domingo, setembro 07, 2008

Inquietante retorno


07/09/2008
Rússia volta a flertar com o stalinismo

Arkady Ostrovsky

"Queridos amigos! O livro que vocês têm em mãos é dedicado à história de nossa terra natal... desde o final da Grande Guerra Patriótica até os nossos dias. Traçaremos a jornada da União Soviética desde o seu maior triunfo histórico até a sua trágica desintegração."

Essa saudação é endereçada a centenas de milhares de crianças das escolas russas que, em setembro, receberão um novo livro de história impresso pela editora Enlightenment e aprovado pelo Ministério da Educação. "A União Soviética", explica o novo livro, "não era uma democracia, mas era um exemplo de uma sociedade melhor e mais justa para milhões de pessoas em todo o mundo". Além disso, durante os últimos 70 anos, a URSS, "uma superpotência gigante que administrou uma revolução social e venceu a mais cruel das guerras", pressionou efetivamente os países ocidentais a prestarem mais atenção aos direitos humanos. Desde o início do século 21, continua o texto, o Ocidente têm sido hostil com a Rússia, adotando uma política de duas medidas.

Se não fosse pelo envolvimento de Vladimir Putin, esse livro provavelmente nunca teria visto a luz do dia. Em 2007, Putin, então presidente russo, reuniu um grupo de professores de história para falar sobre sua visão do passado. "Não podemos permitir que ninguém nos imponha um senso de culpa", foi sua mensagem.

Os anos 90 foram, em grande parte, livres de ideologia na Rússia. O país estava cansado dos grandes planos e muito preocupado com sua sobrevivência econômica. Quando Putin chegou ao poder em 2000, ele disse que a idéia nacional da Rússia era "ser competitiva". Mas então, conforme o preço do petróleo subiu e a Rússia passou a se sentir novamente importante, a necessidade de uma ideologia tornou-se mais urgente. Incapaz de fornecer uma visão ou estratégia para o futuro, o Kremlin voltou-se, inevitavelmente, para o passado.

Numa escolha sugestiva, o livro cobre o período de 1945 a 2006: desde a vitória de Stalin na "grande guerra patriótica" ao "triunfo" do putinismo. Ele celebra todos os que contribuíram para a grandeza da Rússia, e denuncia os responsáveis pela perda do império, independentemente de sua política. O colapso da União Soviética em 1991 é visto não como um divisor de águas a partir do qual uma nova história começa, mas como um desvio desafortunado e trágico que obstruiu o progresso da Rússia.

É fácil demais condenar a manipulação russa da história por motivos ideológicos, ou a restauração do hino soviético por Putin, em 2000.
Mas a verdade é que a maioria dos russos - 77% de acordo com uma pesquisa - acolheu de bom grado a restauração do hino, e pelo menos metade do país vê o papel de Stalin na história como positivo.

Isso leva a outra verdade desconfortável: a versão da história retratada no novo livro é muito mais uma derrota para o liberalismo russo e para os intelectuais liberais - os jornalistas, historiadores e artistas que deveriam se opor à ideologia soviética -, do que uma vitória para Putin. A destruição da União Soviética não gerou uma nova ideologia liberal pós-soviética. A derrota do golpe liderado pela KGB em agosto de 1991, por centenas de milhares de russos que arriscaram suas vidas ao defender o parlamento em Moscou, não se tornou um divisor de águas. Não foi celebrada como o nascimento de uma nova nação, mas meramente como o colapso do velho modelo.

O que aconteceu culturalmente na Rússia nos anos 90 foi um tipo de reação adolescente contra um pai dominador. Ironia e xingamentos inundaram o domínio público. Mas a rejeição elegante da cultura soviética acrescentou pouco à sua compreensão. E ao mesmo tempo em que rejeitaram a cultura soviética, a mídia e a arte popular se engajaram num exercício extraordinário de auto-depreciação. O slogan desses anos parecia ser: "Nós somos os piores."

É fácil perceber como um oficial da KGB ou um aposentado pode sentir que perdeu muito no início dos anos 90. Mas por que os intelectuais e artistas que haviam defendido perestroika e que deveriam ser os mais beneficiados com o colapso da União Soviética também se comportam como perdedores? Um dos motivos é que eles perderam o status especial que tinham durante o regime comunista, e não tinham talento, integridade ou independência suficiente para usufruir de sua nova liberdade. A ironia penetrou em todas as áreas da cultura russa. Os símbolos e slogans soviéticos tornaram-se um campo rico para o pós-modernismo. A história soviética foi estilizada e comercializada antes de ser abordada e estudada apropriadamente. Isso começou no meio dos anos 80 e abrangeu as artes visuais, o teatro e a literatura. Algumas das imagens mais memoráveis vêm de uma série de pinturas de Leonid Sokov, em que Stalin e Marilyn Monroe aparecem em poses amorosas.

Foi divertido, mas nada além disso. Na metade dos anos 90, a cultura russa já estava flertando com a cultura soviética dos anos 30. Um dos destaques da temporada teatral de 1994 foi uma produção estudantil extraordinária de uma comédia de 1934, "A Maravilhosa Fusão", de Vladimir Kirshon. Cheio de sinceridade e energia, a peça era fiel ao período e expressava a ingenuidade e a excitação da juventude soviética antes da Segunda Guerra. Ela não propagava a ideologia soviética, mas estava saturada de nostalgia pelo senso de propósito associado ao idealismo soviético. Ela foi precursora do que se tornou uma onda de nostalgia numa escala muito maior e mais prejudicial.

No mesmo ano do retorno do hino soviético em 2000, o Canal Um reativou um jingle da era soviética para o principal programa de notícias das 9 da noite, o Vremya. Melodias, assim como aromas, podem ser muito evocativos. A melodia assinalou o retorno de uma cobertura noticiosa da era soviética. De fato, era como se o Estado estivesse enviando sinais para o país como um todo - sinais de restauração e revanche. E isso não era mais nenhum jogo ou piada. Os piadistas foram rapidamente removidos. O Kremlim e a KGB - agora chamada FSB e resgatando muito de seu poder perdido - estavam mais sérios do que nunca.

Os ícones da ideologia soviética são revividos não por causa de sua conexão com os ideais bolcheviques, comunistas ou revolucionários - longe disso - mas como símbolos da grandeza imperial russa. A revolução está firmemente fora de moda na Rússia, e o comunismo foi descartado. O mausoléu de Lênin deixou de ser um símbolo nacional há tempos. Durante uma parada militar recente na Praça Vermelha, a pirâmide construtivista projetada por Alexei Shchusev em 1924 para guardar os restos mortais de Lênin foi coberta modestamente com imagens de vitória. Não havia espaço para o bolchevique morto na celebração do renascimento russo. Mas o resgate do hino soviético quebrou um tabu que, para melhor ou pior, existia desde o discurso de Kruschev em 1956 - restabelecendo Stalin como um grande líder nacional. O apelo do ditador não estava no seu passado comunista, mas em seu legado imperial. "O império de Stalin - a esfera de influência da URSS - era maior do que todas as potências da Eurásia no passado, até mesmo do que o império de Genghis Khan", maravilha-se o livro de história.

Stálin ocupa um lugar de honra na história russa moderna, junto com Ivã, o Terrível; Pedro, o Grande; e agora Putin. A Rússia ainda está longe de erigir monumentos para Stalin, mas a aceitação dele como uma figura histórica positiva, ou pelo menos complexa, é um fato estabelecido. Não importa que todas as famílias russas tenham parentes ou amigos próximos que sofreram com o terror de Stálin. O mito é mais forte do que o conhecimento de primeira-mão. A Rússia hoje não é um Estado totalitário, tampouco um Estado socialista. Mas na ausência de uma ideologia liberal própria, o nacionalismo fora de moda, numa roupagem neo-stalinista, tornou-se a força mais poderosa da sociedade russa. Foi essa força que levou os tanques russos para a Geórgia e que amedronta a maioria dos vizinhos do país. No processo de "restauração", a Rússia não voltou ao passado soviético - mas chegou a um novo cruzamento que ameaça seus vizinhos e cidadãos.

Arkady Ostrovsky é chefe de redação da revista The Economist em Moscou.


Tradução: Eloise De Vylder

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