quinta-feira, dezembro 30, 2010

Paz, horror e planos para 2011

Garganta dolorida e um resfriado que não sabe se vai ou fica -- exceto pela já dita garganta e a consequente mudança na voz. Poderia continuar a rotina de sempre, mas a chuva e o vento relativamente frio não o recomendam no meu estado. E a esperança de ainda rever algumas pessoas este ano se esvai entre uma dose e outra de Flogoral.

Uma breve ronda pelos sites de sempre mostra que o fundador do Arts and Letters Daily, um dos meus favoritos e certamente um dos mais úteis da Internet, faleceu. Engraçado que nunca tenha me ocorrido que o ALD tivesse um único fundador, embora felizmente não tenha um único editor. O site continua, para felicidade geral do mundo, e eu agradeço ao professor Dutton pelo legado que deixou. Não há dúvida de que ele fez mais pelo crescimento intelectual do mundo do que boa parte dos acadêmicos pode sonhar em fazer.

Uma breve pausa em minhas tarefas -- professores universitários levam trabalho para casa e para as férias também -- me permitiu pensar melhor em um projeto que tem me aquecido o coração nos últimos tempos. Trata-se de um grupo de estudos sobre não-violência e assuntos correlatos. A ideia surgiu a partir do interesse de alguns alunos, e também do fato de eu ter finalmente aproveitado o assunto em uma disciplina no início do ano. Estou longe de ser um expert, muito pelo contrário, mas saber alguma coisa é melhor do que não saber nada, e de qualquer forma já tenho uma bibliografia razoável. Mas foi só nos últimos dias, enquanto lia o recém-chegado Humanity - A moral history of the twentieth century ( leia a resenha, mediante breve registro, no NY Times), que me ocorreu o óbvio: o assunto requer mais do que uma abordagem puramente histórica ou a leitura de algumas fontes primárias essenciais. É uma das raras chances numa faculdade de História de sair da abordagem tradicional de fatos e historiografia e mergulhar num exame interdisciplinar sobre a tão buscada (e difamada) "natureza humana" -- e, por extensão, levar os participantes do grupo a se colocarem também como objeto do estudo. Afinal de contas, quando se examina a coragem de um militante dos direitos civis nos EUA dos anos 50 ou 60, ou de um adepto de Gandhi, há que se entender que princípios e escolhas estão por trás disso. Infelizmente, parecemos compreender muito bem as razões e as escolhas táticas de grupos de luta armada, mas a não-violência, em certas situações, ainda dá a impressão de ser uma coisa de outro mundo, quando não uma opção ingênua de sonhadores algo suicidas. Entender o ponto de vista de uma pessoa assim, e ao mesmo tempo a crítica que ele representa à visão quase automática de que "luta = violência", é algo que requer um suporte que a história, sozinha, não pode dar.

Achei alguma coisa em Psicologia, em um livro clássico que sempre serei grato ao hoje humorista Bernardo Jablonski por me haver feito comprar. O próprio Humanity tem capitulos úteis, embora não da maneira como se poderia esperar. Tomei como premissa que um bom estudo sobre não-violência tem que levar em conta o oposto dela, a violência mais extrema. Não se pode construir a paz sem considerar a guerra, ou, como prefiro chamar, o "mal" que tantas vezes se manifesta em pessoas comuns sob determinadas condições. Há uma literatura razoável sobre genocídio disponível, mesmo em português, e pretendo usá-la também. Entre outras coisas, ela mostra bem como as condições sociais podem favorecer a desumanização do próximo e fazer de pessoas ditas "normais" figuras dignas de literatura de terror.

É possível estudar isso sem problematizar as próprias reações e emoções? Eu duvido. Por isso mesmo, o tema pode ser um estímulo a um exercício de autoconhecimento, exatamente como o estudo consciencioso das humanidades, hoje tão burocratizadas, deve ser. Houve época em que se lia um romancista, um filósofo, um historiador, como sábios que teriam algo a nos acrescentar como pessoas, daí a reverência com que eram cercados. Não creio que essa seja a tônica em nossas universidades de hoje -- nem da maioria dos autores que as alimentam com bibliografia e saber. Talvez, apenas talvez, meu modesto projeto de grupo seja uma forma de escapar disso. Mas isso é algo que só poderei constatar na prática.

2 comentários:

Maurício Santoro disse...

Ótima sugestão, meu caro. Conversemos sobre ela em 2011, tem tudo a ver com meus planos de ter disciplinas dedicadas aos Estudos da Paz e à Resolução de Conflitos nos cursos que irei coordenar na FGV.

Em fevereiro estará pelo Rio o Ramon, um ex-aluno da UCAM que cursa o doutorado em RI em Coimbra, e se dedica a esses temas. Marquemos conversas, serão muito produtivas.

Abraço forte

Rodrigo disse...

Olá, Maurício!

Quando eu vou com o milho, você já volta com o bolo de fubá. ;-D

Não sei muito sobre os Peace Studies. Minha perspectiva e background se limitam por enquanto ao lado moral/ideológico do ativismo não-violento, coisa que me interessa desde meus estudos dos anos 60. É um assunto que ainda me impressiona.

Será um prazer conhecer o Ramon, e bater um grande papo a três.

Tem alguma sugestão bibliográfica sobre o assunto?

Um grande abraço e um ótimo Ano Novo, meu caro!

Um abraço,
R.