quinta-feira, junho 16, 2011

O Cristianismo como um ideal, não como casuística

Lendo O Reino de Deus Está Dentro de Vós, de Tolstói, uma das obras que mais contribuíram para a formação de Gandhi. Um trecho em particular me chamou muito a atenção e, creio, me iluminou o sentido do desafio representado não só pela moral cristã, mas por sua similares noutras culturas. Divido com vocês:

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A doutrina de Cristo não parece excluir a possibilidade da vida, senão quando é considerada como regra aquilo que é apenas a indicação de um ideal. Só neste caso os preceitos de Cristo parecem inconciliáveis com as necessidades da vida, enquanto, ao contrário, só eles oferecem a possibilidade de uma vida justa.

“Não se deve pedir demais, dizem os homens freqüentemente, discutindo as exigências da doutrina cristã. Não se pode deixar de pensar no amanhã, como está dito no Evangelho, mas é preciso também não se preocupar demais; não se pode dar tudo aos pobres, mas é preciso dar-lhes com moderação; não se pode guardar uma castidade absoluta, mas é preciso fugir da depravação; não é preciso abandonar a mulher e filhos, mas não é preciso ter por eles um amor exclusivo demais etc."

Falar assim, é como dizer a um homem, que atravessa contra a correnteza um rio veloz, que ele não deve remar assim, mas em linha reta em direção ao ponto da margem que deseja alcançar.

A doutrina de Cristo distingue-se das antigas doutrinas no fato de dirigir os homens não com regras externas, mas com a consciência que têm da possibilidade de alcançar a perfeição divina. E a alma humana não contém regras moderadas de justiça e filantropia, mas o ideal da perfeição divina, inteira e infinita. Só a busca desta perfeição modifica o curso da vida humana, do estado animal ao estado divino, tanto quanto isto é humanamente possível.

Para chegar ao lugar desejado, é preciso dirigir-se, com todas as forças, a um ponto muito mais alto.

Baixar o nível do ideal é não só diminuir as probabilidades de alcançar a perfeição, mas destruir o próprio ideal. O ideal que nos atrai não foi inventado por ninguém; cada homem traz no coração. Só este ideal de absoluta e infinita perfeição nos seduz e nos atrai. Uma perfeição possível perderia qualquer influência sobre a alma humana.

A doutrina de Cristo tem grande poder exatamente porque requer a perfeição absoluta, isto é, a identificação do sopro divino que se encontra na alma de cada homem com a vontade de Deus, identificação do filho com o Pai. Libertar do animal o filho de Deus que vive em cada homem e aproximá-lo do Pai, apenas nisto está a vida, segundo a doutrina de Cristo.

A existência apenas do animal, no homem, não é a vida humana. A vida, somente segundo a vontade de Deus, tampouco é a vida humana. A vida humana é o conjunto da vida divina e da vida animal e, quanto mais este conjunto se aproxima da vida divina, mais é vida.

A vida segundo a doutrina cristã é o caminho para a perfeição divina. Nenhum estágio, conforme esta doutrina, pode ser mais alto ou mais baixo do que o outro. Cada estágio não é senão uma etapa para uma perfeição irrealizável e, por conseqüência, não constitui por si só um grau mais ou menos alto da vida. O aumento da vida é apenas uma aceleração do movimento em direção à perfeição. Por isso o ímpeto para a perfeição do coletor de impostos Zaqueu, da pecadora, do ladrão na cruz constitui um mais alto grau da vida do que a imóvel infalibilidade do fariseu. Por isso não podem existir regras obrigatórias para esta doutrina. O homem colocado num grau inferior, caminhando em direção à perfeição, tem uma melhor conduta moral,observa mais a doutrina do que o homem colocado num grau bem mais alto, mas que não se encaminha para a perfeição.

É neste sentido que a ovelha desgarrada é mais cara ao Pai do que as outras; o filho pródigo, a moeda perdida e reencontrada são mais amados do que aqueles que nunca foram considerados perdidos.

O cumprimento da doutrina está no movimento do eu em direção a Deus. É evidente que isto não pode ter leis ou regras determinadas. Qualquer grau de perfeição ou imperfeição é igual frente a esta doutrina, cujo cumprimento não se constitui na obediência a lei alguma; por isso não podem existir regras ou leis obrigatórias.

Desta diferença radical entre a doutrina de Cristo e todas aquelas que a precederam, baseadas sobre o conceito social da vida, resulta também a diferença entre as leis sociais e os preceitos cristãos.

As leis sociais são, em sua maioria, positivas, recomendando certos atos, justificando e absolvendo os homens. Ao contrário, os preceitos cristãos (o mandamento do amor não é um preceito no verdadeiro sentido da palavra, mas a expressão do próprio sentido da doutrina), os cinco mandamentos do Sermão da Montanha são todos negativos e não indicam senão aquilo que, num certo grau de
desenvolvimento da humanidade, os homens não mais devem fazer. De qualquer forma, estes preceitos são como pontos de encontro na rota infinita da perfeição, em cuja direção caminha a humanidade, e os graus de aperfeiçoamento acessível num dado período de desenvolvimento.

No Sermão da Montanha, Cristo mostrou simultaneamente o ideal eterno ao qual os homens devem aspirar e os graus que já podem alcançar em nossos dias.

O ideal é não desejar fazer o mal, não provocar a male-volência, não odiar o próximo. Quanto ao preceito que indica um dos graus abaixo do qual não se pode mais descer para alcançar este ideal, este é o da proibição de ofender os homens com a palavra. E este é o primeiro mandamento.

O ideal é não se preocupar com o amanhã e, sim, viver o presente. O mandamento que indica outro grau abaixo do qual não se pode descer é não jurar, nada prometer para amanhã. E este é o terceiro mandamento.

O ideal é nunca usar a violência para qualquer fim. O mandamento que indica um outro grau abaixo do qual não se pode descer é não pagar o mal com o mal, sofrer a ofensa, dar a própria veste. E este é o quarto mandamento.

O ideal é amar aqueles que nos odeiam. O mandamento que indica mais outro grau abaixo do qual não se pode descer é não fazer mahaos próprios inimigos, falar bem deles, não fazer diferença entre eles e os amigos. E este é o quinto mandamento.

Todos estes mandamentos são indicações daquilo que, na rota da perfeição, não mais devemos fazer, daquilo que agora nos devemos esforçar para transformar, pouco a pouco, em hábitos instintivos; mas, longe de constituir a doutrina de Cristo e de contê-la por inteiro, estes mandamentos são apenas uma das inúmeras etapas na rota da perfeição. E devem ser seguidos por mandamentos sempre superiores.

Por isto, cabe à doutrina cristã formular exigências mais altas que as expressas por estes mandamentos, e não diminuí-los, como pensam os homens que julgam esta doutrina sob o ponto de vista do conceito social da vida.

Um comentário:

Priscila disse...

Difícil é colocar isso na veia... rs
bjs,
P.