domingo, dezembro 21, 2008

Beleza(s)

Iniciei minhas férias mentalmente um pouco antes do que profissionalmente, dando-me ao luxo de enfim mergulhar em leituras que nada tinham a ver com trabalho. A lógica recomendaria revisitar minhas prateleiras e sacar livros que dormem ali há anos, aguardando sua vez, mas, como quase sempre acontece, rendi-me aos meus impulsos e acabei mergulhando em uma nova aquisição, O Coração Desvelado, do historiador Peter Gay. Ali, ao estudar a onda autobiográfica que marcou a cultura européia e norte-americana no século XIX, Gay traz à baila, entre tantos personagens fascinantes, os grandes escritores românticos. E ao ler a sua prosa inspirada a respeito de Byron, Coleridge, Shelley e cia., passei da história à literatura, resgatando de sua modorra um outro livro que sempre quis ler, mas ao qual nucna dera a devida atenção: Grandes Livros, de David Denby, a narrativa de um crítico de livros e de cinema que voltou aos bancos de faculdade para revisitar os grandes clássicos, do Antigo Testamento a Virgínia Woolf, aventurando-se por uma galáxia de idéias e formas que constitui um dos grandes tesouros da humanidade.


E como sempre acontece quando leio livros sobre livros, deu-me saudades dos volteios graciosos da boa prosa, dos comentários filosóficos travestidos de narrativa, dos diálogos mais elaborados, enfim,de toda aquela mágica peculiar dos beletristas. Nestes últimos dias, confesso, não tenho me interessado pela política americana, ou pelas crises no Oriente Médio ou mesmo pelos rame-rame cotidiano do noticiário. Análises acadêmicas estão fora de meu horizonte, e quem quer que me peça uma ponderação sobre o mundo de hoje, ou de ontem ou mesmo -- se algum louco tentar -- o de amanhã, terá como resposta muito provavelmente um bocejo. Por algum tempo, a realidade não tem tido mais atrativos que o mundo peculiar da fantasia, com seus heróis, intrigas e idealizações. E daí, quase por acaso, para ter o que ler no ônibus enquanto ia e voltava da formatura de uma turma de alunos, reencontrei o meu velho amigo Balzac, a quem não via desde Ilusões Perdidas -- o tipo de leitura que vale por uma epopéia, tanto que me impressionou há quatro ou cinco anos. Mas Estudos de Mulher, o livrinho que me serviu de companhia, é bem menos ambicioso que a citada aventura de Lucien de Rubempré na cidade grande. São pequenas histórias, ou antes, histórias dentro de histórias, tendo como foco damas das classes altas parisienses. E, contudo, o maior personagem nessas narrativas acaba sendo, para o leitor atento, o próprio autor. Sempre afiado, dono de um vocabulário que faria corar a maioria dos "imortais" de hoje, observador arguto dos caracteres de sua época, é impossível ler Balzac sem se sentir de alguma forma enriquecido pela experiência. E foi lendo-o, nesses contos pequeninos que o retratam tão bem, que acabei me lembrando de um file que só conhecia pelo trailler numa ida recente a um dos cinemas cult da cidade -- um trailler, contudo, que me deixou fascinado pela sua beleza plástica. Trata-se de Cashback, um filme de que você, meu bom leitor, provavelmente nunca ouviu falar e nem ouvirá novamente.

A origem do filme é curiosa. Originalmente era um curta-metragem que depois foi expandido para um filme inteiro, de forma que é possível assistir ao original dentro da versão expandida. E é justamente esse trecho que me chamou a atenção. Primeiro, a história: rapaz é abandonado pela namorada e passa a sofrer de insônia. A fim de melhor aproveitar seu tempo, ele arruma um emprego em um pequeno supermercado no turno da madrugada, onde conhece uma série de figuras pitorescas enquanto tenta se curar da dor de cotovelo: o clássico gerente idiota e prepotente, a jovem operadora de caixa igualmente entediada, a dupla de funcionários brincalhões etc. A monotonia do trabalho logo se torna um peso para ele, que então desenvolve uma nova forma de matar o tempo: desenhista, ele imagina que o tempo pára (o Acordo Ortográfico só vale a partir de amanhã, então me permitam manter o acento que me é tão caro), e se dedica a observar a realidade de uma maneira inusitada. Numa hora, ele livra a sua colega do caixa da presença iritante e assediadora do gerente, pondo-o, inerte que está, na mira de uma caixa de leite congelada no ar. (Pura catarse.) Mas o seu passatempo principal é muito menso trivial: artista que é, o rapaz põe-se a observar os clientes do supermercado, momentaneamente reduzidos a estátuas de carne e osso à sua disposição. E então ele realiza uma espécie de sonho: faz deles, ou melhor, delas, modelos para seus desenhos de nu artístico, o principal objeto de sua fascinação (a capa do filme mostra uma delas).

Dito assim, esta pode parecer a resenha de um filme erótico de terceira categoria, mas o fato é que Cashback, embora certamente lide com o desejo do espectador, é outra coisa. O lirismo desse trecho no mercado, e a própria delicadeza com que o protagonista-narrador, agora mais solitário do que nunca, põe-se a retratar a plástica das desconhecidas que lhe passam à frente todas as noites, tem algo de comovente. O filme, ou melhor, o curta dentro dele, é antes uma espécie de homenagem à beleza feminina do que um pretexto para excitação física. Em certa medida, ele mistura erotismo, arte e reflexão, uma mistura difícil de se obter com proveito e que vale muito a pena conhecer.

É uma pena que o filme não exista em DVD no Brasil. Tive de baixá-lo usando os torrents da vida virtual. Mas fica a recomendação.


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