sexta-feira, outubro 30, 2020

"Esclarecimento" (ou uma visão espírita de religião e política)



Você pergunta, meu amigo, pelas razões que nos levam a escrever tanto.

 Não deveríamos procurar a Corte Celestial para repouso? Teríamos tamanha saudade da tarefa humana, a ponto de reabsorver-lhe, voluntariamente, as angústias? A seu ver, o sepulcro seria o caminho ideal para o esquecimento absoluto.

 Até aí, sua indagação se perde no domínio das coisas vulgares. Ocioso inquirir de um homem comum, quanto aos motivos que o compelem a trabalhar pela garantia da própria felicidade.

 Seu inquérito, contudo, vai mais além. Deseja saber por que nos dedicamos ao assunto religioso.

— “Todos os Espíritos desencarnados — alega, espantadiço — se empenham na difusão dos princípios de fé e caridade. Emparelham-se com os pregadores insistentes do alto dos púlpitos. Não possuiremos suficiente número de ministros e padres no mundo?”

 Equivoca-se em semelhante generalização. Nem todos os desencarnados se consagram, ainda, a serviço tão nobre. Milhões deles permanecem imantados à Crosta do Mundo, impedindo o progresso mental das criaturas que lhes são afins. Preferem a discórdia e a malícia, como autênticos demônios soltos, e, quando podem, chegam a destilar venenos cruéis, através de escritores invigilantes. Mantêm a ignorância de muita gente, a respeito da eternidade, para melhor se acomodarem às reclamações da inferioridade em que se comprazem.

 No entanto, não é para comentar as perturbações da nossa esfera de ação que lhe escrevo esta carta.

 Refere-se você à religião, como se a fé representasse bolorento asilo para Espíritos inválidos. Certamente envolvido na onda turbilhonária que agita o oceano de nossa civilização decadente, também você penhorou o raciocínio nas ilusões do homem econômico.  Crê possível a regeneração do mundo, de fora para dentro, e dar-se-ia, talvez, de bom grado, a qualquer renovador sedento de sangue que prometesse um mundo reformado por decretos que se vão caducando, de cinco em cinco anos.

 Dentro de tal clima, não pode compreender o serviço religioso. Admite que um pomar se mantenha e produza sem a sementeira? Persistiria a vida humana sem o altar da maternidade?

 O castelo teórico e o campo da experimentação prática, em que se assentam os princípios filosóficos e científicos da Terra, não se sustentariam sem a fonte oculta e invisível da mística religiosa.

 Somente o ser privado de razão consegue movimentar-se sem raízes na espiritualidade superior.

 Os grandes escritores, supostamente materialistas, que você menciona com indisfarçável prazer, não foram senão atletas do pensamento em conflito com as imposições do sacerdócio organizado. Não hostilizavam Deus, objeto sagrado de seus estudos e cogitações. Combatiam os processos infelizes, muita vez usados pelos homens de má-fé, para situarem o Eterno e Supremo Senhor na ordem política. No fundo, identificavam a luz divina, na própria lâmpada de intelectualidade que lhes aclarava a mente.

 A religião é chama sublime, congênita na criatura. Todas as noções de direito no mundo nasceram à sua claridade e todas as secretarias de justiça, nos mais diversos países do Globo, devem a ela sua procedência.

 Quando o primeiro selvagem compreendeu que lhe competia respeitar a taba do irmão, tal entendimento ter-lhe-ia surgido, à face da gloriosa visão do céu, recolhendo, através da contemplação do Sol e das estrelas, da sombra e da tempestade, a primitiva ideia de Deus.

 Subtrair o pensamento religioso da experiência humana seria o mesmo que desidratar o corpo da Terra. Sem a água divina da espiritualidade, qualquer construção planetária se destina a irremediável secura. Conseguirá você viver exclusivamente no deserto?

 O homem poderá rir com Voltaire, estudar com Darwin, filosofar com Spinoza, conquistar com Napoleão, teorizar com Einstein, ou mesmo fazer teologia com São Tomás; entretanto, para viver a existência digna, há que alimentar-se intimamente de princípios santificantes, tanto quanto entretém o corpo à custa de pão. Quem não dispõe do divino combustível para uso próprio, recorre inconscientemente às reservas alheias, porquanto, não existe idealismo superior que não tenha nascido da atividade espiritual e, sem ele, o conceito de civilização redunda em grossa mentira.

 Não sorria, pois, usando o sarcasmo, perante aqueles que consagram o tempo ao ministério religioso.

 Com os cientistas modernos, vocês poderão entrevistar o átomo, fotografar a célula e positivar a curvatura do espaço… Há muita gente na América que já pensa em pedir às autoridades administrativas da política dominante a reserva de terrenos na Lua, considerando o desenvolvimento dos veículos a jato…

 Poderão cogitar de tudo isto, mas não deslocarão a ideia religiosa em um milímetro, sequer, de rota. A fé representa claridade de um sol que ilumina o espírito humano, por dentro, e, sem essa claridade no caminho, o Planeta poderia perder, em definitivo, a esperança num futuro melhor.

 Quanto ao fato de demorar-me, por algum tempo, na atualidade, entre admiráveis amigos que cogitam de servir, depois da morte, ao Cristianismo renascente, creia que isto ocorre por gentileza deles e não por merecimento de minha parte.  Não sou nenhum Livingstone em áfricas do “outro mundo”. Quem define o meu caso, com paciência, é o nosso velho sábio Shakespeare. Disse ele, certa vez, que “quando Deus nos vê endurecidos no mal, cerra-nos os olhos para a imundície e nos obscurece o juízo, de modo que chegamos a adorar os nossos desvarios e a zombar de nós mesmos, caminhando, cheios de cegueira e de orgulho, para a perdição”. Segundo depreende, sou um enfermo à procura de melhoras.

 Embora desencarnado, não posso saber se você guarda saúde integral. Creio, porém, que, se algum dia atingir a infelicidade a que cheguei, não deixará de fazer conforme estou fazendo.


Irmão X ("Luz Acima", psicografia de F. C. Xavier, 1947).

terça-feira, setembro 15, 2020

King e o vírus do ódio

Lendo com meus alunos A Autobiografia de Martin Luther King, e, entre muitos trechos impactantes, fiquei particularmente impressionado com este, que parece descrever tão bem o clima em que vivemos no Brasil de hoje: 


 


"Assim, na sua morte, o presidente Kennedy tem muito a dizer a cada um de nós. Ele tem algo a dizer a todo político que alimenta seus eleitores com o pão azedo do racismo e a carne podre do ódio. Tem algo dizer a todo sacerdote que observa as perversidades do racismo e permanece calado por trás da segurança dos vitrais. Tem algo a dizer aos devotos da extrema-direita que despejam palavras venenosas contra a Suprema Corte e as Nações Unidas e rotulam de comunistas aqueles com os quais não concordam. Tem algo a dizer a uma filosofia comunista equivocada pela qual os homens aprenderiam que os fins justificam os meios e que a violência e a negação da liberdade básica são métodos justificáveis para se atingir o objetivo de uma sociedade sem classes.

Ele diz a todos nós que o vírus do ódio que se inseriu nas veias de nossa nação, se não for extirpado, levará inevitavelmente à nossa ruína moral e espiritual." (P. 283.)

"Todos nós estivemos envolvidos na morte de John Kennedy. Nós toleramos o ódio; toleramos a simulação doentia da violência em todas as esferas da vida; e toleramos a aplicação diferencial da lei, pela qual a vida de um homem só é sagrada se ele concorda com nossas opiniões." (P. 284.)

 

sábado, junho 13, 2020

"Solitude"



 

Nós, a gente comum das ruas, não vemos a solidão como a ausência do mundo, mas como a presença de Deus.

Encontrando-o em todos os lugares que criam nossa solidão.

Para nós, estar verdadeiramente sozinhos significa participar da solidão de Deus.

Deus é tão grande que nada pode achar espaço em qualquer lugar que não dentro dele.

Para nós, o mundo inteiro é como um encontro face a face com aquele de quem não podemos escapar.

Nós encontramos sua causalidade viva bem ali nas esquinas das ruas cheias.

Nós encontramos sua pegada sobre a terra.

Nós encontramos sua Providência nas leis da ciência.

Nós encontramos Cristo em todos estes “pequeninhos que a ele pertencem”: os que sofrem no corpo, os que estão entediados, os que estão em apuros, os que sangram, os que estão necessitados.

Nós encontramos Cristo rejeitado no pecado que usa mil faces.

Como poderíamos simplesmente ter a coragem de debochar dessas pessoas ou de odiá-las, esta multidão de pecadores em quem esbarramos?

A solidão de Deus na caridade fraternal; ela é Cristo servindo Cristo, Cristo naquele que está servindo e Cristo naquele que está sendo servido. Como poderia o apostolado ser uma desperdício de energia ou uma distração?

 



Madeleine Delbrêl (1904-1964).




Fonte: DELBREL, Madeleine. We, the Ordinary People of the Streets (Ressourcement: Retrieval & Renewal in Catholic Thought) (Locais do Kindle 751-758). Edição do Kindle.

sábado, maio 09, 2020

Karl Barth e o "cristianismo de cultura"

Lendo A Teologia do Século XX, de Roger Olson e Stanley Grenz. Por quê? Comecei a ler sobre o assunto por causa de um artigo sobre fundamentalismo, e, como testemunha o post anterior, tomei gosto pela coisa. Não é muito diferente de ler uma história da filosofia, mas, sendo espírita, há um interesse extra. Já tendo passado pela teologia liberal protestante, finalmente cheguei à neo-ortodoxia, que marca de fato o ínício do século XX nesse campo do conhecimento. E, nessa corrente, ninguém é maior que o suíço Karl Barth (1886-1968), que reafirmou a autoridade da revelação diante da "humanização" iluminista promovida pelos liberais -- a mesma que, como disse no texto anterior, é muito parecida com a visão espírita da missão do cristianismo.
O que me chamou a atenção em Barth foi o gatilho para essa reação. Em 1914, Barth constatou, surpreso, que seu professor Adolf von Harnack -- ícone da teologia liberal para a qual o Cristianismo é uma religião privada, individualista, de "pessoas boas querendo transformação interior" -- fora um dos autores do discurso do Kaiser sobre a "obrigação moral" da Alemanha ir à guerra. Se bem entendi, para Barth, o cristianismo racionalizado, humanizado, de Harnack se diluíra tanto na cultura moderna que perdera as defesas contra uma monstruosidade como o ultranacionalismo e a beligerância estatal. As marcas essenciais da revelação haviam dado lugar ao lugares-comuns da sua época, notadamente da política. O "bom cristão liberal", nessa perspectiva, não se distinguia do cidadão comum mesmo num momento de imensa urgência moral, e para o qual não faltavam ensinamentos de Cristo em que se basear.
Como espírita, entendo e sempre defendi que não dá para separar a ética pessoal da ação social. Nosso "vício" é o oposto, o de fingir que nosso discurso sobre caridade e amor ao próximo não tem dimensão política nenhuma, e fugir de qualquer conflito nesse campo como o (inexistente) diabo foge da cruz. "Caridade" é distribuir quentinha, que se danem as políticas públicas que poderiam fazer menos gente precisar delas (deve ser difícil praticar "caridade" na Noruega). Por outro lado, vendo como alguns companheiros de fé simplesmente aceitam pacotes e chavões ideológicos de direita e esquerda, aparentemente alheios aos conflitos com a doutrina que professam, a questão de Barth me volta à cabeça.

domingo, abril 05, 2020

Espiritismo e ideias sociais

Não sou socialista. Nunca tive simpatia por Marx e seu sistema, embora entenda seu apelo e engenhosidade. Normalmente me defino como centrista, embora desconfie que eu deva ser algum tipo de centro-esquerda. Digo isso não por preferência partidária ou adesão a uma doutrina específica, mas por sensibilidade e princípio: acho saudável que a solidariedade seja uma das bases de uma sociedade justa. Insisto: não é por Marx nem por qualquer romance com multidões com bandeiras vermelhas pedindo o sangue dos privilegiados. Provavelmente é porque, ao fim e ao cabo, sou espírita e a "caridade" -- não me refiro ao sentido limitado que a palavra costuma ter -- é a base da ética que adotei ainda cedo na vida. Outra é a consciência, e aí os conservadores em tese me entenderiam bem, de que a humanidade é imperfeita e nenhum grupo social está isento das falhas e tentações comuns a todos nós. Isso vale tanto para o sábio que cria belos sistemas quanto para o proletariado revoltado sitiando um palácio: ser vítima de opressão não garante nenhuma superioridade moral, e a história das revoluções está aí para mostrar que catarses sanguinárias não implicam necessariamente uma sociedade melhor. Não me chamem para incendiar a Bastilha ou guilhotinar reis.

Não sou socialista, mas me formei numa doutrina profundamente influenciada pelos socialistas utópicos e por uma visão iluminista da religião cristã. Menos Marx, mais Saint-Simon? Talvez seja isso. Sociedade de mercado? Sim, mas não laissez-faire. Individualismo? OK, mas não ilimitado (pandemias são ótimas para pensar sobre isso). Propriedade privada? Sim, mas não como princípio sagrado, há circunstâncias que devem ser consideradas. Programas sociais para os pobres? Sem dúvida nenhuma. Serviços essenciais públicos, como saúde e educação, sem exclusão de opções privadas? Idem. Opiniões bastante convencionais no Brasil e mesmo na América Latina, como se vê.  

Uma frustração que tive, nestes quase 30 anos como espírita, é a falta de uma reflexão mais profunda sobre essas questões. Os ramos tradicionais do cristianismo têm reflexões sobre praticamente tudo, e a simples existência de um campo chamado de "Teologia Política" não me deixa mentir. Nós, espíritas, no entanto, temos pouco o que mostrar no que concerne a iluminar as questões mundanas à luz de uma análise espiritual ou doutrinária. Fala-se muito de caridade no sentido de esmola e quentinha, pouco sobre questões de direitos e programas. Fala-se muito de reencarnação e sua influência sobre as condições socioeconômicas dos indivíduos, quase nada sobre por que se permite que estas ainda possam ser precárias. Discute-se a ordem social de cidades espirituais, mas é quase heresia, para muitos, usar o Espiritismo como ferramente para pensar sobre a que temos deste lado da sepultura. Poucos autores se aventuraram nessa seara. Léon Denis é o mais clássico, Com seu Socialismo e Espiritismo, mas houve outros que merecem menção: Manuel Porteiro, na Argentina dos anos 20 e 30; Herculano Pires, nas duas versões de um livreto pouco conhecido, "O Reino"; Cleusa Beraldi Colombo, numa história descritiva das Ideias Sociais Espíritas; e mais um ou outro que agora me fogem à memória. E fica nisso. Mais recentemente, Dora Incontri fundou -- ou foi porta-voz de -- um movimento espírita "progressista", que por enquanto parece mais uma associação  de esquerdistas convencionais com uma filiação religiosa comum, não por acaso revelados ao mundo no calor da condenação de Lula. Se vai sair algo original disso, além de alguns bons textões de Facebook, o tempo dirá.

Onde, então, encontrar algo uma articulação mais séria entre minha visão de mundo e os problemas concretos da nossa organização social? Nem me refiro a questões mais metafísicas, e sim à base ética espírita, que é basicamente a mesma do cristianismo em sua versão teologicamente liberal?  Onde haveria uma reflexão que considerasse os princípios da solidariedade e da compaixão, sem o fetiche pela violência revolucionária e a romantização ingênua dos oprimidos, por um lado, e o paternalismo estéril, sentimental e míope dos conservadores? Nalguma parte deveria haver quem tratasse dessas questões com a seriedade e amplitude de vistas necessárias. Infelizmente, não nos centros espíritas, em que tais coisas não raro são até malvistas, pois "política" é uma espécie de tabu, e as consequências -- a meu ver, óbvias -- do pensamento de Kardec para a sociedade são constantemente minimizadas. Considera-se importante ajudar os pobres, mas ninguém gosta de se perguntar por que os pobres existem.

Depois de muito tatear, e muito por causa de meus estudos como historiador, acho que encontrei duas possibilidades. A bem da verdade, são interligadas. A primeira diz respeito aos métodos da luta política, e creio que já a mencionei em postagens anteriores: a não violência de Gandhi, depois adaptada e desenvolvida por outros ativistas nos mais diversos contextos. Já a segunda, no que tange à teoria, está no próprio campo da teologia liberal (para os protestantes) ou modernista (para os católicos). A partir de uma visão iluminista comum, eles construíram um pensamento cristão mais preocupado com o Sermão da Montanha do que com profecias apocalípticas e celebração de milagres, que interioriza o sentido da religião em vez de focar na autoridade externa de textos supostamente inerrantes e/ou tradições dogmáticas (para os quais reconhecem a crítica histórica e científica). Mais do que isso, sua atuação não se limitava a tratados e púlpitos, indo muitas vezes para fora das igrejas e ganhando forma como movimentos de reforma social e sínteses com as propostas políticas de seu tempo.

Talvez os estudantes de Teologia sorriam diante dessa "descoberta", haja vista que esse tipo de corrente faz parte da história cristã há mais de dois séculos, já tiveram sua ascensão e sua relativa queda no seio do cristianismo tradicional. Mas, para mim, foi uma iluminação. Já tinha lido sobre a influência do socialismo romântico francês sobre Kardec, mas nada ainda sobre possíveis paralelos teológicos. O espírita de hoje, normalmente, não vai muito além das citações e refutações que os autores espíritas incluem em suas obras. A historiografia intelectual do movimento é escassa, em boa parte importada e sem tradução em português. Poucos, além disso, são versados na história cristã em geral -- no máximo, gostam de especulações (ou teorias de conspiração) históricas sobre como o "verdadeiro cristianismo" era uma espécie de Espiritismo com outro nome. Diria mesmo que a maioria de nós subestima nossos companheiros católicos e protestantes, orgulhosos demais de nossa "fé raciocinada" -- embora qualquer visita a uma comunidade virtual espírita mostre bem como isso costuma ser mero excesso de autoestima tribal.

O guia que encontrei para esse reformismo cristão tem sido Gary Dorrien, um acadêmico e sacerdote episcopal norte-americano. Autor de tomos bem alentados, Dorrien escreve muito bem e é um erudito: cada livro seu funciona como um grande catálogo de referências. Entre seus temas, está a história da formação da teologia liberal americana (3 volumes), a influência do Social Gospel sobre o ativismo negro pelos direitos civis e as raízes religiosas e políticas da social-democracia na Grã-Bretanha e na Alemanha, entre outros. Ao lê-lo -- tarefa que vai me exigir alguns anos, entre as folgas mentais que a universidade permite --, a impressão é de que ele escreveu os livros que procurei quase a vida toda. É um universo intelectual e ético que se abre, profundamente afim com a visão espírita, mas completamente apartado em termos de desenvolvimento.

Neste vídeo, que infelizmente só tem as legendas automáticas do YouTube, Dorrien fala de um ramo específico dessas correntes, o socialismo cristão dos séculos XIX e XX, e suas relações com fabianos e marxistas. É o tema principal do seu livro mais recente, Social Democracy in the Making, linkado acima. Para quem puder entender e tem interesse em história, vale a pena.
 

Tempos de pandemia


Quarentenas são capazes até mesmo de ressuscitar blogs, a despeito de filhos, distrações de rede social e outros que tais. Talvez seja pelo desejo de dar alguma "permanência" ao que se escreve, por mais volátil que todo meio digital seja. Mas há coisas que gostaria de registrar e são perfeitamente compartilháveis, e o Divagações se presta bem a isso. Então, ei-lo de volta... por um tempo.

 


sexta-feira, junho 09, 2017

Coisas que aprendi no Facebook - 2

- Sou historiador, logo comunista.
- Critico a esquerda, logo sou liberal, portanto conservador, o que na verdade significa fascista reacionário.
- Critico a direita, logo sou comunista.
- Se não sou comunista, então sou um "idiota útil" ( = fantoche de comunista).



- "Ser sincero" (= contundente) é sinal de competência.
- Questionar um slogan identitário é o mesmo que discriminar o grupo que o usa.
- Para salvar a democracia, é preciso destruir todo o campo adversário.
- Só pode falar de um período histórico quem o viveu. (Fora, egiptólogos!)
- Ler um livro torna você um expert.
- "Debate" é quando se juntam duas ou mais pessoas que têm a mesma opinião para concordar(em) em público uma(s) com a(s) outra(s).
- Apoiar ditaduras no presente não afeta em nada a credibilidade democrática de um partido.
- A política é a luta do bem contra o mal.
- Violência só é ruim quando é contra mim.
- Questões éticas como o aborto podem ser discutidas com base em ideologias políticas e princípios abstratos, mas se se envolver religião ou espiritualidade, aí está errado.
- O Brasil é uma ditadura desde 2003. Nunca o foi entre 1964 e 1985.
- O PT inventou a corrupção.
- O PMDB inventou a corrupção.
- O PSDB inventou a corrupção.
- Ter seus principais assessores e conselheiros presos por corrupção e ser acusado por dúzias de testemunhos não basta para lançar suspeita sobre um político, só se ele for do partido rival.
- Festas à fantasia de mau gosto merecem críticas, depredar vitrines e mobília urbana, não.
- A polícia, quando mata, é incapaz de errar.
- Criticar a polícia é defender o criminoso.
- Toda bala perdida é *sempre* de um policial.
- Quem sofre, pode descarregar sua raiva do jeito que bem entender.
- Não existe falso testemunho.
- "Não sei se é verdade, mas passo adiante" é uma atitude sensata e louvável.
- Um julgamento presidido por Gilmar Mendes e com dois ministros nomeados por um dos réus poderia ser justo.

Coisas que aprendi no Facebook - 1



Hitler, Sarney e a ditadura militar brasileira eram todos de esquerda.

A Revolução Francesa só trouxe males para o mundo.

Toda intervenção governamental é de esquerda.

O liberalismo se resume a não gostar de impostos.

O livre mercado, sozinho, resolve todos os problemas materiais e as discussões econômicas são puramente ideológicas.

Governos de esquerda que decepcionam, são sempre de direita. Governos de direita que cometem erros, na verdade eram de esquerda.

Desigualdade de gênero não existe ou, se existiu, já acabou.

Movimentos de minorias só existem porque são financiados por bilionários americanos "de esquerda".

Todo muçulmano é terrorista em potencial e, se não é, é porque não é devoto de verdade.

Só fanáticos religiosos se opõem ao aborto.

Todos os direitos e pontos positivos da sociedade moderna se devem ao cristianismo.

Acusações de preconceito e assédio são verdade a priori, mesmo sem prova ou testemunha.

A vivência sempre vale mais que o estudo.

Racismo não existe.

Ser vítima de preconceito imuniza contra preconceitos.

Blogs e vídeos de desconhecidos no YouTube têm maior valor que diplomas ou as palavras de estudiosos reconhecidos.

Os males do mundo são causados por uma grande conspiração, felizmente denunciada por @mulderXFiles2408 e o site do cunhado de meu primo.

Não existe natureza humana, tudo é social.

A natureza humana é perversa.

Toda reivindicação de minoria é ilegítima e instigada por comunistas.

Problemas sociais se resolvem com repressão e discursos duros.

O privado é sempre superior ao público.

O fracasso do socialismo real é irrelevante para a credibilidade das esquerdas.

As ditaduras latino-americanas não têm nada a ver com o descrédito das direitas.

O Estado é sempre ineficaz, exceto quando reprime protestos populares e acusa manifestantes de crimes.

Direitos humanos são uma frescura desnecessária.

A polícia não erra, por isso não precisa cumprir a lei sempre.

Uma única pessoa, na presidência, pode resolver todos os problemas do país.

Política é coisa para jornais, não tem nada a ver comigo.

((Originalmente de 14/5/2017.)

domingo, maio 07, 2017

Heróis?



Vejo intelectuais pregando a suprema malignidade de inimigos onipresentes. Vejo pessoas usarem a própria dor como carta-branca para demonizarem seus desafetos. Vejo gente inteligente escrevendo todo dia contra, seja algo ou alguém, mas sempre contra. Vejo "iluminados" que não enxergam, libertadores que oprimem, santos que maldizem. E vejo a mim mesmo, não poucas vezes, reproduzindo o que gostaria de combater.
Todos somos heróis em nossa própria narrativa. Temos grandes princípios, causas nobres, pretextos reluzentes. O "mal" está sempre lá fora. Mas somos narradores hipermétropes: enxergamos melhor o que está longe do que o que está próximo, e mesmo o que está dentro. E bem pode ser que, em vez de Galahads e Siegfrieds, talvez sejamos apenas Quixotes fascinados com moinhos de vento, mais necessitados de paciência e compreensão do que de odes e louvores.

domingo, abril 30, 2017

Ainda estamos no mesmo barco...

A política é um campo de combate. E a política ideológica que hoje se advoga, alimentada por grandes princípios solenes como "Liberdade" e "Igualdade", é fundamentalmente moralista: é sempre feita contra alguém. Pode ser o privilegiado, o revolucionário, o estrangeiro, o pervertido, sempre alguém que encarna o pecado, a injustiça, o erro. Tão habituados estamos a essa linguagem de antagonista que podemos acabar esquecendo do óbvio: que estamos todos no mesmo barco, e que ainda existe uma coisa chamada condição humana, comum ao milionário e ao pobre, ao conservador e ao radical, ao cristão e ao muçulmano, ao dito "normal" e ao dito "desviante". Há também dor na "felicidade" que atribuímos a outros, como há alegrias e dignidade nos que julgamos sofredores. É algo que as simplificações ideológicas -- esses arremedos seculares da religião -- ignoram ou negam, o que as torna tão inferiores às visões mais espirituais.

 Esta mensagem de Neio Lúcio/Chico Xavier, do livro Jesus no Lar, nos relembra da humanidade comum de todos nós. Ela me deu muito o que pensar e por isso a reproduzo aqui.

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O apelo divino


 
Reunidos os componentes habituais do grupo doméstico, o Senhor, de olhos melancólicos e lúcidos, surpreendendo, talvez, alguma nota de oculta revolta no coração dos ouvintes, falou, sublime:
 
— Amados, quem procura o Sol do Reino Divino há de armar-se de amor para vencer na grande batalha da luz contra as trevas. E para armazenar o amor no coração é indispensável ampliar as fontes da piedade.
 
Compadeçamo-nos dos príncipes; quem se eleva muito alto, sem apoio seguro, pode experimentar a queda em desfiladeiros tenebrosos.
 
Ajudemos aos escravos; quem se encontra nos espinheiros do vale pode perder-se na inconformação, antes de subir a montanha redentora.
 
Auxiliemos a criança; a erva tenra pode ser crestada, antes do sol do meio-dia.
 
Amparemos o velhinho; nem sempre a noite aparece abençoada de estrelas.
 
Estendamos mãos fraternas ao criminoso da estrada; o remorso é um vulcão devastador.
 
Ajudemos aquele que nos parece irrepreensível; há uma justiça infalível, acima dos círculos humanos, e nem sempre quem morre santificado aos olhos das criaturas surge santificado no Céu.
 
Amparemos quem ensina; os mestres são torturados pelas próprias lições que transmitem aos outros.
 
Socorramos aquele que aprende; o discípulo que estuda sem proveito, adquire pesada responsabilidade diante do Eterno.
 
Fortaleçamos quem é bom; na Terra, a ameaça do desânimo paira sobre todos.
 
Ajudemos o mau; o espírito endurecido pode fazer-se perverso.
 
Lembremo-nos dos aflitos, abraçando-os, fraternalmente; a dor, quando incompreendida, transforma-se em fogueira de angústia.
 
Auxiliemos as pessoas felizes; a tempestade costuma surpreender com a morte os viajores desavisados.
 
A saúde reclama cooperação para não arruinar-se.
 
A enfermidade precisa remédio para extinguir-se.
 
A administração pede socorro para não desmandar-se.
 
A obediência exige concurso amigo para subtrair-se ao desespero.
 
Enquanto o Reino do Senhor não brilhar no coração e na consciência das criaturas, a Terra será uma escola para os bons, um purgatório para os maus e um hospital doloroso para os doentes de toda sorte.
 
Sem a lâmpada acesa da compaixão fraternal, é impossível atender à Vontade Divina.
 
O primeiro passo da perfeição é o entendimento com o auxílio justo...
 
Interrompeu-se o Mestre, ante os companheiros emudecidos.
 
E porque os ouvintes se conservassem calados, de olhos marejados de pranto, Ele voltou à palavra, em prece, e suplicou ao Pai luz e socorro, paz e esclarecimento para ricos e pobres, senhores e escravos, sábios e ignorantes, bons e maus, grandes e pequenos...
 
Quando terminou a rogativa, as brisas do lago se agitaram, harmoniosas e brandas, como se a Natureza as colocasse em movimento na direção do Céu para conduzirem a súplica de Jesus ao Trono do Pai, além das estrelas...



  

sexta-feira, março 24, 2017

A ilusão do conhecimento



E de repente o próprio conceito de vaidade intelectual ou mesmo o ideal do "gênio" soam ridículos:

"Apreciar a natureza comunitária do conhecimento pode revelar os vieses em como nós vemos o mundo. As pessoas amam os heróis. Nós glorificamos a força, o talento, a beleza. Nossos filmes e livros idolatram personagens que, como o Superman, podem salvar o planeta sozinhos. Os dramas televisivos apresentam detetives brilhantes e sutis que desvendam o crime e fazem a climática prisão final após um lampejo de percepção. Os indivíduos levam o crédito pelas grandes descobertas. Marie Curie é tratada como se tivesse trabalhado sozinha para descobrir a radioatividade, Newton como se tivesse descoberto as leis do movimento dentro de uma bolha. Todos os sucessos dos mongóis nos séculos XII e XIII são atribuídos a Genghis Khan, e todos os males de Roma na época de Jesus são frequentemente identificados com uma única pessoa, Pôncio Pilatos.

A verdade é que, no mundo real, ninguém opera em um vácuo. Os detetives têm equipes que fazem reuniões e pensam e agem como um grupo. Cientistas não apenas possuem laboratórios com estudantes que contribuem com ideias cruciais, mas também têm colegas, amigos e rivais que fazem trabalhos similares e pensam de forma similar, e sem os quais o cientistas não chegaria a lugar algum. E ainda existem outros cientistas que trabalham em questões diferentes, às vezes em campos diferentes, mas que mesmo assim abrem o caminho com seus achados e ideias. Uma vez que comecemos a considerar que o conhecimento não está todo na cabeça, [mas] que é compartilhado dentro de uma comunidade, nossos heróis mudam. Em vez de focar no indivíduo, começamos a focar em uma grupo mais amplo.”

Steven Sloman. The Knowledge Illusion (Kindle Locations 255-266). Penguin Publishing Group. Kindle Edition.

https://www.amazon.com/Knowledge-Illusion-Never-Think-Alone/dp/039918435X/ref=tmm_hrd_swatch_0?_encoding=UTF8&qid=1490409591&sr=1-1

segunda-feira, janeiro 30, 2017

O aborto e a linguagem dos direitos




Há algum tempo, comprei Defenders of the Unborn: The Pro-Life Movement Before Roe v. Wade, de Daniel K. Williams.  Como o nome diz, é a história do movimento de oposição ao aborto antes da legalização da prática nos EUA pela Suprema Corte, em 1973. Das teses que o autor apresenta na introdução, uma me chamou muito a atenção: o movimento "pró-vida" não nasceu entre os conservadores americanos, como se poderia imaginar pelo seu perfil atual. Pelo contrário, era um movimento de raízes no liberalismo progressista católico, afinizado com os ideais do New Deal e da defesa de um Estado de bem-estar social. E mais do que isso: o discurso que ele empregava não era o da fé, simplesmente, mas o do ideário dos direitos humanos, dos quais o mais fundamental é o da vida. A mesma visão que propunha que era do interesse da sociedade (e, portanto, do Estado) zelar pela proteção dos direitos básicos dos indivíduos numa sociedade livre, estendia essas garantias ao feto. Para tanto, falava-se até mesmo -- coisa muito cobrada em debates no Brasil -- sobre a obrigação do Estado interferir para que as mulheres que precisassem recebessem algum tipo de ajuda financeira para não se verem obrigadas a escolher entre um aborto e a miséria. As duas questões apareciam ligadas: o direito do feto à vida e o direito das mulheres como cidadãs (e, por conseguinte, o dever do Estado) de serem também acolhidas e cuidadas quando não pudessem contar com seus próprios recursos.

Apesar da influência católica original, que vinculava a questão do aborto à luta contra os métodos anticoncepcionais, foi essa formulação liberal que permitiu alianças com outros grupos, como judeus e protestantes, dando ao movimento  um diversidade considerável tanto no espectro religioso quanto social e político. E foi isso que lhe permitiu derrubar inúmeras iniciativas de legalização do aborto em vários estados americanos até 1972, quando então a interferência da Suprema Corte virou o jogo e, mais adiante, jogaria o movimento nos braços da direita política.


Mas não é só isso. Segundo Williams, o movimento pró-aborto (que ainda não se chamava "pro-choice", pró-escolha) até certa altura dos anos 60, também tinha uma argumentação diferente. Ou melhor, diferente da que deve ser dominante nos EUA, pois é muito familiar a quem acompanha esse assunto no Brasil: a saúde pública. Por essa ótica, a legalização do aborto tinha um caráter utilitário; só depois, em fins da década, é que a defesa da prática seria formulada e difundida como uma questão de autonomia individual e igualdade entre os sexos. A partir daí, a linguagem dos direitos deixa de ser exclusiva dos "pró-vida" e é adotada também pelos seus oponentes.

Essa questão me fez pensar na importância fundamental da linguagem nas disputas políticas. Em uma democracia liberal, existem palavras-chave muito poderosas, difíceis de contestar no âmbito conciso e emocionalmente carregado das grandes discussões. Não por acaso, mesmo o mais linha-dura dos conservadores fala tanto em "liberdade", ou o mais autoritário dos radicais adora falar em "direitos" e "justiça". Quem é contra essas coisas? E até provar que a "liberdade" do linha-dura e a "justiça" do radical não são o que parecem, muita retórica já foi gasta. Como naquela anedota acusatória, "O senhor já parou de bater na sua mulher?", quem define os termos do debate praticamente já o venceu. É sugestiva, por exemplo, a terminologia dos partidários da legalização: "direitos reprodutivos", "direito ao aborto", "direito ao corpo", "interrupção da gravidez". Não é preciso ser um ás da semiótica para ver que, nessa terminologia aparentemente técnica, há um grande ausente: o feto, que não é considerado. O lado "pro-choice" apresenta a questão em termos apenas da mulher individualmente, o que qualifica a oposição como alguém que se opõe não ao aborto apenas, mas aos "direitos da mulher". Esse é um dos clichês dos defensores da legalização hoje em dia: o lado "pró-vida" é frequentemente acusado de querer apenas controlar os corpos das mulheres, negar-lhes a autonomia dada aos homens. Noutras palavras, o debate sobre o aborto "na verdade" seria outra coisa, uma disputa de poder entre homens e mulheres. O que deveria ser a questão principal, se o feto tem ou não um "direito à vida" que deva ser protegido, fica ofuscado pela guerra dos sexos. E assim o debate degenera, pois a atenção é constantemente desviada para outras coisas.

(E sim, pode-se aplicar o mesmo exame ao outro lado, embora não me ocorram terminologias equivalentes. O lado "pró-vida" de hoje, pelo menos o que vejo dele, aparentemente está mais preocupado em chocar com imagens de fetos dilacerados do que em traduzir seus princípios de forma mais intelectualizada.) 

Claro está que esses desvios não se dão por pura malícia. Hoje, tanto no Brasil quanto nos EUA, muitos opositores à legalização são líderes religiosos que também defendem opiniões um tanto tacanhas de mundo -- nossa bancada evangélica no Congresso não me deixa mentir.  Então, não necessariamente é incorreto dizer que a disputa entre os dois lados acaba envolvendo assuntos além do aborto em si, mesmo descontando a conveniência retórica. Porém, o livro de Williams sugere que isso é contingente: nos EUA, o movimento "pró-vida" não estava predestinado a cair nas mãos de conservadores e reacionários -- aliás, mesmo hoje  ele de maneira alguma se reduz a esse pessoal --, assim como, e aqui eu falo por mim, tampouco o "pró-escolha" necessariamente representa um avanço da liberdade e do esclarecimento da humanidade. Uma maior consciência do caráter histórico desses movimentos e do debate que promovem, de como chegaram às suas formas atuais e das escolhas feitas em suas trajetórias, pode ajudar a entender a disputa em torno do aborto de uma maneira nova, menos sectária. Não que isso vá "resolver" o dilema ético representado pelo aborto, mas certamente contribui para que tenhamos um debate público mais civilizado e honesto, onde a perspectiva do outro não é descartada aprioristicamente ou reduzida a más intenções.  

sábado, janeiro 28, 2017

O falso "Decálogo de Lênin" e a câmara de eco ideológica da Internet

Como jornalista de primeira formação e historiador, fui treinado para lidar com fontes. Por "lidar", entenda-se analisá-las e verificar sua credibilidade, além de, quando possível, compará-la com outras, independentes, que a corroborem ou não. Parece uma coisa básica, quase de senso comum -- claro, não me refiro a quem trabalha em área superespecializadas --, mas cuja importância é imensa. Por isso mesmo, dói ver o quanto esse cuidado básico com as informações que nos chegam fazem falta, especialmente na Internet das redes sociais. Boatos e mentiras deliberadas surgem num ponto e começam a ser repetidas indefinidamente numa câmara de eco onde o mais importante não é a verdade, mas a confirmação das próprias opiniões.

Assim, é muito preocupante que um número cada vez maior de pessoas use a Internet para se informar sem qualquer preparo para saber o que é ou não digno de confiança. Já postei sobre isso outras vezes, e o assunto virou um dos clichês no meu Facebook. Pessoas excelentes, bem intencionadas, acabam acreditando nas maiores barbaridades e, pior ainda, passando-as adiante sem noção do mal que podem estar fazendo. Difamação, calúnia, boatos alarmistas, campanhas políticas disfarçadas, tudo vale na era da "pós-verdade".  



Um desses boatos que se eternizam é o tal "Decálogo de Lênin", uma espécie de "dez mandamentos da maldade política" que, na última busca que diz, rendeu 68.400 resultados no Google. Não os examinei todos, obviamente, mas notei que o assunto é especialmente em blogs da direita ideológica, da ala marcada pelo anticomunismo exacerbado e, infelizmente, por uma tendência ao conspiracionismo. É o pessoal que fala de "marxismo cultural" como motor da história recente, em que tudo que não lhes agrada -- movimentos identitários, direitos humanos, instituições internacionais -- é efeito de uma terrível conspiração da esquerda. Enfim, um estilo de ver as coisas que tem uma longa trajetória, pelo menos desde a Revolução Francesa, passando, claro, pelos Estados Unidos, hoje talvez a maior fonte de teorias da conspiração em todo o mundo.

Pois bem, o tal decálogo se trai pela própria linguagem. Mesmo que o leitor não saiba nada sobre sua história, o próprio texto mostra uma contradição patente: o autor parece muito cônscio está fazendo o mal. Logo no primeiro item, lê-se:

1. Corrompa a juventude e dê-lhe liberdade sexual.

Ora, o decálogo é supostamente escrito por um revolucionário, alguém que dedica a vida a uma causa. Isso, obviamente, porque ele a considera justa, isto é, conducente a um mundo melhor. Aos seus próprios olhos, a corrupção é aquilo contra o que ele luta, não o que ele almeja. Portanto, que tipo de líder revolucionário iria se dirigir aos seus colegas de luta, que acreditam no que ele acredita,  nesses termos, de corromper a juventude? Que tipo de idealista considera que sua tarefa é uma corrupção? 

Nem vou entrar no mérito da liberdade sexual, que, até onde sei, nunca foi preconizada pelos bolcheviques, muito menos igualada a uma corrupção que tivesse serventia revolucionária. Se Lênin a pregava, seria interessante ver em que momento o seu partido a aplicou quando chegou ao poder, porque é de poder que se trata, e como o sexo livre iria derrubar o Czar em empoderar os trabalhadores é uma questão no mínimo controversa. Mas isso significaria exigir do defensor do decálogo que estudasse para demonstrar sua realidade, o que provavelmente é exigir muito.

Não vou examinar item a item, o que seria exaustivo. Mas deixo aqui dois links, um em português e o outros em inglês, que mostram as verdadeiras origens do texto (e suas variações). Pelo que parece, até pastores evangélicos participaram da criação do "decálogo" ao longo do tempo:

Finalizando, é preciso constantemente reafirmar o perigo que esse tipo de tolice representa. Ao criar inimigos fantasiosos e onipresentes, quase sobre-humanos em sua perversidade, como os extremos do espectro político sempre fazem, cria-se uma sensação de insegurança que facilmente leva ao ódio e ao desejo por um líder "forte" que nos salve. Ditaduras se alimentam desse tipo de disposição, pouco importando se o "inimigo" é o judeu, o capitalismo internacional ou o comunismo. Existe no Brasil uma verdadeira indústria, hoje mais notável à direita do espectro, de conspiracionismo e mentiras sistemáticas, que disseminam as maiores barbaridades para melhor difundir certas ideias e crenças. Isso era coisa de nicho, mas agora espraia-se por todo lado: vejo alunos meus, de 15 anos, falando nos perigos da "nova ordem mundial" e coisas do gênero. Com o acirramento da disputa política no Brasil, esse tipo de coisa está ganhando espaço e rumando para a "normalização", o que é pésismo. Se nos Estados Unidos, onde os recursos são maiores, esse tipo de coisa -- em grande parte lá produzida e difundida em programas de rádio, vídeos de Internet, websites etc. -- isso já pode ter pesado numa eleição presidencial, que se dirá aqui, onde os níveis educacionais são terríveis mesmo entre aqueles que tiveram estudo formal. Onde os ignorantes pululam, o mal só precisa de uma faísca.

sábado, dezembro 17, 2016

O monopólio de virtude numa democracia






Sobre um dos vícios que dificultam a compreensão do que é viver numa democracia real: