domingo, abril 04, 2010

A caminho de Wigan Píer


Em tempos de crise, nunca é demais voltar a um autor clássico.

04/04/2010 - 10h00

Atual, livro de George Orwell discute o sistema de classes

DANIEL BENEVIDES
Colaboração para o UOL

Divulgação/Companhia das Letras

Lançamento de George Orwell fala da barreira intransponível que é a repugnância física

Lançamento de George Orwell fala da barreira intransponível que é a repugnância física

A cena ficou conhecida por meio do YouTube: George W. Bush cumprimenta um haitiano e, disfarçadamente, limpa a mão na camisa do colega Bill Clinton. No livro “O Caminho para Wigan Pier”, que acaba de ser lançado, George Orwell fala da barreira intransponível que é a repugnância física. Refere-se, justamente, à barreira entre ricos e pobres, brancos e negros. A vergonhosa atitude do ex-presidente americano parece corroborar a tese.

Orwell, mais conhecido pelas distopias de “1984” e “Revolução dos Bichos”, descreve nesse livro, genial precursor do novo jornalismo, a vida infernal dos mineiros da região norte da Inglaterra. Mas vai além, ao analisar com franqueza, expondo os próprios preconceitos, as diferenças culturais, sociais e econômicas das classes. Numa segunda parte, faz também uma crítica aos socialistas típicos da época, especialmente àqueles que se baseavam apenas nas teorias, mas também lança um apelo para que o verdadeiro socialismo, de “liberdade e justiça”, seja instalado.

Redenção
Escritor engajado e bastante atual, Orwell agia em parte por um impulso de redenção. Sua repugnância maior era com a própria classe, que descreve algo ironicamente como “a parte baixa da classe média alta”. Sentia-se culpado por ter nascido entre os privilegiados e opressores. A experiência que teve na Índia como policial do Império Britânico, em que presenciou corrupção, espancamentos e execuções, moldou sua consciência a tal ponto que fez com que abandonasse, ao menos temporariamente, não apenas o emprego bem remunerado, mas também sua confortável situação de ex-estudante de Eton, uma das escolas mais elitistas da Inglaterra.


Deixou tudo o que tinha na casa dos pais e partiu para as sarjetas, vivendo entre mendigos no final dos anos 20. A aventura é contada no excelente “Na Pior em Paris e Londres” (Companhia das Letras, tradução de Pedro Maia Soares). Foi a partir daí que decidiu investigar a incrível vida dos trabalhadores do carvão. Com seu imenso poder narrativo, descreve em detalhe as condições subhumanas da lide no interior das montanhas, algo muito próximo da imagem mental que fazemos do inferno. Há coisas que parecem mesmo de um outro mundo, que deixam o leitor incrédulo, de olhos arregalados.

A começar do caminho até o lugar onde é extraído o carvão. São em média cinco quilômetros no escuro, dentro de um túnel de apenas um metro e vinte de altura, precariamente sustentado por pequenas vigas de madeira, sujeito a desabamentos. O ar é quase irrespirável, adensado por partículas de carvão. O trajeto é feito com os joelhos e costas dobrados, uma posição que nenhum atleta, por mais forte que fosse, suportaria. Os mineiros, quase todos baixos, magros e musculosos, parecem feitos de uma fibra especial. Impressionado, Orwell descreve seus corpos “esplêndidos”, exercendo por sete horas seguidas o manejo de pás e picaretas num cenário enterrado no esquecimento do mundo, a quatrocentos metros da superfície.

Semelhanças dantescas
Qualquer semelhança com as cenas dantescas mostradas em Serra Pelada ou, mais indiretamente, nas reportagens sobre trabalho escravo não é mera coincidência. Convencido de que só a convivência íntima com o assunto que quer retratar pode levar a uma autentica compreensão daquele universo, Orwell dorme nas fétidas pensões dos trabalhadores, come a mesma comida suspeita e insuficiente, condiciona-se ao indigno sistema sanitário e vive a mesma resignação, como se o destino do oprimido não pudesse ser outro, tamanha a dificuldade de ascensão social.

Depois dessa longa viagem às entranhas da Terra, o escritor iria para as barricadas da Guerra Civil Espanhola, lutar ao lado os republicanos contra os fascistas liderados por Franco. Descobriu uma situação de disputas brutais entre a esquerda e o domínio sinistro de agentes soviéticos. Idealista, enfrentou as adversidades como pôde, até levar um tiro que atravessou sua garganta e quase o matou. Essa experiência é contada no emocionante livro “Homage to Catalonia”, que também deverá ser traduzido e complementa essa brilhante série de “documentários literários”.

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