segunda-feira, maio 28, 2007

A Arte de Ter Razão


Há pouco voltei da peça de título acima, inspirada no manual de trapaça retórica escrito pelo filósofo Arthur Schopenhauer. Um ranzinza misantropo de primeira grandeza, o velho Schop escreveu o livro ainda nos tempos de estudante, sob o título de "Dialética Erística", compilando 38 "estratagemas" capazes de fazer uma platéia desatenta e/ou inculta "dar razão" ao seu usuário a despeito da real consistência de sua tese. Muitas vezes recorrendo a variações de falácias conhecidas, mas também apresentando golpes baixos de outra natureza, o livro recebeu, inicialmente, uma edição comentada por ninguém menos que Olavo de Carvalho, um ás do vale-tudo discursivo e do mau-humor filosófico.

A peça é divertida, consistindo basicamente em uma disputa entre vizinhos que recorrem, cada qual ao seu modo, a vários dos truques schopenhauerianos para tentar levar a melhor sobre o oponente. Dito assim, pode parecer uma encenação didática, mas, na verdade, é uma comédia bastante divertida, com atores representando diferentes aspectos e versões do mesmo personagem e um considerável dinamismo cenográfico. Encenada na pequenina Casa da Gávea -- pequenina mesmo, com a platéia espremida numa pequena sala enquanto aguardava a abertura do teatro porpriamente dito --, A Arte de Ter Razão pode não ser brilhante, mas é um programa original e leve, que merece ser visto. E uma boa pedida é depois ler o livro original, pois sem dúvida a peça deixará os que não o conhecem bastante curiosos.

De quebra, conheci uma blogueira de certo renome. Bem, confesso que nunca ouvira falar dela até o momento em que uma amiga que me acompanhava descobriu quem era a moça bonita que se espremia conosco à porta do teatro. Visitando o seu site, reconheço que a fama tem sua justiça. Então, meus caros cinco leitores, eis que vos apresento Mônica Montone, do blog Fina Flor! [Som de aplausos em massa, por favor.]


quinta-feira, maio 24, 2007

Natureza x Educação: novo round

Mais um cartucho disparado na guerra pelas origens de nosso comportamento, a velha disputa entre inatistas e empiristas agora embrulhada em fitas de DNA e argumentos darwinistas. A posição básica da autora abaixo certamente soará bizarra frente ao senso comum, mas é sempre saudável ouvir uma posição nova (ou a reencarnação de uma antiga) sobre um tema tão instigante. E como não poderia deixar de ser, partilho esta descoberta virtual com meus cinco leitores.

Descanso, de William-Adolphe Bouguereau (1879)

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Prospect Magazine, maio de 2007



Por que o lar não tem importância
Ao contrário do que afirmam alguns especialistas, uma pesquisa mostra que o ambiente familiar em que crescemos não é decisivo para a formação da nossa personalidade

Judith Roch Harris*

Desde os anos 1970, os geneticistas do comportamento vêm estudando de muitas maneiras as características do ser humano. Eles observaram traços da personalidade como a extroversão, a consciência e a agressividade. Eles examinaram as desordens mentais, a inteligência e aspectos das histórias de vida de pessoas. Em praticamente todos os casos, os resultados foram os mesmos. Cerca de metade das alterações encontradas nas características estudadas podia ser atribuída a diferenças genéticas. A hipótese, portanto, era de que a outra metade das alterações encontradas em certas pessoas era imputável aos efeitos do seu meio-ambiente.

Os pesquisadores até agora não conseguiram estabelecer quais aspectos do meio-ambiente em que vive uma pessoa são importantes. Mas eles foram capazes de determinar quais aspectos do meio-ambiente não são importantes, montando uma lista na qual eles incluíram todos aqueles que são compartilhados por todas as crianças de uma dada família.

Quer o lar seja chefiado pelo pai, pela mãe ou pelos dois, quer os pais tenham um casamento feliz ou se disputem constantemente, quer eles se dediquem a incentivar os seus filhos a serem bem-sucedidos ou prefiram deixá-los encontrar o seu próprio caminho na vida, quer a casa familiar esteja repleta de livros ou de equipamentos de esporte, quer ela seja ordenada ou bagunçada, um apartamento na cidade ou uma fazenda - a pesquisa mostra, de modo contra-intuitivo, que nenhuma dessas coisas faz diferença.

Ela também mostra que, em média, a criança que cresce num lar ordeiro e bem organizado não se revela mais conscienciosa ao se tornar um adulto do que aquela que cresceu num lar bagunçado. Ou ainda, melhor dizendo, ele ou ela será mais consciencioso apenas na medida em que ele ou ela terá herdado esta característica de forma mais ou menos pronunciada.

E, ainda assim, quase todos os psicólogos do desenvolvimento infantil cometem o erro de admitir que, ao se mudar para outro lugar, a criança leva automaticamente com ela aquilo que ela aprendeu até então no ambiente do seu lar. Por exemplo, há pesquisadores que acreditam que a qualidade do apego de uma criança pela sua mãe durante a infância determina o padrão que caracterizará todos os seus relacionamentos posteriores. Se a sua mãe lhe deu todo o amor e a atenção que ela pudesse querer, ela se dará bem em sua vida porque ela aprendeu a confiar nas pessoas.

Mas os recém-nascidos não funcionam dessa maneira. Um bebê é inteligente o suficiente para entender, praticamente a partir do nascimento, que as pessoas são diferentes umas das outras. O fato de a sua mãe tratá-lo bem não o conduz a esperar que a sua irmã ou a sua babá farão o mesmo. De que maneira as outras pessoas irão se comportar com ela, é algo que esta criança terá de descobrir por conta própria, e de uma pessoa para a outra. As crianças parecem saber instintivamente que os padrões de comportamento que elas adquiriram no lar precisam ser cuidadosamente testados, e possivelmente modificados ou abandonados, quando elas começam a ter uma vida fora do lar. Além disso, a influência das pessoas próximas não começa nos anos da adolescência: ela pode ser observada desde os 3 anos de idade.

Ainda assim, algumas crianças são mais agressivas, ou mais impulsivas, ou mais conscienciosas do que outras, onde quer que elas vão. Os pesquisadores descobriram que quando certas crianças apresentam as mesmas características numa variedade de situações, isso se deve geralmente a influências genéticas. Uma criança que herdou uma predisposição a ser agressiva ou conscienciosa reproduzirá esses traços tanto no lar quanto na escola. É este transporte das predisposições herdadas de um meio-ambiente para outro - além do fato de que essas predisposições tendem a aparecer muito cedo durante a vida - que transmite a falsa impressão de um efeito duradouro do ambiente do lar sobre a formação da personalidade.

Seria um equívoco, entretanto, superestimar o poder das predisposições herdadas. O comportamento de gêmeas idênticas fornece uma boa ilustração para isso: mesmo quando elas são criadas no mesmo lar, pelos mesmos pais, em sua maioria as gêmeas idênticas apresentam notáveis diferenças de personalidade.

Nenhuma das teorias do desenvolvimento da personalidade existentes oferece explicações adequadas para esse fato. O raciocínio que eu inventei baseia-se numa descoberta feita por neurobiólogos e psicólogos da evolução. Ao que tudo indica, o cérebro humano não é um órgão unitário e sim uma caixa de ferramentas dotada de vários dispositivos, ou "módulos", cada um dos quais sendo destinado pela evolução a executar uma função específica.

O que eu estou postulando é que a mente humana contém três módulos diferentes cuja função é de coletar e responder às informações que emanam do meio-ambiente social. Eu os chamo de sistema de socialização, sistema de status e sistema de relacionamento. O sistema de socialização nos estimula a querer nos integrar - para agir de acordo com os nossos pares. O sistema de status nos conduz a querer nos sobressair - para ser melhor do que os nossos pares. Nós podemos observar essas motivações em pessoas de todas as idades.

Esses sistemas são órgãos da mente. Assim como outros órgãos, eles são encontrados em todos os seres humanos neurologicamente normais. Mas, assim como acontece com os outros órgãos, eles variam um pouco de um indivíduo a outro. Para algumas crianças, o sistema de socialização geralmente se torna prioritário; para outras, o sistema de status não raro se revela preponderante. Essas diferenças tornam-se visíveis somente quando as duas metas - integrar-se ou diferenciar-se - entram em conflito entre elas. Em outros períodos, as duas metas podem coexistir pacificamente. A criança na escola está sentada calmamente na sua cadeira, assim como os seus colegas de classe: ela age em conformidade com o ambiente. No mesmo momento, ela pode tentar se destacar esmerando-se na leitura ou nos cálculos.

Para poder competir de modo bem-sucedido com os seus colegas, as crianças precisam adquirir um conhecimento de si mesmas. Elas devem descobrir como podem se comparar com as outras crianças no quadro de uma variedade de dimensões. Serei eu alto ou baixo, forte ou fraco, bonito ou comum, inteligente ou medíocre? Baseadas na sua compreensão das suas próprias forças e fraquezas, em função das opções oferecidas pelo seu meio-ambiente, e do conjunto particular formado pelas outras crianças com as quais eles precisam competir, as crianças elaboram a sua própria estratégia individual de comportamento. Até mesmo gêmeos idênticos vão encontrar nichos diferentes para ocupar.

A maior parte das tarefas do sistema de socialização se desenvolve abaixo do nível da consciência, assim como ocorre com parte das tarefas empreendidas pelo sistema de status. Em contraste, as tarefas executadas pelo terceiro módulo, o sistema de relacionamento, são plenamente conscientes. O sistema de relacionamento é também aquele que se desenvolve o mais cedo - ele já vem pronto ao nascer.

O sistema de relacionamento nos motiva a criar novos relacionamentos, a manter os que já existem se eles estão dando certo, e a descobrir tudo o que nos for possível sobre as novas pessoas que encontramos. A urgência de aprender novas palavras e novos fatos desaparece gradativamente à medida que nos tornamos mais velhos, mas nunca perdemos a nossa curiosidade em relação às pessoas. A bisbilhotice e o mexerico é um esporte popular até mesmo nos lares dos idosos. É o sistema de relacionamento que atiça a nossa fome por biografias e novelas, e que nos estimula a querer ver fotos de atores de filmes e de estrelas dos esportes.

A função do sistema de relacionamento é de rachar, dividir, e não de amontoar, acumular. A sua tarefa é de estabelecer diferenças entre as pessoas - de constatar e recordar aquilo que torna cada indivíduo diferente de todos os outros. Ele escolhe os nossos amigos, seleciona os nossos parceiros sentimentais, e nos diz quem são os nossos próximos e como devemos nos comportar com eles. O fato de saber que alguém é um parente próximo aumenta as chances de querermos ajudá-lo, mas reduz as chances de querermos ter uma relação sexual com ele.

É o sistema de relacionamento, com o seu armazém repleto de recordações da mãe e do pai, que nos conduz a acreditar que os nossos pais exerceram um papel central ao fazerem de nós o que somos. Este sistema contribui mais do que ele deveria para as nossas recordações conscientes. As emoções fortes associadas a essas recordações nos conduzem a sentir que elas devem ser importantes. Mas a verdade é que as pessoas não sabem por que, nem como elas se tornaram o que elas são.

Elas podem até mesmo perguntar isso para os seus pais, o que teria pouquíssimas chances de ser proveitoso, porque os pais enxergam apenas uma parte da vida dos seus filhos. Embora os relacionamentos com os pais exerçam efeitos profundos sobre a felicidade das crianças no seu dia-a-dia, exatamente da mesma forma que os relacionamentos maritais influenciam fortemente a felicidade dos adultos no seu dia-a-dia, eles não deixam marcas profundas na personalidade. Com o correr do tempo, é o que acontece com elas fora do ambiente familiar que conduz as crianças a se transformarem no que elas são. Afinal, é fora do ambiente familiar que elas são destinadas a levar a sua vida de adultos.

*Judith Rich Harris é uma psicóloga, autora do livro Não Há Dois Iguais: natureza humana e individualidade)

Tradução: Jean-Yves de Neufville

quarta-feira, maio 23, 2007

Uma feliz descoberta tardia


Estou atrasado alguns anos, afinal é uma série que estreou em 1998 e causou furor até 2004, época em que o máximo que eu conseguia acompanhar eram alguns episódios casuais de Monk (nem sonhava ainda com produções da magnitude de Roma). Mas semana passada finalmente descobri Sex and the City, o filhote televisivo do livro homônimo de Candace Bushnell. Passado o choque inicial causado pela abordagem direta do tema -- na primeira cena que vi, uma das protagonistas descrevia os horrores de felar o pênis minúsculo de seu novo namorado --, descobri um entretenimento e tanto. Atrizes interessantes, texto afiado e, vez por outra, o prazer peculiar da identificação com algumas das situações mostradas. E embora não seja exatamente a mesma coisa ver em DVD, pois assisti a quase o equivalente a uma temporada em apenas quatro dias, sem nenhuma ânsia pelo próximo episódio, estou contente por tê-la descoberto. O livro já está encomendado, para suceder a Little Children, que, aliás, foi outra adaptação feliz.

Não tenho pretensões de resenhar a série, o que muita gente já deve ter feito nos últimos nove anos. Mas não pude deixar de notar o quanto os personagens desta comédia deliciosa são profundamente infelizes. Curioso que seja justamente essa infelicidade e o desnorteamento filosófico que dela deriva, ou, talvez, que a causa, sejam a pré-condição para as risadas que dei nos últimos dias. Li que a autora os compôs a partir de um amálgama de pessoas e situações reais, o que não deixa de impressionar. Não é à toa que se trata de uma comédia; se a ênfase da série fosse o drama, Sex and the City correria o risco de ser um dos programas mais melancólicos dos últimos tempos, pelo retrato que faz dos solteiros balzaquianos numa metrópole cosmopolita. Com toda a sua sofisticação, titulações e dinheiro, seus personagens têm muito das Little Children de Perrotta. E, pior que isso, em muitos momentos parecem assustadoramente verossímeis.

Enfim, estou divagando... É bom ler ficção outra vez.

segunda-feira, maio 21, 2007

A dívida espartana

Há pouco mais de um mês, quando postei sobre o filme 300, sugeri ao meu amigo Gabriel que escrevesse uma réplica, já que disse discordar de algumas das críticas que fiz na ocasião. Fui prontamente atendido, mas fiquei devendo a tréplica, e agora, sob a bênção de Leônidas e cia., espero saldar essa dívida.

A intenção inicial era um debate, mas depois de ler o texto do nosso blogueiro de vaudeville, vi o quanto isso era inviável e por uma questão muito simples: gosto. As mesmas coisas que me incomodaram -- o chroma key, a construção hiperbólica dos personagens, a matança à Kill Bill -- foram as que deram ao Gabriel uma satisfação estética que transparece a cada frase do seu texto. Para ele, 300, uma graphic novel filmada com grande fidelidade ao original, pode se permitir vários tipos de licença poética sem grandes problemas; é uma ficção que se reconhece como tal, na qual mutantes de quatro metros, reis persas cobertos de adornos tribais e espadas de corte laser são perfeitamente cabíveis. Na verdade, ajudam a dar ao espectador uma impressão artística que seria impossível numa abordagem mais realista. Já para mim, tal opção do diretor do filme não agradou justamente por estilizar e adornar demais um episódio histórico que, por si mesmo, renderia um drama merecedor de Oscar. Mesmo com as liberdades históricas exigidas pela obra de Frank Miller, eu esperava mais filme e menos videoclipe, mais naturalismo e menos computação gráfica.

Ora, como definir qual opção é melhor? Impossível. Avaliar uma obra de ficção é algo muito subjetivo, sobretudo quando se parte de premissas estéticas muito diferentes. Assim, meu caro Gabriel, permita-me concordar em discordar -- continuo não achando 300 o filme admirável a que você assistiu. Por outro lado, reconheço que teria sido mais justo fazer uma crítica conjunta ao filme e à história em quadrinhos, uma vez que estão tão entrelaçados. Pena que não tenho a minissérie, mas é um cuidado que procurarei ter numa ocasião semelhante.

A propósito, alguém aí já viu a peça "A Arte de Ter Razão"?


Moore e a "Terra da Liberdade"

Moore teme que seu novo filme seja apreendido nos EUA

Michael Moore ganhou Cannes, em 2004, e o Oscar, em 2002
Michael Moore lançou seu mais recente polêmico documentário em Cannes, dizendo temer que o filme será apreendido pelas autoridades americanas antes de ser visto no país.

Sicko, em que o diretor ataca o sistema de saúde dos Estados Unidos, teve sua estréia no festival de cinema francês.

Mas o Tesouro americano está investigando se Moore desrespeitou o embargo comercial contra Cuba onde o documentário foi filmado.

Moore disse aos repórteres que teve que enviar uma cópia a uma país não-identificado no caso do original ser confiscado.

Multa ou prisão

O Tesouro americano disse em uma carta ao diretor que não há registro de uma autorização de viagem a Cuba e que Moore poderia ser multado ou preso.

Uma cópia de Sicko foi enviada para fora dos Estados Unidos menos de 24 horas após ter sido informado sobre a investigação, contou o diretor.

Os seus advogados lhe alertaram que o original poderia ser confiscado, ele disse aos jornalistas.

O documentário inclui sequências em que Moore leva uma equipe de resgate que trabalhou durante os ataques de 11 de setembro em Nova York para um hospital de Cuba e perto da base militar de Guantánamo.

O grupo sofre de doenças que teriam uma ligação com o trabalho de limpar os destroços do World Trade Center.

"O objetivo não era ir a Cuba, mas, sim, ir para o território americano, para Guantánamo, para que os integrantes das equipes de resgate recebessem o mesmo tratamento médico que os detentos da Al-Qaeda recebem", disse Moore.

"Nunca nenhum cineasta deveria estar falando sobre prisão ou multas ou para onde ela ou ele devem viajar."

Em uma carta com data de 2 de maio, o Tesouro americano deu um prazo de 20 dias úteis para que Moore informasse os detalhes de sua viagem a Cuba, inclusive quem foi junto com ele e o porquê.

"Nós nunca vamos ter uma mudança real nos Estados Unidos se a população não ver que isso só acontecerá se as pessoas levantarem da cadeira do cinema e fizerem algo."

O documentário cita os sistemas de saúde da Grã-Bretanha, França e Canadá. No filme, Moore recomenda que os Estados Unidos deveriam adotar os melhores elementos de outros sistemas de saúde estrangeiros.

"O que deveríamos fazer como americanos é o que sempre fazemos – apenas pegar o que cada um de vocês está fazendo certo e colocar em um único sistema para chamar de sistema americano."

O cineasta ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 2004, com Fahrenheit 11 de setembro, e o Oscar em 2002, com Tiros em Columbine.

sábado, maio 19, 2007

Sexualidade e religiosidade nas origens do Cristianismo

Sexualidade e Religiosidade
nas origens do Cristianismo

BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

Gabriel Passetti *
Mestrando em História Social/USP
passetti@klepsidra.net


Peter Brown, professor de História Antiga na Universidade de Princeton (EUA), publicou em 1990 uma obra que rapidamente foi transformada em um clássico a respeito da pouca estudada era da Baixa Antigüidade, aquela compreendida entre a ascensão do cristianismo em Roma e a queda do Império.

Seu Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo, trabalha com a nebulosa construção do poder da Igreja Católica em sua fase atualmente denominada de Igreja Primitiva, ou seja, o período compreendido entre as peregrinações de São Paulo na década de 40 d.C até os escritos de Santo Agostinho, no século V: da sociedade pagã à sociedade cristianizada.
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O livro tem como eixo principal as discussões dentro da Igreja Primitiva a respeito da sexualidade e da espiritualidade, ou seja, continência sexual, jejuns, peregrinações, messianismo, celibato e virgindade. Dividido em três grandes partes – “De Paulo a Antônio”, “O ascetismo e a sociedade no Império do Oriente”, e “De Ambrósio a Agostinho: a formação latina” – o livro está estruturado cronologicamente e geograficamente. Ou seja, primeiro trabalha o surgimento da Igreja e dos grupos cristãos, passando então a focar as manifestações, grupos, pensadores e tendências religiosas no Império Romano do Oriente, para então partir para uma análise semelhante no Império Romano do Ocidente.


Alguns dos principais dogmas – além de alguns grandes estereótipos de nossa sociedade – têm sua origem neste período. Podemos acompanhar, por exemplo, o surgimento dos originais “gnósticos” ou “maniqueístas”. Segundo o Dicionário Aurélio, entende-se hoje por “Gnóstico”, algo que remete a “gnose”. Esta, “Conhecimento esotérico e perfeito da divindade, e que se transmite por tradição e mediante ritos de iniciação”. Já “Maniqueísta” remete a “Maniqueísmo”: “Doutrina que se funda em princípios opostos, bem e mal”.


O termo “gnóstico” original talvez tenha sido perpetuado, segundo Brown, devido à atuação de Valentino. Na sua época (séc II), “gnose” significava “conhecimento verdadeiro”. Ou seja, declarar-se “gnóstico” significava que a pessoa dizia ser conhecedora e portadora da verdadeira mensagem de Cristo – no caso. Isto nos remete à realidade vivida nos princípios do cristianismo: um clero sem forte autoridade nem discurso coeso, convivendo com diversos grupos (“didascálias”) liderados por professores-líderes espirituais, cada um dizendo ser o verdadeiro portador da mensagem de Cristo e acusando os demais de hereges. Será, portanto, nesta época de disputa interna por poder e por uma tendência única no cristianismo, que surgirá a importante idéia de heresia: visão incorreta e distorcida da fé.


Vê-se, portanto que a noção tradicional de gnose (“conhecimento verdadeiro”), nada tem a ver com o que hoje é entendido pelo mesmo termo (“conhecimento perfeito e esotérico da divindade”). Porém, de onde teria surgido esta deturpação da idéia de gnose? Isto ocorre exatamente nas lutas entre as didascálias e o clero, envolvendo Valentino. Este, propunha o mito como veículo da instrução religiosa. Para ele, o sexo seria o alimento para o fogo que destruía o Universo. Sua extirpação acabaria com a diferença entre os sexos. Os celibatários e os continentes, portanto, seriam assexuados, seriam apenas espírito e não carne. Durante as disputas internas de poder da Igreja, tais concepções serão postas de lado e classificadas por heréticas e, então, o termo “gnose” passará a assumir o tom pejorativo e negativo atual.


Com o “maniqueísmo” ocorreu um processo semelhante. Originalmente entendido como a linha teológica pensada por Mani, logo também foi classificada por herética e rotulada negativamente. Mani viveu no século III e acreditava que o corpo, por mais que se tentasse, era originalmente uma “argila imunda”. O sexo seria a representação do oposto da Criação, o caminho às Trevas. O anseio sexual deveria, então, ser banido para sempre, para que a Luz vencesse a batalha vital contra as Trevas. Sua doutrina exigia uma dura disciplina sexual e de alimentação, com uma hierarquia entre os Eleitos e os maniqueus. Sua adoração ao Sol e à Lua logo foram transformadas, no jogo político interno da Igreja, em heresia, e toda sua filosofia de embate entre a Luz e as Trevas foi reduzida ao que hoje é entendido por “doutrina que se funda em princípios opostos”.

É interessante notar como as discussões e idéias acerca da sexualidade sempre estiveram presentes nos embates teológicos cristãos. A humanidade, após o pecado de Adão e Eva, deveria pensar o que fazer com a maldição do sexo – fogo que mantinha a sociedade viva, porém distante de Jesus.

De São Paulo a Santo Agostinho, podemos acompanhar como que os conceitos de virgindade, sexo após o casamento, e celibato clerical foram sendo trabalhados até chegarem nas concepções que conhecemos da Idade Média. Se Paulo dizia que o celibato era perigoso por não permitir a reprodução da sociedade cristã – preocupação fundamental no começo da expansão cristã – já Márcio e Taciano, no século II, defenderão a total renúncia sexual para a formação de uma nova sociedade, com novos valores. Continuamos vendo o reflexo do pequeno grupo cristão à época existente: uma forma de diferenciar-se da maioria pagã era através da renúncia sexual, em um momento em que o número de adeptos do cristianismo era substancialmente maior do que na época de Paulo.

Após a oficialização da religião cristã no Império, com Constantino, podemos ver uma mudança nas idéias acerca da sexualidade. Não havia mais porque diferenciar a minoria cristã da maioria pagã. Agora, os cristãos eram a maioria. Então, as discussões passaram a ser em torno da virgindade – o símbolo do corpo imaculado para Orígenes deveria estar presente no clero: o corpo imaculado da Santa Igreja.

No século IV, então, a castidade – que havia sido fortemente defendida por Clemente no século II como diferenciação dos pagãos – passará a ter um novo significado: os casados serão autorizados a manterem relações sexuais, desde que preservando os dias santos, a menstruação, a gravidez e a lactação. Isto sendo cumprido, serão considerados castos: chega a idéia do sexo para reprodução, dentro do casamento sem adultério. Para João Crisóstomo, (séc IV), o casamento seria a única forma possível de controlar o desejo sexual.

Portanto, até o século V, estarão instaurados alguns dos principais dogmas católicos: o celibato clerical necessário para manter a pureza do corpo dos Ministros de Deus e da Santa Igreja; a virgindade como renúncia ao fogo sexual antes do sagrado matrimônio; e o sexo para reprodução e com restrições de datas, somente no casamento.

Santo Agostinho, aquele que pode ser entendido como o elo entre a Igreja Primitiva e a Igreja Medieval, instituída, regulada e dogmatizada, foi então quem consolidou tais idéias centrais do cristianismo, legitimando o casamento como o estado natural dos seres criados por Deus, e dentro deste, a dominação da mulher pelo marido, e dos filhos pelo pai – características fundamentais da sociedade medieval.


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Peter Brown narra o crucial período da consolidação dos ideais cristãos: época de duros embates e discussões sobre os principais dogmas religiosos, e da criação de alguns importantes mitos, como o da Virgem Maria (defendido duramente por Ambrósio), aquela com o corpo imaculado, teria sido escolhida por seu perfeito ascetismo. Narra-se, portanto, o embate entre o corpo e a alma, onde o sexo é o campo de batalha e onde a mulher é vista como a fonte de todo o pecado – reflexo maior de uma sociedade altamente machista e hierarquizada.

Brown escreve sobre o importante período da consolidação da mentalidade cristã, sobre a transição da era pagã à era cristã. Seu livro, um primoroso estudo sobre a História das Mentalidades, está baseado em farta documentação – composta quase que exclusivamente por obras teóricas escritas por homens – e apresenta ao leitor, em suas longas 485 páginas, as origens morais e teológicas que ainda hoje regem a sociedade ocidental.


Nota:
* - Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp

terça-feira, maio 08, 2007

A fábula moral do Homem-Aranha


Homem-Aranha 3, lançado na última sexta-feira no circuito brasileiro, ilustra uma tese típica de nosso tempo: a do carisma do homem comum. Uma superprodução digna do herói que a protagoniza, o filme de Sam Raimi retoma a idéia-base de seus dois antecessores, que é tratar não de batalhas épicas entre o Bem e o Mal, mas das pessoas que se escondem por trás dos rótulos de herói e vilão. Numa linha similar à do grande clássico do gênero, Superman – The Movie, de John Donner, a trilogia de Raimi fala sobretudo de Peter Parker, o adolescente tímido que por acaso se torna super-herói. São seus dilemas, dores e ilusões que dão o grande recheio dos três filmes, e fazem deles, em vez da exibição machista de proezas físicas e personagens superficiais típica de filmes de ação, obras mais delicadas, em que cada personagem tem seu próprio drama, suas motivações e dúvidas. Os vilões, seja o maligno Duende Verde ou o apaixonado Dr. Octopus, têm seus momentos de ternura, e levam a platéia a torcer por sua redenção. Afinal, mais do que antagonistas terríveis e cruéis, que eles também são, eles possuem, como Peter, suas próprias tragédias, e não se tornaram o que são por livre-escolha. Vendo-os em confronto com o Parker-herói em batalhas bombásticas, é difícil não imaginar que poderia haver uma outra solução, uma outra forma de lidar com seus conflitos. Que tenham de se enfrentar do jeito mais violento acaba sendo uma faceta a mais em sua tragédia.

Nessa terceira parte das aventuras do Aracnídeo, esse cuidado de Raimi fica mais uma vez explicitado na figura do Homem-Areia, um vilão menor na galeria de inimigos do herói. Flint Marko, que é reinventado como participante de um momento crucial na vida de Parker, não é um maníaco que procura descontar no mundo as suas frustrações; é, tão-somente, um sujeito confuso, perseguido, que procura, do único jeito que conhece, compensar a filha doente pela vergonha e a ausência de um pai condenado à prisão. O momento em que ele renasce como Homem-Areia talvez seja o mais bonito e doloroso já dedicado a um antagonista em todos os grandes filmes de fantasia, e com certeza no gênero super-heróico. Pode-se até questionar se Marko é realmente um vilão ou simplesmente um anti-herói trágico. Seja como for, a forma como o personagem foi construído confirma o quanto Homem-Aranha é uma série inovadora, rompendo os estereótipos maniqueístas que infestam os filmes-pipoca feitos em Hollywood, que por sua vez constituem parte da educação moral de nossa geração multimídia. Além de coragem e da nobreza individual que são atributos tradicionais do heroísmo, os três Homem-Aranha são narrativas permeadas também pela compaixão — um sentimento, e um valor, ainda muito pouco cultivados diante do que seria preciso em meio às turbulências humanas.


A primeira aparição do uniforme negro alienígena (1984)

Claro, nenhum dos filmes é perfeito, e essa terceira parte não é exceção. Nunca gostei da escalação de Kirsten Dunst para o papel de Mary-Jane, por exemplo, mas não se pode esperar que uma terceira parte que faz referência o tempo todo aos filmes anteriores mude a atriz principal. Mas a principal crítica é que Raimi peca ao fazer um filme com excesso de informação: além do Homem-Areia, existem o novo Duende Verde, o simbionte alienígena que origina o uniforme negro e, por fim, Venom. Na ânsia de apresentar tantos oponentes, temas excelentes são tratados com uma pressa lamentável: o drama do Homem-Areia não é devidamente explorado, e até a relação entre o simbionte/uniforme negro e Parker, que por si só já renderia um ótimo suspense e mesmo terror, é resolvida um tanto abruptamente, em meio a coincidências improváveis e uma improvável redenção de última hora. Fico me perguntando se isso não se deveria à possibilidade de Raimi querer se despedir da série (que deve continuar no futuro próximo) em grande estilo, procurando reunir o maior número possível de sagas clássicas dos quadrinhos num único longa-metragem. Quem sabe? Esse mesmo mal destruiu X-Men 3, mas felizmente, no caso de Raimi, apenas diminuiu um pouco o mérito de uma produção que, em tudo mais, senão brilhante, muito divertida.

Enfim, Homem-Aranha 3 conclui bem a melhor trilogia super-heróica jamais feita e deve agradar tanto aos fãs quanto aos neófitos, às crianças e aos adultos. Combinando aventura, romance e uma dose considerável de bom-humor (há cenas absolutamente impagáveis), é diversão certa e vale o ingresso. Fica a recomendação.

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P.S.: Já ia esquecendo de dizer que o filme tem uma breve e hilária participação de Bruce Campbell, protagonista de Uma Noite Alucinante e que de vez em quando aparece nas produções de Raimi. Vale conferir!