Resenha de 'O mal ronda a terra', de Tony Judt
O mal ronda a Terra, de Tony Judt. Tradução de Celso Nogueira. Editora Objetiva, 216 pgs. R$ 34,90
Por Francisco Carlos Teixeira
Algumas pessoas simplesmente não deveriam morrer. Tony Judt é uma delas. Tal reflexão emerge da leitura de seu último livro traduzido para o português. Já no título — “O mal ronda a Terra” — somos chamados para um combate: resgatar o pensamento crítico e abandonar o comodismo intelectual. Historiador inglês nascido em 1948, em Londres, Judt teve em sua vida uma parte da história da Europa e do Ocidente na segunda metade do século XX. Nascido numa família judia culta e laica, herdou uma educação típica dos judeus da Europa Central: conhecimento profundo de idiomas europeus, presença marcante da literatura, conhecedor do teatro experimental e de vanguarda e apreciador, quase viciado, do cinema. A capacidade de se mover no universo cultural mais amplo fez com que suas obras refletissem imensa erudição e capacidade de associar, num mosaico variado e rico, um amplo conjunto de experiências e criações para compor suas interpretações do século XX.
Suas obras iniciais, a partir de 1976, dedicadas ao socialismo e ao pensamento de esquerda francês no inicio do século XX, traduzem uma íntima familiaridade com o pensamento marxista e com as experiências socialdemocratas na Europa na antevéspera da emergência dos fascismos. Aos poucos, à luz da perda de criatividade e da crescente arrogância da esquerda — segura de que tinha em mãos o futuro, mesmo que nada fizesse para construí-lo —, Judt afastou-se, de forma crítica, das propostas socialistas. Talvez esta tenha sido uma segunda “queda”, perda da inocência, que seria acompanhada de outros e seguidos mergulhos numa realidade mais amarga do que o mundo construído pelas palavras de ordem esquerdistas. Antes de decepcionar-se com o marxismo dos intelectuais franceses, Judt já havia se decepcionado com o projeto sionista de Israel. Ele, que na juventude se declarara um judeu sionista-marxista (e em tal condição fora viver em Israel), ao final dos anos 70 já é um intelectual maduro, com uma visão crítica tanto do marxismo quanto do sionismo.
A concepção cada vez mais crítica de Judt sobre a vanguarda europeia culmina numa obra que une erudição e crítica mordaz: “Passado imperfeito: os intelectuais franceses”. Trata-se de um livro onde Judt questiona, de um lado, o silêncio constante dos intelectuais franceses — de Sartre até Foucault — sobre a questão colonial e a exploração do chamado Terceiro Mundo. De outro lado, Judt ironiza e desnuda uma típica faceta da inteligência francesa: sua tentação pelo espetáculo. A arrogância e o esnobismo intelectual francês são expostos, sem piedade, num livro onde grandes nomes da filosofia, da literatura e das ciências sociais francesas são apresentados no seu contexto etnocêntrico e vaidoso.
Contudo, é em “Pós-Guerra” que a face de historiador de Judt emerge em toda a sua plenitude. Numa obra exemplar da moderna história do tempo presente, Judt compõe um amplo afresco — a imagem pictórica se adequa perfeitamente à sua obra — do mundo que emerge da Segunda Guerra Mundial. O livro, paradigmático, deve ser lido em várias chaves simultâneas: a descrição de uma Europa que vai se tornando menor e provinciana; a construção de uma narrativa múltipla e comparativa e, em fim, a busca de fontes alternativas — para além do material dos arquivos clássicos, que aliás Judt usa abundantemente —, tais como o cinema, o teatro, os esportes, a canção e até mesmo o vestuário. Em seu conjunto, é uma obra modelar e que rompe com os cânones da escrita pesada e dura da academia buscando faixas cada vez mais amplas de leitores.
Críticas ao mercado e defesa da socialdemocracia
No alvorecer do século XXI Judt enfrenta forte lobby de neossionistas, em especial dos novos políticos e publicistas de Israel, eivados de uma visão messiânica e instrumental da História. É um debate duro, ácido e no limite do cruel. Para Judt, a única solução para o sofrimento de ambos os povos na Palestina seria a criação de um estado binacional em ambas as margens do Jordão. O debate, longo de anos, opõe Judt a várias associações judaicas americanas, culminando no cancelamento de palestras e na retirada de convites. Mas no auge da crise Judt já se voltava para um novo tema: a ditadura do mercado e a religião do enriquecimento.
Este último livro de Judt, agora apresentado em português pela Objetiva (que ainda este ano lança a coletânea póstuma de ensaios pessoais de Judt, “The memory chalet”), remete diretamente para estas novas preocupações. Seu subtítulo — “Um tratado sobre as insatisfações do presente” — o situa ao lado do vasto legado de pensadores como Freud, Adorno, Marcuse ou Bauman. As interrelações entre desigualdade — a palavra mais repetida em todo o livro — e a imensa gama de manifestações de mal-estar moderno (desde a morte precoce até a perda da individualidade) são o tema central do livro. Nele, Judt explicita com tintas fortes — a raiva que uma amiga mencionada no livro identifica em suas análises — o profundo dano que a ideologia dominante desde os anos 80 até a crise mundial de 2008 impinge às pessoas. As dezenas de filmes, comerciais, talk shows e reality shows onde o mundo é dividido entre “perdedores” e “celebridades” seriam a marca insuperável da banalização do mal-estar. A explicitação e o culto pornográfico da riqueza (em face da fome, da doença e da violência que atingem milhões de pessoas) expressa em horas de TV sobre “a casa”, “a roupa” ou “o animal de estimação” das celebridades atestaria a desumanização de valores. A concepção, quase antropomórfica, do “mercado” — ao qual aplicam-se atributos pessoais do tipo “o mercado pensa”, “o mercado está preocupado” — é, lado a lado, acompanhado da coisificação da pessoa. Para Judt a única forma de romper com esta opacidade é a critica intensa, com raiva, da inação de políticos e intelectuais incapazes de reinventar as possibilidades de um futuro diferente.
Algumas pessoas não deveriam morrer. A morte de Judt, em agosto de 2010, deixou o mundo com um pouco menos da ira santa pela mudança.
FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA é professor titular de história contemporânea do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/UFRJ
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