Há alguns anos, depois de passar dias incomodado por uma sessão do excelente O Pianista, prometi a mim mesmo que jamais veria outro filme sobre o Holocausto. Quase quebrei a promessa quando vi Um Homem Bom, uma história espetacular sobre dilemas morais e autoilusão, mas o Holocausto só aparece explicitamente bem no final. Acabei vendo Os Falsários por insistência de um amigo, e a promessa ganhou sua primeira quebra de fato. De lá para cá, nem Bastardos Inglórios entrou no meu cardápio cinematográfico, embora goste do humor negro do Tarantino; simplesmente não tinha estômago para o assunto. O motivo era o mais prosaico da terra: não queria sair do cinema com o mal-estar que O Pianista causou.
Eis que agora me vejo dando um "laboratório" -- ou seja, um curso para muito menos alunos -- sobre genocídio e não-violência, e, claro, o dito cujo é inevitável. Desta vez, porém, em vez de histórias individuais trágicas, minha companhia foi um historiador, meu quase xará Roderick Stackelberg, autor de A Alemanha de Hitler: Origens, Interpretações, Legados. Trata-se de um grande panorama, incluindo até mesmo os debates sobre a culpa que marcaram a historiografia alemã nas décadas após a guerra, e como eles foram influenciados pelo contexto da Guerra Fria e a competição ideológica entre as duas Alemanhas. Para mim, contudo, o que interessou mesmo foram os capítulos sobre as leis de perseguição aos judeus e sobre o Holocausto em si. Alguns pontos me chamaram a atenção e até agora me intrigam.
Dos seis milhões de judeus que teriam sido assassinados pelos nazistas, mais ou menos 1,5 milhão foi eliminado fora dos campos de extermínio, em fuzilamentos ao ar livre nos territórios que as tropas alemãs foram conquistando. Boa parte morreu na antiga União Soviética, campo de ação dos temíveis Einsatzgruppen: quatro grupos de elite de 750 homens cada, que iam atrás das tropas regulares fazendo a "limpeza" de "oponentes ideológicos" nas áreas conquistadas -- leia-se judeus e membros de qualquer coisa que pudesse sugerir algum tipo de liderança, como quadros do Partido Comunista. Portanto, os nazistas não assassinavam apenas por motivos "raciais", mas também táticos: era preciso destruir a elite do país invadido, como clérigos, intelectuais e políticos (fizeram isso na Polônia, por exemplo). No caso dos Einsatzgruppen, nem sempre era necessário executar diretamente as vítimas; às vezes, o método usado era incentivar os preconceitos antissemitas locais, induzindo os moradores aos chamados pogroms. Num desses, 1500 judeus perderam a vida linchados pelos seus próprios compatriotas.
Notável também era a eficiência desses grupos. Embora eles não tivessem a rapidez do conjunto dos tenebrosos campos de extermínio, podiam alcançar níveis de matança impressionantes. No famoso massacre de Babi Yar, o Einsatzgruppe C matou 33.371 pessoas em dois dias! Dá uma média de 44 pessoas por cada membro -- mais do que a grande maioria dos assassinos seriais sonha em matar ao longo de toda a sua carreira. E isso, deve-se ressaltar, em execução fria, não em combate.
Naturalmente, tantas mortes cobram um preço e foi isso que mais me intrigou. Ao contrário do estereótipo do nazista sádico, essas execuções em grande escala afetavam os perpetradores. Pesadelos e alcoolismo eram cada vez mais comuns; o próprio Himmler, comandante da SS, passou mal ao ver a quantidade de sangue em um desses locais de assassinato em massa. A natureza da tarefa, diz Stackelberg, corroía a eficiência dos envolvidos -- e confesso que isso me aliviou um pouco. Claro que não muda o fato de que eles continuaram enquanto puderam, mas saber que eles também eram suscetíveis a trauma nos recorda que estamos tratando de seres humanos aqui, apesar de tudo. E isso me deixou curioso. Já tinha lido alguma coisa sobre o impacto que matar outra pessoa tem sobre militares -- esta é a referência que me ocorre --, mas infelizmente não tenho tido muita disponibilidade para pesquisar o assunto, e a rigor ainda não tenho. Mas acho que vou dar uma olhada nalguns outros livros que tenho por aqui. Sempre ouvi que um dos efeitos colaterais da tortura é que ela também brutaliza o torturador; não há por que isso não se aplique também a genocidas, isto é, aos executores do genocídio, aqueles que efetivamente sujam as mãos na tarefa.
Mais um ponto para uma extensa lista de interesses.
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