Sou espírita. Para mim, isso implica acima de tudo uma visão particular da realidade. É uma fé, sim, mas também uma postura filosófica, uma escolha de valores, uma ênfase no interesse por certos temas. Mas para ser espírita, felizmente, não é preciso uma fé cega ou uma aceitação irracional ou puramente emocional de um conjunto de verdades. Embora se possa argumentar que qualquer visão de mundo tem, em sua origem, uma boa dose de irracionalidade -- a Razão não é mais aquela deusa absoluta há muito tempo --, posso dizer que o Espiritismo em sua melhor cepa não só permite como estimula o senso crítico para matérias de cunho normalmente mais dogmático. Em outras palavras, ele estimula o exame racional, inclusive dele mesmo. E hoje, depois de anos lidando com a literatura religiosa e antirreligiosa, e tendo aprendido a identificar em um texto os frequentes saltos lógicos dados pelos autores, as suas premissas nem sempre explicitadas, posso dizer que aprecio muito os (bons) livros espíritas sem perder de vista as várias formas como eles poderiam ser questionados. Creio eu que é a melhor forma de viver a própria fé, ou seja, procurando compreendê-la inclusive nas suas limitações. Afinal, tudo que é humano tem limitações e é passível de crítica -- e o esquecimento ou a ignorância disso é que leva tantos ao fanatismo.
Um dos traços mais peculiares no Espiritismo é o diálogo que ele estabelece com a Bíblia, em particular os Evangelhos. Um dos livros mais famosos de Allan Kardec, o "Codificador" da Doutrina Espírita, chama-se justamente O Evangelho segundo o Espiritismo e é o que o nome diz: uma releitura das narrativas mais importantes acerca da vida de Jesus, considerado o modelo máximo da perfeição para a humanidade terrestre. A escolha de Kardec, muito sábia, foi ater-se à moralidade de Cristo, deixando de lado os pontos mais discutíveis dos relatos a seu respeito (não é bem o que ele realmente faz, mas o eixo do livro é esse). E ali, no capítulo 4, discute-se o célebre diálogo entre Jesus e Nicodemos sobre a necessidade de "nascer de novo" para se entrar no Reino dos Céus. A interpretação kardequiana, que é a padrão para os espíritas, é que se tratava de uma alusão velada à reencarnação, o mesmo valendo para as referências dos judeus à ressurreição dos mortos. Apesar da respeitabilidade dessa posição, eu pessoalmente sempre duvidei do automatismo dessa relação; parecia-me que Kardec estaria simplesmente projetando num texto antigo uma ideia estranha a ele, ainda mais que nunca havia ouvido falar que judeus fossem reencarnacionistas. Afinal, as ideias cristãs de céu e inferno não tinham neles a sua origem?
Pois hoje, finalmente, descobri por fonte idônea que eu estava errado. E que saudade me deu dos tempos em que lia avidamente esses sites sobre religião comparada! Mas vida de doutorando não tem muito desses prazeres... Que tenho lido por prazer? Pouco, e de forma esparsa. É bem verdade que gosto dos assuntos que estudo, mas uma maior liberdade -- a sensação de que o tempo gasto numa leitura de lazer não constitui uma perda para a leitura obrigatória -- faz falta. Sortudo é o Alexandre Soares, que se tornou um dos mais conhecidos blogueiros do Brasil simplesmente ostentando um dandismo erudito. Ele pode ostentar familiaridade com a alta literatura, enquanto Clarice Lispector repousa, paciente, há dois vergonhosos meses na minha cabeceira. Um dia ainda chego lá.
3 comentários:
Já eu me converti em definitivo ao (~gasp!~) Xintoísmo.
Hmm... qualquer dia desses preciso escrever um post a respeito.
Alexandre Soares Silva que é, veja só você, espírita - não sem certo contragosto, aparentemente...
Alex,
Eu acho que você ainda termina bahai. :-)
Na verdade, bem gostaria de entender todo esse cruzeiro espiritual que você faz. Afinal, passar de espírita a católico, embora raro, até entendo; mas daí chegar a xintoísta, não mais. Escreva o post, é um excelente tema.
Felipe,
Ele é espírita? Pelo pouco que vi, não parecia, sinceramente.
Um abraço,
Rodrigo.
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