quarta-feira, abril 28, 2010

Beleza?


Acho curiosas as muitas fotos que circulam na rede mostrando celebridades "ao natural", ou seja, sem maquiagem e toda a preparação --não raro trabalhosa -- destinada a fazê-las parecer lindas e perfeitas. Às vezes, a diferença entre o "antes" e o "depois" é gritante. Hoje, porém, vi o portfolio de Louis Vutton no blog de Andrew Sullivan, e foi realmente um exercício fascinante. Algumas das moças são realmente muito bonitas, outras nem tanto, mas um certo número me pareceu até mesmo doente. Quem quiser tirar suas conclusões, basta clicar aqui.




terça-feira, abril 27, 2010

Mortes invisíveis

É muito comum, nas cidades grandes, ignorarmos as pessoas à nossa volta. Vemos alguém pedindo esmola ou ajuda, e fingimos que não vemos, por vezes pela quantidade e a cotidianidade com que os encontramos. Passamos por tantas tragédias, tantos apelos, que podem não receber mais que um breve olhar exploratório, quando então aceleramos o passo ou retomamos as reflexões entorpecidas de uma rotina apressada. "Outros farão alguma coisa", talvez pensemos, prontos a esquecer no minuto seguinte qualquer coisa menos comum que tenhamos visto. O problema é que todo o mundo pensa a mesma coisa...

Uma proposta de exercício místico, hoje em dia usada também por neurocientistas, é procurar perceber os detalhes que não enxergamos nos cenários de rotina. Procurar cultivar a atenção, abrir a mente àquelas informações do ambiente que em geral desprezamos. Talvez pudéssemos aplicar isso a pessoas também: quem não vemos ou fingimos não ver e, no entanto, está sempre ali?

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27/04/2010 - 11h39

Mendigo "herói" esfaqueado morre após ser ignorado por transeuntes em NY

da BBC Brasil

Um mendigo que foi esfaqueado após tentar ajudar uma mulher em uma discussão acabou morrendo na rua, ignorado pelos transeuntes, segundo imagens captadas por câmeras de segurança de um prédio nos arredores.

O incidente ocorreu no bairro de Queens, em Nova York. De acordo com a polícia, pelo menos 25 pessoas passaram pelo pedinte esfaqueado, o imigrante guatemalteco Hugo Alfredo Tale-Yax, de 31 anos, enquanto ele sangrava em uma calçada do bairro.

Segundo a imprensa americana, a polícia agora procura a mulher envolvida na discussão, pois acredita que ela não sabe que o mendigo foi esfaqueado e que ela provavelmente pode identificar o assassino. Os dois pareciam estar discutindo quando o imigrante interferiu tentando ajudá-la.

As imagens da câmera de segurança mostram a mulher seguida por um homem que parece atacá-la e Tale-Yax andando em direção a eles. A câmera não flagra o momento em que ele é esfaqueado, mas mostra o suposto assassino fugindo da cena e a mulher saindo em direção contrária.

Depois de ser esfaqueado no peito diversas vezes, Tale-Yax ainda tenta correr atrás do agressor, mas cai no chão.

No vídeo, ele aparece deitado na calçada, ferido, enquanto os pedestres passam por ele.

Um dos pedestres chega a sacudir o corpo, virá-lo e encontra uma poça de sangue. Ainda assim, a polícia só recebeu uma chamada informando sobre o incidente uma hora e meia depois.

Segundo a mídia local, Tale-Yax era um imigrante ilegal, desempregado, que costumava dormir nas praças do bairro, onde vivem muitos imigrantes latinos.

quinta-feira, abril 22, 2010

Perdoar

Ainda pesquisando. O tema é "culpa", um sentimento muito mais pervasivo e frequente do que a ideia mais comum que se faz dele, ou seja, de uma espécie de remorso explicitamente ligada a um ato específico. Afinal, existem culpas que continuam incomodando seus portadores por anos a fio, sem que se saiba bem de onde vêm -- e outras cultivadas inadvertidamente por falta de coragem para (ou de entendimento para fazer) uma reparação. Seja como for, uma das propostas mais claras para a culpa é o perdão, seja de outrem ou de si mesmo. Não por acaso, há milênios essa ideia vem sendo enfatizada em várias religiões, filosofias e sistemas éticos. Perdoar, contudo, pode não ser nada fácil; já não bastasse a dificuldade de superar os conflitos interiores causados por quem nos prejudicou, há ainda os impositivos da educação que recebemos. Afinal, em nossa sociedade, não é difícil aprendermos desde muito cedo que para certos atos não há qualquer possibilidade de perdão. Para esses, restará somente a "justiça" -- concebida muitas vezes apenas como uma oficialização da vingança e aplicada com o mesmo tipo de sentimento.

Tudo isso é muito natural. A grande maioria de nós não tem, a rigor, nenhuma grande sofisticação ética e tampouco uma impressionante grandeza de sentimentos. Bateu, levou. Fez sofrer, sofra também. Diante de um infrator, é visível o prazer com que testemunhamos sua punição. A "justiça", assim, passa a ser a manifestação socialmente aceita de nossa raiva, para não dizer de nosso ódio, tanto maior quanto maior for nossa empatia pela vítima. Isso explica, por exemplo, o recente clamor popular no julgamento do casal Nardoni, acusado de matar a menina Isabela. Durante o julgamento, várias pessoas madrugavam à porta do fórum para xingar os acusados e pressionar por sua condenação. Alguns vinham de outras cidades. Tudo para garantir que os criminosos fossem justiçados com o maior rigor possível. Se houvesse pena de morte no Brasil, não é difícil imaginar que essas mesmas pessoas estariam pedindo a cadeira elétrica para os réus.

Pode-se pensar em perdão para um caso desses? Se sua resposta é um sonoro e imediato Não, congratulações, você está perfeitamente imbuído do senso comum. O problema é que esse mesmo senso comum nos acompanha desde nossos ancestrais pré-históricos, e alguns dos grandes triunfos espirituais humanos se fizeram indo além dessa concepção instintiva de como as relações humanas devem funcionar. Afinal de contas, Sidarta Gautama, Jesus de Nazaré e outros tantos não entraram para a história por endossar as ideias já correntes em suas épocas.

Cito exemplos religiosos porque são os que me ocorrem em primeiro lugar. Não obstante, sempre parti do princípio de que quase todas as boas ideias no campo da ética e das relações humanas podem ser defendidas em bases puramente leigas. Do contrário, só teriam apelo para os fiéis das várias religiões, o que definitivamente não é o caso. Prova disso é o caso dos muitos relatos de pessoas que, tendo sido vítimas dos mais diferentes crimes, foram capazes de estabelecer uma relação diferente com seus agressores -- e, sem minimizarem todo o sofrimento por que passaram, conseguiram se libertar do passado e, às vezes, contribuírem para a recuperação do seu suposto algoz. Serão elas "santas", "Espíritos iluminados" acima da média humana? Ao que parece, não; mas de alguma forma elas perceberam que a "justiça" vingativa que normalmente se oferece a casos como os seus não era o bastante. Elas foram além, e essa jornada interior, que não se faz de uma hora para outra e é, sim, fruto de uma escolha consciente, é o que chamo aqui de perdão.

"Então Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: 'Senhor, quantas vezes deverei perdoar o meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?' Jesus respondeu: 'Eu lhe digo: Não sete, mas até setenta vezes sete.'" (Mateus 18:21)

Como se perdoa? Por que se perdoa? O que se perdoa? Acabei descobrindo alguns sites que tratam do assunto da maneira mais direta possível: a partir da experiência empírica de várias pessoas. De um deles, da Catherine Blount Foundation, extraí o que segue:

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Os dez maiores equívocos sobre o perdão

Azim Khamisa

Fonte: http://www.catherineblountfdn.org/forgiveness.html

1. Recusar o perdão machuca o outro.

A verdade é: recusar o perdão machuca você mesmo.

2. O perdão é uma empreendimento passivo.

A verdade é: o perdão é um empreendimento muito ativo, no qual você pode estender alcançar o outro com amor e compaixão.

3.
O perdão deixa as pessoas impunes, de modo que elas não são responsáveis por suas ações.

A verdade é: perdão e responsabilidade não são o mesmo assunto. Você pode ter ambos: perdoar o outro oferecendo empatia e união; contudo, manter o processo de responsabilidade dentro da estrutura social.

4. Perdoar alguém diz a essa pessoa que o que quer que ela tenha feito é aceitável para você.

A verdade é: aceitar as ações alheias e aceitar a verdadeira natureza da pessoa por trás delas são duas coisas muito diferentes. Você pode deixar isso claro.


5. O perdão é para o outro.
A verdade é: perdoar o outro é um ato que fazemos por nós mesmos, para nos libertar da dor ou da amargura.


6. Quando se perdoa, está-se “relevando” o mau comportamento alheio.
A verdade é: Não há “relevação”, apenas uma percepção mais clara de quem a outra pessoa verdadeiramente é, e o que ela ainda pode fornecer à sua vida, à comunidade e à sociedade.

7. O perdão é feito ao se dizer, “Eu te perdoo”.

A verdade é: O perdão não está só nas palavras, mas também no pensamentos, nos sentimentos e na ação.

8.
Perdoar o outro não gera realmente nada de bom.

A verdade é: perdoar não apenas eleva você E essa outra pessoas de maneiras não visíveis, mas traz muito mais luz para um mundo muito necessitado dela.

9. O perdão é só para as pessoas religiosas.

A verdade é: ele é para todos nós que estamos sobre este planeta.

10. Perdoar é difícil demais.

A verdade é: pode ser difícil, mas não difícil demais, quando você tem o apoio e a perspectiva correta.

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Para terminar, por enquanto, uma frase de Viktor Frankl, alguém cuja vida certamente justifica que lhe demos ouvidos:

"...Tudo pode ser tirado do homem, exceto uma coisa: a última das liberdades humanas -- escolher a própria atitude em qualquer conjunto de circunstâncias, escolher o seu próprio caminho."

(Man’s Search For Meaning)

Sentir-se amado

Martha Medeiros é uma escritora adorada por muita gente. Eu, entretanto, só notei que ela existia quando assisti ao filme Divã, baseado em uma obra sua. Achei encantador. Hoje, pesquisando outras coisas, topei com este texto dela e descobri a fonte do seu encanto: a identificação rápida com situações vividas, momentos intensos (e não raro silenciosos) que nos marcam e moldam nossa vida daí por diante. Homem ou mulher, basta um mínimo de sensibilidade (e talvez alguma vivência) para ver na autora um cúmplice ou porta-voz a distância, capaz de enunciar o que tantas vezes foi indizível.

Deixo este texto aqui, como amostra. Talvez lhes pareça tão encantador em sua simplicidade quanto foi para mim.
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Sentir-se amado

O cara diz que te ama, então tá. Ele te ama.

Sua mulher diz que te ama, então assunto encerrado.

Você sabe que é amado porque lhe disseram isso, as três palavrinhas mágicas. Mas saber-se amado é uma coisa, sentir-se amado é outra, uma diferença de milhas, um espaço enorme para a angústia instalar-se.

A demonstração de amor requer mais do que beijos, sexo e verbalização, apesar de não sonharmos com outra coisa: se o cara beija, transa e diz que me ama, tenha a santa paciência, vou querer que ele faça pacto de sangue também?

Pactos. Acho que é isso. Não de sangue nem de nada que se possa ver e tocar. É um pacto silencioso que tem a força de manter as coisas enraizadas, um pacto de eternidade, mesmo que o destino um dia venha a dividir o caminho dos dois.

Sentir-se amado é sentir que a pessoa tem interesse real na sua vida, que zela pela sua felicidade, que se preocupa quando as coisas não estão dando certo, que sugere caminhos para melhorar, que coloca-se a postos para ouvir suas dúvidas e que dá uma sacudida em você, caso você esteja delirando. "Não seja tão severa consigo mesma, relaxe um pouco. Vou te trazer um cálice de vinho".

Sentir-se amado é ver que ela lembra de coisas que você contou dois anos atrás, é vê-la tentar reconciliar você com seu pai, é ver como ela fica triste quando você está triste e como sorri com delicadeza quando diz que você está fazendo uma tempestade em copo d´água. "Lembra que quando eu passei por isso você disse que eu estava dramatizando? Então, chegou sua vez de simplificar as coisas. Vem aqui, tira este sapato."

Sentem-se amados aqueles que perdoam um ao outro e que não transformam a mágoa em munição na hora da discussão. Sente-se amado aquele que se sente aceito, que se sente bem-vindo, que se sente inteiro. Sente-se amado aquele que tem sua solidão respeitada, aquele que sabe que não existe assunto proibido, que tudo pode ser dito e compreendido. Sente-se amado quem se sente seguro para ser exatamente como é, sem inventar um personagem para a relação, pois personagem nenhum se sustenta muito tempo. Sente-se amado quem não ofega, mas suspira; quem não levanta a voz, mas fala; quem não concorda, mas escuta.

Agora sente-se e escute: eu te amo não diz tudo.

quarta-feira, abril 14, 2010

Iaaaaaaaá!!!!!

Uma bobagem deliciosa para uma semana cheia...

quarta-feira, abril 07, 2010

O mal segundo Terry Eagleton

Tudo compreender é tudo perdoar? Abaixo, o trecho inicial do ensaio do crítico cultural Terry Eagleton sobre um tema milenar. É só seguir o link sob o subtítulo para a versão completa


Of men and monsters

Terry Eagleton

Published 01 April 2010

http://www.newstatesman.com/ideas/2010/04/evil-social-essay-human-case


Fifteen years ago, two ten-year-old boys tortured and killed a toddler, James Bulger, in the north of England. There was an outcry of public horror, though why the public found this particular murder especially shocking is not entirely clear. Children, after all, are only semi-socialised creatures who can be expected to behave pretty savagely from time to time. If Freud is to be credited, they have a weaker superego or moral sense than their elders. In this sense, it is surprising that such grisly events do not occur more often. Perhaps children murder each other all the time and are simply keeping quiet about it. William Golding seems to believe, in his novel Lord of the Flies, that a bunch of unsupervised schoolboys on a desert island would slaughter each other before the week was out.

Perhaps this is because we are ready to believe all kinds of sinister things about children, since they seem like a half-alien race in our midst. Since they do not work, it is not clear what they are for. They do not have sex, though perhaps they are keeping quiet about this, too. They have the uncanniness of things which resemble us in some ways but not in others. It is not hard to fantasise that they are collectively conspiring against us, in the manner of John Wyndham's fable The Midwich Cuckoos. Because children are not fully part of the social game, they can be seen as innocent; but for just the same reason, they can be regarded as the spawn of Satan. The Victorians swung constantly between angelic and demonic views of their offspring.

A police officer involved in the case of the murdered toddler declared that the moment he clapped eyes on one of the culprits, he knew that he was evil. This is the kind of thing that gives evil a bad name. The point of demonising the boy in this way was to wrong-foot the soft-hearted liberals. It was a pre-emptive strike against those who might appeal to social conditions in seeking to understand why they did what they did. And such under standing can always bring forgiveness in its wake. Calling the action evil meant that it was beyond comprehension. Evil is unintelligible. It is just a thing in itself, like boarding a crowded commuter train wearing only a giant boa constrictor. There is no context which would make it explicable.

Vida de carioca...


domingo, abril 04, 2010

E acabou-se o feriado

Mais uma semana que começa. Passei os últimos dias na companhia dos revolucionários bolcheviques de Lênin, e logo terei que revisitar o seu arqui-inimigo demagogo, Joseph McCarthy. A campanha dos direitos civis nos EUA foi um breve alívio, nobre e idealista como é, mas infelizmente ela inclui algumas longas páginas sobre calculismo político e as tentativas agressivas -- quando não ridículas -- de autoafirmação do nacionalismo negro. Enquanto isso, Was Superman a spy? e Talvez uma história de amor me aguardam, com a promessa da leveza prazerosa das leituras sem compromisso. Minha leitura de "passatempo" tem sido algumas páginas disto aqui antes de dormir. Interessante, necessário até, mas não exatamente divertido.

Mas passatempos se tornaram um luxo. Trabalho voluntário, disciplinas que estou dando pela primeira vez, outra sendo cursada no doutorado, trabalhos encomendados... Bons tempos quando podia passar dias esquecendo o mundo em partidas de videogame. Se bem que os jogos que aprecio são 2D, do tipo que já se jogava nos tempos do NES e do SNES -- nunca sequer apertei um botão nos clássicos mais recentes como Halo. É curioso se ver como membro de uma geração "anterior" -- como os adolescentes da minha época de infância. Como será que eles viam o então avançadíssimo Pac Man?

Enfim, um post sem nenhum objetivo especial.

A caminho de Wigan Píer


Em tempos de crise, nunca é demais voltar a um autor clássico.

04/04/2010 - 10h00

Atual, livro de George Orwell discute o sistema de classes

DANIEL BENEVIDES
Colaboração para o UOL

Divulgação/Companhia das Letras

Lançamento de George Orwell fala da barreira intransponível que é a repugnância física

Lançamento de George Orwell fala da barreira intransponível que é a repugnância física

A cena ficou conhecida por meio do YouTube: George W. Bush cumprimenta um haitiano e, disfarçadamente, limpa a mão na camisa do colega Bill Clinton. No livro “O Caminho para Wigan Pier”, que acaba de ser lançado, George Orwell fala da barreira intransponível que é a repugnância física. Refere-se, justamente, à barreira entre ricos e pobres, brancos e negros. A vergonhosa atitude do ex-presidente americano parece corroborar a tese.

Orwell, mais conhecido pelas distopias de “1984” e “Revolução dos Bichos”, descreve nesse livro, genial precursor do novo jornalismo, a vida infernal dos mineiros da região norte da Inglaterra. Mas vai além, ao analisar com franqueza, expondo os próprios preconceitos, as diferenças culturais, sociais e econômicas das classes. Numa segunda parte, faz também uma crítica aos socialistas típicos da época, especialmente àqueles que se baseavam apenas nas teorias, mas também lança um apelo para que o verdadeiro socialismo, de “liberdade e justiça”, seja instalado.

Redenção
Escritor engajado e bastante atual, Orwell agia em parte por um impulso de redenção. Sua repugnância maior era com a própria classe, que descreve algo ironicamente como “a parte baixa da classe média alta”. Sentia-se culpado por ter nascido entre os privilegiados e opressores. A experiência que teve na Índia como policial do Império Britânico, em que presenciou corrupção, espancamentos e execuções, moldou sua consciência a tal ponto que fez com que abandonasse, ao menos temporariamente, não apenas o emprego bem remunerado, mas também sua confortável situação de ex-estudante de Eton, uma das escolas mais elitistas da Inglaterra.


Deixou tudo o que tinha na casa dos pais e partiu para as sarjetas, vivendo entre mendigos no final dos anos 20. A aventura é contada no excelente “Na Pior em Paris e Londres” (Companhia das Letras, tradução de Pedro Maia Soares). Foi a partir daí que decidiu investigar a incrível vida dos trabalhadores do carvão. Com seu imenso poder narrativo, descreve em detalhe as condições subhumanas da lide no interior das montanhas, algo muito próximo da imagem mental que fazemos do inferno. Há coisas que parecem mesmo de um outro mundo, que deixam o leitor incrédulo, de olhos arregalados.

A começar do caminho até o lugar onde é extraído o carvão. São em média cinco quilômetros no escuro, dentro de um túnel de apenas um metro e vinte de altura, precariamente sustentado por pequenas vigas de madeira, sujeito a desabamentos. O ar é quase irrespirável, adensado por partículas de carvão. O trajeto é feito com os joelhos e costas dobrados, uma posição que nenhum atleta, por mais forte que fosse, suportaria. Os mineiros, quase todos baixos, magros e musculosos, parecem feitos de uma fibra especial. Impressionado, Orwell descreve seus corpos “esplêndidos”, exercendo por sete horas seguidas o manejo de pás e picaretas num cenário enterrado no esquecimento do mundo, a quatrocentos metros da superfície.

Semelhanças dantescas
Qualquer semelhança com as cenas dantescas mostradas em Serra Pelada ou, mais indiretamente, nas reportagens sobre trabalho escravo não é mera coincidência. Convencido de que só a convivência íntima com o assunto que quer retratar pode levar a uma autentica compreensão daquele universo, Orwell dorme nas fétidas pensões dos trabalhadores, come a mesma comida suspeita e insuficiente, condiciona-se ao indigno sistema sanitário e vive a mesma resignação, como se o destino do oprimido não pudesse ser outro, tamanha a dificuldade de ascensão social.

Depois dessa longa viagem às entranhas da Terra, o escritor iria para as barricadas da Guerra Civil Espanhola, lutar ao lado os republicanos contra os fascistas liderados por Franco. Descobriu uma situação de disputas brutais entre a esquerda e o domínio sinistro de agentes soviéticos. Idealista, enfrentou as adversidades como pôde, até levar um tiro que atravessou sua garganta e quase o matou. Essa experiência é contada no emocionante livro “Homage to Catalonia”, que também deverá ser traduzido e complementa essa brilhante série de “documentários literários”.