Há três anos, os bens de Yves Saint Laurent foram leiloados por quase meio bilhão de dólares. Duas semanas atrás, um punhado de pertences pessoais de Mahatma Gandhi - óculos de aro redondo, um par de sandálias, uma tigela de arroz - foram vendidos por US$ 1,8 milhão. Na semana passada, um livro da desaparecida biblioteca pessoal de Adolf Hitler foi oferecido no famoso centro de leilão parisiense Hotel Drouot por um lance inicial de mil euros. Depois de uma rápida rodada de apostas, o volume foi vendido por € 1.800.
No caso de um Matisse de Yves Saint Laurent, vendido por € 35,9 milhões, o comprador investiu num bem cultural durável e, é claro, no bom gosto impecável do último dono. O milionário indiano que ofereceu o lance vencedor para os pertences de Gandhi disse que queria repatriar os objetos para exibição pública em seu país.
Mas o que motiva alguém a comprar um artefato de Hitler? Toda vez que pertences autênticos de Hitler vão a leilão, é inevitável e compreensível que o número de protestos se iguale ao número de apostas - acusações de especulação; críticas quanto à fetichização do líder nazista morto; inquietações quanto à natureza dos possíveis compradores ("Que tipo de pessoa compraria esse tipo de coisa?")
Com a maioria dos artefatos de Hitler, como o globo que foi vendido por US$ 100 mil, essas questões são certamente compreensíveis e justificáveis. Mas um livro da biblioteca particular de Hitler pode ser mais do que o objeto de um desejo questionável.
Hitler não era apenas um bibliófilo fanático, tendo reunido uma biblioteca de 16 mil volumes até sua morte, mas era também um leitor voraz que dizem ter lido um livro por noite durante a maior parte de sua vida adulta. Os livros eram uma parte integral do seu caráter e identidade. "Quando uma pessoa dá, tem que receber", disse ele uma vez. "E o que eu preciso, recebo dos livros".
Nesse sentido, os livros de Hitler são mais do que meros artefatos. Os volumes que ele leu e estudou, as passagens marcadas a lápis, tudo isso diz algo sobre seus interesses e sobre o curso de seus pensamentos em algumas de suas horas mais íntimas. Eles nos permitem observar este ícone do mal reduzido a dimensões humanas: um homem de meia idade numa poltrona com um livro na mão, e, vez ou outra, um lápis.
A maior parte da coleção de Hitler, dividida entre três bibliotecas elegantemente mobiliadas em suas casas de Berlim, Munique e em seu retiro nos Alpes em Obersalzberg, desapareceu na primavera de 1945, vítima da caça de troféus coletiva dos soldados americanos, franceses e do Exército Vermelho.
A parte remanescente da biblioteca, cerca de 1.200 livros - que incluem uma coleção de ensaios escrita por Gandhi - pode ser encontrada no setor de livros raros da Livraria do Congresso em Washington, D.C. Outros 80 livros, retirados do abrigo de Hitler em Berlim depois de seu suicídio, estão na Universidade Brown, em Rhode Island. Há relatos de que um número desconhecido, talvez vários milhares de livros, esteja escondido num arquivo de Moscou.
Portanto, quando volumes isolados vêm à tona - como o que foi leiloado no Hotel Druout -, eles representam exatamente o tipo de fonte primária de evidência histórica de que os estudiosos de Hitler carecem. Infelizmente, esses livros aparecem rapidamente nos leilões e depois somem em coleções privadas.
Um colecionador americano juntou dezenas de livros de Hitler, incluindo uma coleção da obra de Shakespeare em dez volumes encadernados à mão em couro trabalhado com uma suástica e as iniciais "AH" gravadas na lombada. Hitler citava Shakespeare frequentemente - "Ser ou não ser" era sua frase favorita.
Um morador do norte do Estado de Nova York comprou um livro de Hitler de um sebo por 50 centavos. O livro de 200 páginas e capa dura, "God's Realm and the World Today" [algo como "O Reino de Deus e o Mundo de Hoje"], foi publicado em 1915 e tem muitas anotações. Um colecionador holandês encontrou uma cópia surrada de Hitler do livro "Life of Frederick the Great" ["A Vida de Frederico, o Grande"] de Thomas Carlyle, uma biografia do século 19 que enaltece o fervor destrutivo do rei da Prússia e que alimentou as esperanças delusórias de Hitler em relação a uma miraculosa mudança de sorte na primavera de 1945.
Hitler estava lendo Carlyle nas semanas anteriores a seu suicídio.
De acordo com o catálogo do leilão montado pela empresa parisiense Kahn-Dumousset, o livro de Hitler em oferta na semana passada era um volume de antiquário, publicado em 1712, com uma ilustração de frontispício que mostrava o "furor, guerra, ódio e discórdia" na história europeia, e contava a história dos governantes europeus desde o duque de Savoy até o rei da Prússia.
O livro foi supostamente retirado do retiro de Hitler nos Alpes por um membro da 2ª Divisão Armada da França, o que empresta ao volume ainda mais valor histórico. A casa de Hitler nas montanhas abrigava muitos dos livros mais apreciados pelo líder nazista, incluindo seus volumes de Shakespeare.
Diferente de muitos outros livros remanescentes, que contêm dedicatórias de colegas ou admiradores nazistas - Heinrich Himmler, Herman Goering, Leni Reifenstahl, para citar alguns - esse volume não tem nenhuma dedicatória, sugerindo que foi uma aquisição particular, tornando-o assim ainda mais pessoal e relevante.
Na última quarta-feira, quando o livro de Hitler foi a leilão, junto com mais de outros 200 itens de antiquário, só havia lugar para ficar em pé no Hall 11 do Hotel Druout, mas ninguém respondeu ao lance de abertura de mil euros.
Entretanto, seguiu-se uma rodada movimentada de apostas anônimas por telefone, e o livro foi finalmente vendido por € 800 a mais do que o preço inicial. O tomo belamente encapado foi removido de vista e preparado para ser enviado para seu dono anônimo.
Hitler teria aprovado. No final de sua vida, o líder nazista ordenou que seus pertences pessoais fossem destruídos numa tentativa de obliterar o máximo possível sua vida privada. Ele queria ser lembrado exatamente como havia apresentado a si mesmo para o mundo: cheio de fúria, guerra, ódio e discórdia. Ele não queria deixar espaço para nuances, muito menos para insights sobre as obsessões e inseguranças particulares que alimentavam sua personalidade.
Enquanto o Matisse de Yves Saint Laurent passou da coleção de um investidor para outro e os artefatos pessoais de Gandhi retornaram para sua terra natal como patrimônio nacional, o livro de Hitler - como muitas outras coisas que poderiam nos dar mais informações sobre essa personalidade impenetrável - foi destinado a uma obscuridade ainda maior.
* Timothy W. Ryback é secretário geral da Academia Diplomática Internacional, e autor de "Hitler's Private Library: The Books that Shaped the Man" [algo como "A Biblioteca Particular de Hitler: Os Livros que Formaram o Homem"].
Tradução: Eloise De Vylder
No caso de um Matisse de Yves Saint Laurent, vendido por € 35,9 milhões, o comprador investiu num bem cultural durável e, é claro, no bom gosto impecável do último dono. O milionário indiano que ofereceu o lance vencedor para os pertences de Gandhi disse que queria repatriar os objetos para exibição pública em seu país.
Mas o que motiva alguém a comprar um artefato de Hitler? Toda vez que pertences autênticos de Hitler vão a leilão, é inevitável e compreensível que o número de protestos se iguale ao número de apostas - acusações de especulação; críticas quanto à fetichização do líder nazista morto; inquietações quanto à natureza dos possíveis compradores ("Que tipo de pessoa compraria esse tipo de coisa?")
Com a maioria dos artefatos de Hitler, como o globo que foi vendido por US$ 100 mil, essas questões são certamente compreensíveis e justificáveis. Mas um livro da biblioteca particular de Hitler pode ser mais do que o objeto de um desejo questionável.
Hitler não era apenas um bibliófilo fanático, tendo reunido uma biblioteca de 16 mil volumes até sua morte, mas era também um leitor voraz que dizem ter lido um livro por noite durante a maior parte de sua vida adulta. Os livros eram uma parte integral do seu caráter e identidade. "Quando uma pessoa dá, tem que receber", disse ele uma vez. "E o que eu preciso, recebo dos livros".
Nesse sentido, os livros de Hitler são mais do que meros artefatos. Os volumes que ele leu e estudou, as passagens marcadas a lápis, tudo isso diz algo sobre seus interesses e sobre o curso de seus pensamentos em algumas de suas horas mais íntimas. Eles nos permitem observar este ícone do mal reduzido a dimensões humanas: um homem de meia idade numa poltrona com um livro na mão, e, vez ou outra, um lápis.
A maior parte da coleção de Hitler, dividida entre três bibliotecas elegantemente mobiliadas em suas casas de Berlim, Munique e em seu retiro nos Alpes em Obersalzberg, desapareceu na primavera de 1945, vítima da caça de troféus coletiva dos soldados americanos, franceses e do Exército Vermelho.
A parte remanescente da biblioteca, cerca de 1.200 livros - que incluem uma coleção de ensaios escrita por Gandhi - pode ser encontrada no setor de livros raros da Livraria do Congresso em Washington, D.C. Outros 80 livros, retirados do abrigo de Hitler em Berlim depois de seu suicídio, estão na Universidade Brown, em Rhode Island. Há relatos de que um número desconhecido, talvez vários milhares de livros, esteja escondido num arquivo de Moscou.
Portanto, quando volumes isolados vêm à tona - como o que foi leiloado no Hotel Druout -, eles representam exatamente o tipo de fonte primária de evidência histórica de que os estudiosos de Hitler carecem. Infelizmente, esses livros aparecem rapidamente nos leilões e depois somem em coleções privadas.
Um colecionador americano juntou dezenas de livros de Hitler, incluindo uma coleção da obra de Shakespeare em dez volumes encadernados à mão em couro trabalhado com uma suástica e as iniciais "AH" gravadas na lombada. Hitler citava Shakespeare frequentemente - "Ser ou não ser" era sua frase favorita.
Um morador do norte do Estado de Nova York comprou um livro de Hitler de um sebo por 50 centavos. O livro de 200 páginas e capa dura, "God's Realm and the World Today" [algo como "O Reino de Deus e o Mundo de Hoje"], foi publicado em 1915 e tem muitas anotações. Um colecionador holandês encontrou uma cópia surrada de Hitler do livro "Life of Frederick the Great" ["A Vida de Frederico, o Grande"] de Thomas Carlyle, uma biografia do século 19 que enaltece o fervor destrutivo do rei da Prússia e que alimentou as esperanças delusórias de Hitler em relação a uma miraculosa mudança de sorte na primavera de 1945.
Hitler estava lendo Carlyle nas semanas anteriores a seu suicídio.
De acordo com o catálogo do leilão montado pela empresa parisiense Kahn-Dumousset, o livro de Hitler em oferta na semana passada era um volume de antiquário, publicado em 1712, com uma ilustração de frontispício que mostrava o "furor, guerra, ódio e discórdia" na história europeia, e contava a história dos governantes europeus desde o duque de Savoy até o rei da Prússia.
O livro foi supostamente retirado do retiro de Hitler nos Alpes por um membro da 2ª Divisão Armada da França, o que empresta ao volume ainda mais valor histórico. A casa de Hitler nas montanhas abrigava muitos dos livros mais apreciados pelo líder nazista, incluindo seus volumes de Shakespeare.
Diferente de muitos outros livros remanescentes, que contêm dedicatórias de colegas ou admiradores nazistas - Heinrich Himmler, Herman Goering, Leni Reifenstahl, para citar alguns - esse volume não tem nenhuma dedicatória, sugerindo que foi uma aquisição particular, tornando-o assim ainda mais pessoal e relevante.
Na última quarta-feira, quando o livro de Hitler foi a leilão, junto com mais de outros 200 itens de antiquário, só havia lugar para ficar em pé no Hall 11 do Hotel Druout, mas ninguém respondeu ao lance de abertura de mil euros.
Entretanto, seguiu-se uma rodada movimentada de apostas anônimas por telefone, e o livro foi finalmente vendido por € 800 a mais do que o preço inicial. O tomo belamente encapado foi removido de vista e preparado para ser enviado para seu dono anônimo.
Hitler teria aprovado. No final de sua vida, o líder nazista ordenou que seus pertences pessoais fossem destruídos numa tentativa de obliterar o máximo possível sua vida privada. Ele queria ser lembrado exatamente como havia apresentado a si mesmo para o mundo: cheio de fúria, guerra, ódio e discórdia. Ele não queria deixar espaço para nuances, muito menos para insights sobre as obsessões e inseguranças particulares que alimentavam sua personalidade.
Enquanto o Matisse de Yves Saint Laurent passou da coleção de um investidor para outro e os artefatos pessoais de Gandhi retornaram para sua terra natal como patrimônio nacional, o livro de Hitler - como muitas outras coisas que poderiam nos dar mais informações sobre essa personalidade impenetrável - foi destinado a uma obscuridade ainda maior.
* Timothy W. Ryback é secretário geral da Academia Diplomática Internacional, e autor de "Hitler's Private Library: The Books that Shaped the Man" [algo como "A Biblioteca Particular de Hitler: Os Livros que Formaram o Homem"].
Tradução: Eloise De Vylder
Um comentário:
Muito interessante o artigo !!!
NÃO sou fã das ações de Hitler mas que ele foi um personagem magnífico não tem como negar.Como pode uma só pessoa ter todo aquele poder de retorica que fez com que contagiasse toda uma massa?Muito eloquente e perspicaz,cantagiou a massa com todo seu discurso nacionalista,fortalecedor e principalmente racial.Uma boa hora para os descontentes de uma Alemanha caída,péssimo para os judeus que passam a serem perseguidos.
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