sexta-feira, outubro 30, 2020

"Esclarecimento" (ou uma visão espírita de religião e política)



Você pergunta, meu amigo, pelas razões que nos levam a escrever tanto.

 Não deveríamos procurar a Corte Celestial para repouso? Teríamos tamanha saudade da tarefa humana, a ponto de reabsorver-lhe, voluntariamente, as angústias? A seu ver, o sepulcro seria o caminho ideal para o esquecimento absoluto.

 Até aí, sua indagação se perde no domínio das coisas vulgares. Ocioso inquirir de um homem comum, quanto aos motivos que o compelem a trabalhar pela garantia da própria felicidade.

 Seu inquérito, contudo, vai mais além. Deseja saber por que nos dedicamos ao assunto religioso.

— “Todos os Espíritos desencarnados — alega, espantadiço — se empenham na difusão dos princípios de fé e caridade. Emparelham-se com os pregadores insistentes do alto dos púlpitos. Não possuiremos suficiente número de ministros e padres no mundo?”

 Equivoca-se em semelhante generalização. Nem todos os desencarnados se consagram, ainda, a serviço tão nobre. Milhões deles permanecem imantados à Crosta do Mundo, impedindo o progresso mental das criaturas que lhes são afins. Preferem a discórdia e a malícia, como autênticos demônios soltos, e, quando podem, chegam a destilar venenos cruéis, através de escritores invigilantes. Mantêm a ignorância de muita gente, a respeito da eternidade, para melhor se acomodarem às reclamações da inferioridade em que se comprazem.

 No entanto, não é para comentar as perturbações da nossa esfera de ação que lhe escrevo esta carta.

 Refere-se você à religião, como se a fé representasse bolorento asilo para Espíritos inválidos. Certamente envolvido na onda turbilhonária que agita o oceano de nossa civilização decadente, também você penhorou o raciocínio nas ilusões do homem econômico.  Crê possível a regeneração do mundo, de fora para dentro, e dar-se-ia, talvez, de bom grado, a qualquer renovador sedento de sangue que prometesse um mundo reformado por decretos que se vão caducando, de cinco em cinco anos.

 Dentro de tal clima, não pode compreender o serviço religioso. Admite que um pomar se mantenha e produza sem a sementeira? Persistiria a vida humana sem o altar da maternidade?

 O castelo teórico e o campo da experimentação prática, em que se assentam os princípios filosóficos e científicos da Terra, não se sustentariam sem a fonte oculta e invisível da mística religiosa.

 Somente o ser privado de razão consegue movimentar-se sem raízes na espiritualidade superior.

 Os grandes escritores, supostamente materialistas, que você menciona com indisfarçável prazer, não foram senão atletas do pensamento em conflito com as imposições do sacerdócio organizado. Não hostilizavam Deus, objeto sagrado de seus estudos e cogitações. Combatiam os processos infelizes, muita vez usados pelos homens de má-fé, para situarem o Eterno e Supremo Senhor na ordem política. No fundo, identificavam a luz divina, na própria lâmpada de intelectualidade que lhes aclarava a mente.

 A religião é chama sublime, congênita na criatura. Todas as noções de direito no mundo nasceram à sua claridade e todas as secretarias de justiça, nos mais diversos países do Globo, devem a ela sua procedência.

 Quando o primeiro selvagem compreendeu que lhe competia respeitar a taba do irmão, tal entendimento ter-lhe-ia surgido, à face da gloriosa visão do céu, recolhendo, através da contemplação do Sol e das estrelas, da sombra e da tempestade, a primitiva ideia de Deus.

 Subtrair o pensamento religioso da experiência humana seria o mesmo que desidratar o corpo da Terra. Sem a água divina da espiritualidade, qualquer construção planetária se destina a irremediável secura. Conseguirá você viver exclusivamente no deserto?

 O homem poderá rir com Voltaire, estudar com Darwin, filosofar com Spinoza, conquistar com Napoleão, teorizar com Einstein, ou mesmo fazer teologia com São Tomás; entretanto, para viver a existência digna, há que alimentar-se intimamente de princípios santificantes, tanto quanto entretém o corpo à custa de pão. Quem não dispõe do divino combustível para uso próprio, recorre inconscientemente às reservas alheias, porquanto, não existe idealismo superior que não tenha nascido da atividade espiritual e, sem ele, o conceito de civilização redunda em grossa mentira.

 Não sorria, pois, usando o sarcasmo, perante aqueles que consagram o tempo ao ministério religioso.

 Com os cientistas modernos, vocês poderão entrevistar o átomo, fotografar a célula e positivar a curvatura do espaço… Há muita gente na América que já pensa em pedir às autoridades administrativas da política dominante a reserva de terrenos na Lua, considerando o desenvolvimento dos veículos a jato…

 Poderão cogitar de tudo isto, mas não deslocarão a ideia religiosa em um milímetro, sequer, de rota. A fé representa claridade de um sol que ilumina o espírito humano, por dentro, e, sem essa claridade no caminho, o Planeta poderia perder, em definitivo, a esperança num futuro melhor.

 Quanto ao fato de demorar-me, por algum tempo, na atualidade, entre admiráveis amigos que cogitam de servir, depois da morte, ao Cristianismo renascente, creia que isto ocorre por gentileza deles e não por merecimento de minha parte.  Não sou nenhum Livingstone em áfricas do “outro mundo”. Quem define o meu caso, com paciência, é o nosso velho sábio Shakespeare. Disse ele, certa vez, que “quando Deus nos vê endurecidos no mal, cerra-nos os olhos para a imundície e nos obscurece o juízo, de modo que chegamos a adorar os nossos desvarios e a zombar de nós mesmos, caminhando, cheios de cegueira e de orgulho, para a perdição”. Segundo depreende, sou um enfermo à procura de melhoras.

 Embora desencarnado, não posso saber se você guarda saúde integral. Creio, porém, que, se algum dia atingir a infelicidade a que cheguei, não deixará de fazer conforme estou fazendo.


Irmão X ("Luz Acima", psicografia de F. C. Xavier, 1947).

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