quarta-feira, junho 29, 2011
Aviso aos comentaristas
terça-feira, junho 28, 2011
Pedófilo por acidente
| ||||||
Pedófilo por acidente | ||||||
Um tumor ou um trauma podem alterar a personalidade, fazendo com que pessoas se tornem, de uma hora para outra, violentas e apresentem compulsões sexuais desenfreadas | ||||||
por Daniela Ovadia | ||||||
Para proteger a filha, a mulher prestou queixa: o marido, abordado na saída da escola, acusado de assédio sexual de menor, foi detido e processado. No decorrer da audiência, C. contou sobre seu interesse por pornografia, que surgira pela primeira vez durante a adolescência, mas negou terminantemente ter tido impulsos pedófilos antes, salvo nos últimos meses. “Estou desesperado”, disse ao juiz. “Sei que o que fiz é horrível, mas não consigo entender. Sempre gostei de revistas pornográficas, como muitos homens, mas isso nunca interferiu na minha vida pessoal, no meu casamento, tampouco na minha relação com minha enteada, que considero como uma filha, ou com meus alunos. Há alguns meses, porém, não consigo me controlar: sou atraído por sites pedófilos e, pela primeira vez na vida, procurei uma prostituta. Juro que não queria, mas não pude me conter.” O juiz decretou seu afastamento da casa e a obrigação de frequentar, como alternativa à prisão, um centro de reabilitação para maníacos sexuais, que dispunha de um programa de acompanhamento psicológico com 12 sessões. Além disso, foi imposto a C. um tratamento farmacológico com medroxiprogesterona, hormônio que inibe o impulso sexual masculino. Embora o professor desejasse com todas as suas forças evitar a prisão, era preciso reconhecer que após os primeiros meses de tratamento a situação não havia melhorado: quando começou a molestar os pacientes e o pessoal do centro de reabilitação, o juiz revogou a medida alternativa e decretou que ficasse detido. | ||||||
Na noite anterior à prisão, em janeiro de 2000, C. queixou-se de forte dor de cabeça e foi levado ao pronto-socorro. O médico de plantão considerou a hipótese de que a queixa fosse uma simulação para evitar a detenção; mesmo assim o internou no setor de psiquiatria com o diagnóstico de pedofilia. No dia seguinte, porém, o paciente caiu enquanto tomava banho, e foi requisitada a presença de um neurologista para examiná-lo. O especialista encontrou um quadro clínico realmente grave. Deitado no chão, imerso na própria urina, C. gritava e se debatia, convidando as enfermeiras e outras funcionárias que passavam a manter relações sexuais com ele. Também apresentava alguns sinais neurológicos, como pequena inclinação do lábio para a esquerda, acompanhada por uma série de reflexos patológicos: indício de comprometimento do córtex cerebral frontal. Uma anamnese mais cuidadosa revelou que as dores de cabeça haviam surgido dois anos antes, mais ou menos na mesma época das primeiras pulsões pedófilas. Os médicos solicitaram a realização de um exame de ressonância magnética, que revelou a presença de um grande tumor na fossa craniana anterior. A massa se deslocava e comprimia o lobo frontal direito. C. era capaz de ler, mas sua escrita era incompreensível; além disso, mostrava sinais de apraxia, isto é, a incapacidade de executar movimentos coordenados que em geral são controlados exatamente pelo lobo frontal. | ||||||
Entretanto, em outubro de 2001 a dor de cabeça voltou – e com ela a tendência a acumular material pornográfico: porém, desta vez C. sabia do que se tratava e foi diretamente ao hospital. O exame de ressonância confirmou a suspeita: o tumor voltara. Uma segunda cirurgia, realizada em fevereiro de 2002, foi bem-sucedida – e novamente desapareceu o apetite sexual exacerbado. O caso de C., publicado pela revista médica Archives of Neurology, atraiu a atenção de neurocientistas de vários países, em particular daqueles que estudam a consciência (a função da mente destinada à interação com o ambiente e com o próximo e, sobretudo, à determinação do comportamento individual). Que o córtex – e em particular a área pré-frontal – desempenha um papel fundamental no controle das pulsões é notório há quase 150 anos. Em 1848, o operário Phineas Gage, homem tranquilo, honrado e religioso, foi atingido por um pedaço de metal que se instalou em seu lobo frontal em consequência de um acidente de trabalho. Gage sobreviveu, mas sua personalidade mudou radicalmente: tornou-se violento, desbocado, e sua conduta moral passou a ser duvidosa. Este caso clássico possibilitou o surgimento das neurociências modernas, que atribuem função precisa para cada área cerebral. | ||||||
A situação vivida por C., porém, pertence a outra categoria. Ele não apresenta alteração da consciência em relação ao reconhecimento do que é certo ou errado. Então, como é possível que uma doença mude radicalmente a personalidade de um homem, a ponto de fazer com que cometa atos que ele próprio considera abomináveis? Que sentido tem o livre-arbítrio se uma alteração química no cérebro pode transformar uma pessoa com princípios éticos em um criminoso? Se somos realmente determinados pelo nosso cérebro, que sentido tem a moral, compreendida como criação do intelecto? Enfim: seria possível punir alguém por uma ação fraudulenta? Os cientistas da mente questionam acerca desses pontos, em particular os pesquisadores que se dedicam ao estudo da consciência. A respeito disso, o biofísico Francis Crick (1916-2004), Prêmio Nobel em 1962 pela descoberta da dupla hélice de DNA, afirmou: “Nosso senso de identidade pessoal e de livre-arbítrio não são outra coisa senão o resultado do comportamento de um grande número de células neurais e de moléculas associadas a elas”. Crick foi personagem muitas vezes controverso devido a suas posições radicais em defesa de uma biologia essencialmente materialista, mas outro grande neurocientista e também filósofo, Daniel Dennett, atualmente professor da Universidade Tofts, nos Estados Unidos, trabalhou com ele em uma série de experiências conduzidas com o objetivo de estabelecer o quanto de “voluntário” existe nas decisões que tomamos. Para estudar este momento crucial da consciência, os experimentadores submeteram um grupo de voluntários a uma ressonância magnética funcional, pedindo a eles que mexessem em determinados momentos o pulso de uma mão, e um relógio indicava o momento exato em que decidiam executar o movimento. O exame de imagem revelou que a ativação das áreas motoras pré-frontais, consideradas a “sede da vontade”, precede em cerca de 200 milésimos de segundo – um piscar de olhos – o momento em que o indivíduo tem realmente consciência de ter tomado uma decisão. Traduzindo: segundo os autores, a experiência demonstra que é o nosso cérebro que decide por nós – e não nós por ele. E o que o professor C. tem a ver com tudo isso? Certamente no seu caso a “decisão” de se tornar pedófilo foi tomada pelo cérebro, ou melhor, pela alteração provocada pela patologia. | ||||||
O futuro imaginado C. faz parte de um restrito círculo de pessoas que conseguiram demonstrar que não são responsáveis por um delito, embora tivessem consciência dele. Na prática, uma variante muito complexa da incapacidade de compreender e querer, porque os criminosos, nesses casos, entendem e desejam, mas o problema é que são guiados por seu cérebro doente. Psicólogos, em geral, chamam a atenção para o fato de o paciente gostar de pornografia, embora de maneira branda, mesmo antes de ficar doente, o que pode nos levar a considerar que a doença apenas teria “liberado” uma pulsão preexistente. Segundo o neurocientista britânico Steven Rose, o ser humano é determinado não só pela própria natureza biológica, mas também pela interação dela com o ambiente, em um delicado equilíbrio que ele define como “biossocial”. Na opinião de Rose, na prática, o cérebro tem a possibilidade de imaginar o futuro e, portanto, tomar decisões, considerando as consequências dos atos. “Vivendo como fazemos, na interface de múltiplos determinismos, nos tornamos capazes de construir o nosso futuro, mas sempre no âmbito de circunstâncias que não temos o poder de escolher”, disse Rose, que também aplicou ao caso de C. a teoria do livre-arbítrio do filósofo escocês David Hume. O pensador considerava o ser humano ao mesmo tempo livre e predeterminado. Para Hume, um pedófilo está predisposto a agir como tal por estar sujeito a intensos impulsos mas, se não for louco – em algum nível – tem a capacidade de evitar as tentações, ou pelo menos buscar ajuda para evitá-las. | ||||||
Cérebros em busca de problemas | ||||||
Em 1979, Dan White, que matou a tiros o prefeito de São Francisco e seu assistente, foi condenado por homicídio culposo – não intencional –, pois seu advogado demonstrou que o acusado havia ingerido uma quantidade excessiva de doces e refrigerantes pouco antes do delito. A glicemia elevada teria feito com que ele perdesse o controle. Em 1995, o advogado William Aramony, dirigente de uma associação de caridade, foi acusado do roubo de centenas de milhares de dólares. O advogado alegou não ter sido Aramony o autor do roubo, mas sim seu cérebro, pois nos últimos dez anos havia sofrido diversos traumas cranianos, comprovados por exames de ressonância magnética. O promotor preferiu fazer um acordo a correr o risco de ver o acusado ser absolvido pelo júri popular. Em 2001, o inglês Stephen Tame caiu de um andaime e sofreu um trauma violento, que o obrigou a um longo período de internação devido a ferimentos pelo corpo e problemas neurológicos. Seu comportamento mudou repentinamente: de marido fiel se transformou em um maníaco por sexo, continuamente à procura de prostitutas. Depois que sua mulher, cansada das contínuas traições e das pretensões do insaciável marido, pediu o divórcio, Tame pleiteou uma indenização milionária à empresa para a qual trabalhava. Meses depois, um tribunal inglês reconheceu a legitimidade do caso. | ||||||
|
domingo, junho 26, 2011
Dr. Heidegger's Experiment
terça-feira, junho 21, 2011
A importância das palavras
| ||||||
Precisamos de palavras para pensar? | ||||||
O que ouvimos ou escolhemos dizer afeta a intensidade de nossas ondas cerebrais | ||||||
Qualquer que seja o caso, na maioria das vezes as palavras que escolhemos dizer – ou ouvimos – afetam nossos pensamentos. É o caso, por exemplo, de termos ofensivos, agressões e palavrões, que tendem a causar exaltação física, como aumento da pressão sanguínea e dos batimentos cardíacos. Já palavras doces, ditas de forma amorosa, tendem a nos mobilizar afetivamente, despertando ternura. Estudos recentes desenvolvidos na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, por meio de técnicas de imageamento, revelaram que as ondas cerebrais de quem fala e de quem ouve tendem a se tornar similares. E quanto mais o ouvinte está receptivo ao que escuta, mais seu cérebro se “adapta” ao do interlocutor. O que os estudiosos não sabem ainda é quanto essa proximidade tem a ver com as palavras em si ou com a entonação, com a empatia despertada pela voz e com as mais diversas associações afetivas possíveis. Outro ponto curioso descoberto por neurocientistas é que, dependendo da língua materna, usamos uma parte específica do cérebro para resolver problemas que exigem raciocínio. A diferença é visível, por exemplo, quando grupos de voluntários chineses e americanos são convidados a resolver questões simples de matemática enquanto são monitorados por exames de neuroimagem. Nessas situações é possível constatar que áreas neurais diferentes são acionadas em pessoas das duas nacionalidades. |
quinta-feira, junho 16, 2011
O Cristianismo como um ideal, não como casuística
segunda-feira, junho 13, 2011
"Os seres humanos não são apenas animais mais inteligentes"
Nem todas as ideias erradas são dignas de se contestar. Existem algumas, porém, que não podem ser ignoradas. Aquelas que interpretam erroneamente questões de suprema importância, ou atrapalham nosso pensamento sobre elas, ou têm sérias consequências, devem ser discutidas.
Uma dessas ideias é a de que os seres humanos são essencialmente animais; ou no mínimo muito mais animalescos do que havíamos pensado. Ela leva a alegações de que somos apenas macacos inteligentes, de que nossas mentes não passam de sinais elétricos no cérebro.
Existem inúmeras manifestações desse "biologismo". Ele é explicado em milhares de livros e artigos sobre a chamada neuroestética, teoria dos memes, neurodireito e em abordagens neuroevolucionistas da política e da economia. Seus defensores afirmam, por exemplo, que somos capazes de compreender melhor a arte visual rastreando o cérebro para estudar sua reação, ou que a criminalidade é melhor explicada por um desequilíbrio entre os lobos frontais e o corpo amigdaloide.
Passei mais de 30 anos argumentando contra o biologismo, e recentemente escrevi "Aping Mankind: Neuromania, Darwinitis and the Misrepresentation of Humanity" ['Macacando' a humanidade: Neuromania, darwinite e a representação errônea da humanidade]. A principal suposição que sustenta o biologismo é que os seres humanos são essencialmente organismos, em vez de pessoas. Para realmente compreendê-los, diz a teoria, é preciso admitir que eles não são agentes conscientes, mas pedaços de matéria viva sujeitos às leis da biosfera.
O biologismo tem duas correntes, que eu chamo de neuromania e darwinite. A neuromania se baseia na crença de que a consciência humana é idêntica à atividade cerebral. Existem, é claro, correlações entre a atividade cerebral e aspectos da consciência. Estas podem ser demonstradas observando-se que partes do cérebro se "acendem" quando os sujeitos relatam determinadas experiências. No entanto, isso não quer dizer que a atividade neural é uma causa suficiente desses aspectos da consciência: que, por exemplo, os eventos vistos no córtex orbitofrontal quando vemos um objeto bonito sejam toda a causa de nossa experiência da beleza, e ainda menos que eles sejam nossa experiência da beleza.
Na verdade, não há uma explicação neural concebível de muitos aspectos da consciência humana. Um registro de impulsos neurais não pode explicar a simultaneidade e multiplicidade de um momento. Estou consciente, por exemplo, da tela do computador à minha frente, das letras que se espalham por ela, da luz do sol lá fora e de pássaros cantando. Essas coisas são experimentadas separadamente, e no entanto como pertencentes a um único momento presente. Este muitos-em-um é uma noz muito mais dura de quebrar do que o mistério da Trindade.
Mais importante ainda, a atividade neural não oferece explicação sobre a fonte da "referencialidade": a qualidade essencial da consciência, que significa que minhas percepções, crenças e esperanças se referem a algo diferente de impulsos neurais. A referencialidade dos conteúdos da consciência - que os filósofos tradicionalmente chamam de "intencionalidade" - é plenamente desenvolvida nos seres humanos, que são conscientes de si mesmos como separados de seus mundos de objetos, signos e conceitos. E a intencionalidade é a origem última da esfera humana: a comunidade de mentes, tecida por um trilhão de apertos de mão cognitivos ou atenção compartilhada, dentro da qual nossa liberdade opera e nossas vidas narradas são conduzidas.
O outro pilar do biologismo - a darwinite - também decorre do erro de identificar a mente com o cérebro. Se o cérebro é um órgão que evoluiu para otimizar as probabilidades de sobrevivência, segundo essa teoria, a mente também é. A darwinite, consequentemente, confunde a evolução biológica da espécie com o desenvolvimento de nossa cultura. A teoria da evolução descreve os processos da seleção natural que sem dúvida deram origem ao Homo sapiens. Mas é errado concluir que se aceitarmos essa teoria também teremos de procurar uma explicação evolucionista da gênese e da forma da cultura humana.
Mas a darwinite é ainda mais vulnerável a ataques que a neuromania. Veja a diferença entre uma hora de vida animal e uma hora de vida humana. Admito que apreciar a diferença é mais difícil quando falamos em linguagem que animaliza o comportamento humano e humaniza o comportamento animal. Daisy, a vaca, bate em um arame elétrico e a partir de então o evita. Eu decido que quero melhorar minhas chances na vida, então me matriculo em um curso que começa no ano que vem e contrato uma babá para que eu tenha mais tempo para estudar. Tanto Daisy como eu podemos ser descritos como praticantes do "comportamento aprendido", mas isso oculta diferenças profundas. Estas incluem meu complexo sentido de tempo e o fato de que estou lidando com estruturas e hábitos abstratos. Nós conduzimos nossas vidas, regulando-as por narrativas compartilhadas e individuais, enquanto os animais meramente as vivem.
Muitas pessoas acreditam que o biologismo decorre inevitavelmente da teoria evolucionista. As pessoas muitas vezes pensam que sou um criacionista ou um prosélito de alguma religião. Para constar, sou um ateu humanista, um médico e neurocientista para quem a ciência é nosso maior monumento intelectual. Sou um agnóstico ontológico, não um dualista cartesiano. Só porque eu nego a identidade da mente com a atividade cerebral, não significa que eu considere a mente como um fantasma no maquinário do cérebro.
Acredito que há muito trabalho a ser feito para dar sentido a um mundo que contém objetos materiais como seixos ou cérebros e itens mentais como pensamentos e experiências. Não aceito que a única alternativa a um relato sobrenatural da humanidade seja um naturalista. Entre o nascimento e a morte, habitamos uma comunidade de mentes, um mundo humano que vai além da natureza, onde podemos conscientemente usar o que aprendemos sobre as leis da natureza para fins não pretendidos na biosfera.
Isto levanta perguntas sobre como chegamos a ser tão diferentes, onde se situa a mente humana no universo material e quais são os limites de nossa capacidade de nos transformarmos. Se rejeitarmos a ideia de que a atividade neural é idêntica à consciência, como deveremos entender o papel central que o cérebro tem em nossa vida consciente? Mas não faremos progresso com essas perguntas enquanto pensarmos que já as respondemos. Em particular, enquanto ignorarmos os aspectos irredutivelmente relacionais da consciência humana - sua referencialidade, sua participação na comunidade de mentes, em que sujeito e objeto são parceiros inseparáveis -, ficaremos pendentes de perguntas estéreis sobre onde ela se localiza, senão no cérebro.
O biologismo também importa porque defende uma concepção degradada da humanidade. Não é histeria sugerir que relatos de pessoas como organismos vorazes, dominados por imperativos biológicos dos quais não têm consciência, poderiam se autorrealizar.
Enganos que têm uma aceitação tão ampla quanto os que acabei de descrever não poderiam ficar sem consequências. Eles impedem nosso caminho para melhores respostas, para o que somos e para uma melhor compreensão de nossa relação com o mundo físico que nos cerca.
*Raymond Tallis foi eleito "fellow" da Academia de Ciências Médicas por sua pesquisa sobre acidente vascular-cerebral e epilepsia?