido pelo seu professor orientador?
5 comentários:
Fantástico. Espero, profundamente, que os alunos não sejam os únicos a ler esse artigo. Ou, então, que eles tenham a coragem de enfrentar as convicções de certos professores.
O parágrafo de Derrida não é difícil de entender para quem conhece algo de Platão. Mas para quem não conhece, claro, não dá para entender. Resumindo:
Platão entendia que quando eu vejo um cachorro, outro cachorro, outro cachorro, e de ver vários cachorros eu finalmente entendo o que "um cachorro" (genericamente) é, eu percebi algo de fundamental e mais importante do que qualquer cachorro em particular. A esse algo fundamental ele deu o nome de "eidos", idéia: a idéia de cachorro, a idéia de ser humano, a idéia de laranjeira, a idéia de planta, a idéia de quantidade etc. Como a idéia é sempre a mesma ("cachorro" continuaria sempre sendo "cachorro", mesmo que todos estivessem extintos; o quadrado da hipotenusa continuaria sempre sendo a soma dos quadrados dos catetos, mesmo que o universo deixasse de existir e não houvesse mais nenhum triângulo onde ver a regrinha acontecendo), como ela nunca muda, ela tem uma qualidade divina: a eternidade. Ora, se a idéia é divina, e se o não-eterno é necessariamente inferior ao eterno, secundário, bem lá no fundo irrelevante, já que uma hora acaba, então a idéia só pode ser o modelo, o molde de onde saem todos os seres particulares que a expressam (este cachorro, aquele cachorro...).
A partir daí, o que Derrida está fazendo? Ele está pegando isso de onde eu descubro a idéia (a repetição "este cachorro, aquele cachorro, outro cachorro...") e vendo como as duas coisas, a idéia de cachorro, e os diversos cachorros individuais, e observando que, se a idéia de cachorro, que é eterna, não está viva, e se por outro lado os diversos cachorros que se repetem (e em cada um deles a idéia de cachorro) são vivos, segue-se que "vida" e "repetição" estão ligados.
Porque isso é interessante? Porque se cada cachorro individual é no fundo uma "imitação" (mímese) da idéia de cachorro, isso significa que nenhum deles é, em absoluto, O Verdadeiro Cachorro. Explico: só a idéia, para Platão, é puramente verdadeira. Porque? Porque tudo que muda, se for verdadeiro neste instante, é porque agora a pouco não era (mudou do estado falso para o verdadeiro agora), e pior, dali a pouco, quando mudar de novo, deixará novamente de ser verdadeiro.
Conseqüentemente, se a vida se dá no movimento, na repetição do que não é idéia, e se isto que se move é necessariamente falso a maior parte do tempo, então não só "vida" e "repetição" estão ligados, como também "vida" e "não-verdade". Viver é falsificar, e repetir continuamente essa falsificação.
Não sei como Derrida prossegue o raciocínio, já que nunca li esse livro dele. Mas em linhas gerais é isso que aí que o parágrafo citado diz. Há mais detalhes, mas acho melhor não aprofundar, senão esse comentário ficaria muito grande.
Seja como for, o ponto é que não faz sentido dizer que fulano não está dizendo ou tentando ensinar nada se falta ao crítico os fundamento mínimos para compreender o texto. Aplique-se esse "método" a um livro de cálculo e o resultado será pífio:
"y = lim x->0 ( d sen x / d x^2 )^n"
Entendeu, leitor? Provavelmente não, mas não se preocupe, eu também não entendi nada, e há muito tempo desisti de tentar entender esses matemáticos, que converteram em hábito o ato de escrever usando símbolos ininteligíveis que no fundo não querem dizer nada.
Não dá, né? :-)
Maria Rita,
Obrigado por seu comentáio.
Alex,
É sempre um prazer tê-lo em minha "casa na árvore" virtual. Como sempre, você dá contribuições valiosas (mesmo quando discordamos radicalmente...:-P).
Não tenho dúvidas de que Derrida pode ser entendido por quem se aplique a isso, assim como Lacan e outros. Afinal, seria demais supor que possa alcançar o sucesso alguém que *ninguém* entenda. Contudo, o que o autor do artigo questiona, e nisso eu concordo com ele, são duas coisas: a) a afetação da linguagem que ele mesmo identifica com correntes de pensamento na Alemanha e na França, o que se pode contestar com base no seu argumento de que o que é obscuro para 99,9% das pessoas pode ser inteligível para um "iniciado"; b)a imposição desse tipo de "marco teórico" a trabalhos que não o exigem. Esta segunda crítica é mortal, pois é uma queixa comum em Humanidades: tem-se um problema, objetivos, justificativa, tem-se um método ainda que elementar, mas aí... e a teoria? Buscam-se teorias sofisticadas a posteriori, por exigência ritual, não porque de fato enriqueçam o trabalho. Para mim, ao menos, essa é a alma do texto e a fonte de seu crédito. Qaunto ao mais, é claro, é um artigo opinativo que contém lá seus adornos retóricos e suas hipérboles. Funciona muito bem com o leitor comum e com quem já passou pela experiência que ele descreve (acredite, eu tive de ler alguns capítulos "A Farmácia de Platão" no segundo período de Jornalismo numa disciplina chamada "Política da Comunicação"), pois infelizmente a queixa tem fundamento.
Não custa lembrar também: a) Platão ainda é mais claro que muitos de seus herdeiros; b) nem todo o mundo tem treinamento em Filosofia. :-)
Só lamento que o PRA não tenha falado do Alan Sokal. Eu bem que estava esperando ao menos uma menção.
E você pode também escrever uma réplica ao artigo na Espaço Acadêmico. Seria um embate interessante.
Um abraço,
R.
Agradeço os elogios, embora não os mereça. :-) Mas prossigamos:
a) Acredito que muitas vezes há sim afetação da linguagem, mas em outras o que ocorre é apenas que o livro é escrito para especialistas, não para o público em geral, o que inclui o público acadêmico em geral. O erro então é do orientador que recomenda ao aluno uma obra complexíssima a quem não tem os fundamentos mínimos para ler aquilo, quando deveria recomendar um livro-texto ou comentador que forneça os pontos principais de maneira bem mastigada, própria ao iniciante. Em outras palavras, não se sugere a leitura de journals de Física Teórica a quem não seja físico, recomenda-se a Superinteressante ou a Scientific American. É o mesmo caso.
b) Sobre a exigência vazia de se buscar um método a posteriori, concordo, mas noto um ponto importante: isso também é falha do orientador, que ele próprio não sabe bem a que essas obras de teoria se prestam. O que ocorre é o seguinte: todo mundo que atue em qualquer área aprende uma filosofia. Ela vem embutida no que você estuda, naquilo que seus professores te mostram ser importante ou não, naquilo que você percebe como a "maneira correta" de avaliar uma questão e que passa a aplicar intuitivamente, no modo como trata os dados que obtém, na decisão de usar ou não matemática para avaliá-los, e por aí vai. Só que ninguém te diz que está te ensinando uma filosofia, mesmo porque nem eles sabem que estão fazendo isso. E pior: menos ainda sabem que todos os critérios pertencentes a essa "filosofia tácita" podem ser questionados, que eles não são certezas auto-evidentes, que é possível adotar algumas partes dela e trocar outras, ou mesmo trocar todas, que essa troca é tão legítima intelectualmente quanto a original, e que o resultado desse tipo de procedimento são "metodologias alternativas" em princípio tão válidas quanto quaisquer outras.
Resultado: o aluno se vê dividido entre o uso do "método certo" (na realidade, o "método compartilhado por seus pares"), e a exigência de explicar isso que está fazendo por meio de uma teoria que na realidade questiona, critica e se opõe àquele "método certo". Evidente que não funciona. Um dos dois tem que ceder, e invariavelmente quem acaba cedendo é a teoria crítica.
É por isso que o PRA pode pular toda a parte da introdução teórica ao examinar trabalhos acadêmicos e não se surpreender com o que encontra. É porque aquela introdução fala do uso do método 'y', quanto todo o restante do texto usa de fato o método 'x', que ele já conhece bem e sabe como funciona. Ele se veria forçado a ler sim a introdução se algum raro trabalho aparecesse usando 'y' ao invés de só falar de 'y', o que porém nunca acontece. Afinal, você não tem como deixar algo de lado e substituí-lo por outro se nem mesmo sabe que esse algo está lá e é substituível. Os métodos alternativos sempre aparecerão como gordura inútil a ser cortada fora.
c) Platão é mais claro para nós apenas porque aprendemos platonismo desde crianças. P.ex., não é nem um pouco auto-evidente que números e figuras geométricas abstratas possam explicar o movimento dos corpos. Isso é uma espécie de platonismo. Não o original, evidentemente, mas ainda assim inspirado em Platão, e boa parte das obras de Descartes e Galileu consistem justamente em argumentos para tentar convencer seus críticos de que algo assim é simplesmente possível. Os dois foram tão bem sucedidos que hoje em dia nós é que não conseguimos imaginar o que seja uma Física não-matemática.
Já para os gregos com quem Platão falava, o que ele dizia soava quase ininteligível. Você tinha a educação homérica clássica com seu foco nas virtudes cívico-militares, praticada a pelo menos 300 anos; você tinha a educação sofística, fortemente focada em disputas jurídicas e já com seus quase 100 anos de tradição, disputando a primazia com a primeira; e de lado você tinha Sócrates e Platão, com sua "esquisitíssima" alternativa que rejeitava a ambas e afirmava haver verdades independentes do consenso externo, alcançáveis pelo indivíduo isolado que aplicasse com rigor o método dialético.
É um testamento à força da reflexão filosófica que tudo que numa dada época é senso comum vem de uma crítica rigorosa feita por filósofos de épocas anteriores ao senso comum no qual estavam inserido, e que vai se popularizando até se ver confrontada por uma nova crítica, num processo que não termina nunca.
Entonces o caso é que tudo aquilo com que já estamos habituados é sempre mais fácil, enquanto que fazer filosofia é justamente questionar o hábito e só mui raramente dizer aquilo que o ouvinte gostaria de escutar. Não surpreende que cause desconforto. Causar desconforto é uma das características distintivas da Filosofia. A Filosofia que não é desconfortável, que não causa estranhamento, que só reafirma o senso comum, não tem a menor graça. :-)
d) Sobre escrever uma réplica, até pode ser. Mas primeiro vejamos o que mais sai dessa nossa conversa. ;-)
ENTÃO... LIGUEM A TV, AGORA, NO TNT. ESTÁ COMEÇANDO DOM JUAN DE MARCO, E SE DEIXEM ARREBATAR PELO CLIMA ROMÂNTICO DO FILME.
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