sábado, novembro 22, 2008

O advogado do diabo

Após ler uma entrevista tão longa e com um tema tão provocante, não pude deixar de perceber algumas coisas: primeiro, que os repórteres da Der Spiegel são dois idiotas que não estavam à altura da pauta que pegaram; segundo, que o entrevistado percebeu logo isso e brincou com o pobre diabo. Ainda assim, dado o tema em pauta e a frequente (que saudade da trema...) demonização de certas figuras históricas, o desafio proposto por Vergès é válido e deve ser encarado. De minha parte, como leigo na área, sempre me perguntei isso: como um advogado lida com clientes acusados, e por vezes comprovadamente culpados, de atrocidades? Eis algo que ainda pretendo compreender.

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22/11/2008
'Não existe essa coisa de mal absoluto', diz Jacques Vergès, o 'advogado do diabo'

Brita Sandberg e Eric Follath
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2008/11/22/ult2682u998.jhtm

Ele se encontrou com Mao Tsé-tung, Pol Pot e Che Guevara. Ele defendeu 'Carlos, o Chacal' e o criminoso de guerra nazista Klaus Barbie. Jacques Vergès, 83 anos, provavelmente é o advogado mais famoso do mundo. Seu mais recente cliente é Khieu Samphan, o ex-chefe de Estado do Camboja sob o Khmer Vermelho, que está sendo julgado por crimes de guerra.

Spiegel: Sr. Vergès, o senhor é atraído pelo mal?

Jacques Vergès:
A natureza é selvagem, imprevisível e terrivelmente sem sentido. O que distingue os seres humanos dos animais é sua capacidade de falar em prol do mal. O crime é um símbolo de nossa liberdade.

Spiegel: Esta é uma visão de mundo cínica.

Vergès:
Uma realista.

Spiegel: O senhor defendeu alguns dos piores assassinos em massa na história recente e foi chamado de "o advogado do diabo". Por que se sente atraído por clientes como Carlos e Klaus Barbie?

Vergès:
Eu acredito que qualquer um, independente do que possa ter feito, tem direito a um julgamento justo. O público é sempre rápido a atribuir o rótulo de "monstro". Mas monstros não existem, não existe essa coisa de mal absoluto. Meus clientes são seres humanos, pessoas com dois olhos, duas mãos, um gênero e emoções. Isso é o que os torna tão sinistros.

Spiegel: O que quer dizer?

Vergès:
O que era tão chocante a respeito de Hitler, o "monstro", é que ele amava muito a sua cadela e beijava as mãos de suas secretárias - como sabemos a partir da literatura do Terceiro Reich e do filme "Der Untergang" ("A Queda"). O interessante a respeito dos meus clientes é descobrir o que os leva a cometer estas coisas horríveis. Minha ambição é iluminar o caminho que os levou a cometer esses atos. Um bom julgamento é como uma peça de Shakespeare, uma obra de arte.

Spiegel: O senhor está atualmente no palco no Teatro Madeleine, em Paris, como o principal personagem de um monólogo que você escreveu.

Vergès:
É a respeito de mim, é claro, sobre a profissão de advogado e a natureza dos julgamentos. Em cada julgamento, um drama se desdobra diante do público, um duelo entre a defesa e a acusação. Ambas contam histórias que não são necessariamente verdadeiras, mas possíveis. No final uma é declarada a vitoriosa, mas isso não necessariamente tem algo a ver com justiça.

Spiegel: Existe alguém que o senhor não defenderia por princípio?

Vergès:
Um dos meus princípios é não ter princípios. Este é o motivo para eu não recusar ninguém.

Spiegel: Digamos, Adolf Hitler...

Vergès:
Eu teria defendido Hitler. Eu também aceitaria Osama Bin Laden como cliente, até mesmo (o presidente dos Estados Unidos) George W. Bush - desde que se declarasse culpado.

Spiegel: O senhor não pode mencionar seriamente Hitler, Bin Laden e Bush, e seus erros, na mesma frase.

Vergès:
Todo crime é único, assim como cada criminoso. Isso por si só torna as comparações impossíveis.

Spiegel: Seu mais recente cliente é Khieu Samphan, o ex-chefe de Estado do infame reino do Khmer Vermelho, um homem com o qual o senhor está ligado por um passado espantoso. O senhor o conheceu em Paris há mais de 55 anos, onde ambos pertenciam a um grupo comunista. Khieu Samphan deverá ser julgado em breve em Phnom Penh, onde enfrentará acusações de genocídio.

Vergès:
Não ocorreu genocídio no Camboja.

Spiegel: Sério? Cerca de 1,7 milhão de pessoas morreram em menos de quatro anos em conseqüência do reinado de terror do Khmer Vermelho.

Vergès:
Esses números são exagerados. Ocorreram muitos homicídios, e alguns deles são imperdoáveis, o que é algo que meu cliente também diz. E também ocorreu tortura, o que é indesculpável. Todavia, é errado definir isso como genocídio deliberado. A maioria das pessoas morreu em conseqüência de fome e doença.

Spiegel: Mas o regime é o único responsável por essas dificuldades.

Vergès:
Isto precisamente não é o caso. Foi conseqüência da política de embargo dos Estados Unidos. A história do Camboja não começou quando o Khmer Vermelho chegou ao poder em 1975. Houve um prólogo sangrento para este processo: os americanos, sob o presidente Richard Nixon e o conselheiro de segurança nacional, Henry Kissinger, sujeitaram a população civil do Camboja a um bombardeio brutal no início dos anos 70.

Spiegel: O senhor poderia convocar Henry Kissinger como testemunha no julgamento do Khmer Vermelho.

Vergès:
E me reservo o direito de fazê-lo, mas duvido que ele apareceria. Além disso, nem sei ao certo se o julgamento em Phnom Penh ocorrerá.

Spiegel: Como o senhor pode dizer isso? A ONU e o governo do Camboja já gastaram mais de US$ 50 milhões nos preparativos para o julgamento. O julgamento de Kaing Guek Eav, também conhecido como camarada Duch, que comandou a pior prisão de tortura do Khmer Vermelho, deverá começar em breve.

Vergès:
Pode ser que o julgamento do Duch comece em breve, mas não os julgamentos contra os outros quatro prisioneiros: o ex-segundo em comando do Khmer Vermelho, Nuon Chea, os ex-ministros Ieng Sary e Ieng Thirith, e o ex-chefe de Estado, Khieu Samphan. O caso nem chegará a julgamento, porque o tribunal em Phnom Penh já perdeu sua credibilidade e legitimidade.

Spiegel: Por quê?

Vergès:
Aqui estão dois exemplos do diletantismo dos promotores: Ieng Sary já foi sentenciado por um tribunal cambojano e perdoado por decreto real em 1996. Colocá-lo em julgamento uma segunda vez, pelos mesmos crimes, contradiz todos os padrões legais. E meu cliente deve ser solto, porque o tribunal ignorou regras básicas de defesa. Apesar de o tribunal reconhecer as três línguas do processo como sendo equivalentes, ele não considerou necessário traduzir para o francês mais que um fragmento dos documentos escritos em khmer. É impossível para mim defender meu cliente sem conhecimento desta evidência...

Spiegel: ...o que o senhor expressou de forma estridente no tribunal de Phnom Penh, antes de abandonar a audiência e bater a porta atrás de você.

Vergès:
E até mesmo tive que ouvir um juiz recomendar que meu cliente considerasse a contratação de um novo advogado. Um ultraje!

Spiegel: O senhor é fundamentalmente contrário a políticos serem julgados por assassinato em massa ou violação da lei internacional?

Vergès:
Este não é o problema principal. O julgamento, perante o Tribunal de Crimes de Guerra em Haia, de (Slobodan) Milosevic (o ex-presidente sérvio)...

Spiegel: ...criminoso de guerra sérvio, ao qual o senhor também prestou consultoria legal...

Vergès:
...era uma farsa. Este tipo de coisa sempre cheira a justiça do vitorioso. A mesma coisa se aplica aos Julgamentos de Nuremberg, mas pelo menos certas regras foram seguidas a risca lá. Por exemplo, Hjalmar Schacht, o ex-ministro da economia do Reich alemão, foi absolvido de todas as acusações. Meu cliente Khieu Samphan também era responsável pelos assuntos econômicos, mas em comparação a Nuremberg, nós nos vemos em um estado de total ilegalidade perante o tribunal em Phnom Penh. O que está acontecendo aqui beira um linchamento.

Spiegel: Sua grande simpatia visível pelo Khmer Vermelho teria algo a ver com sua história pessoal? O senhor conheceu (o líder do Khmer Vermelho) Pol Pot e Khieu Samphan em Paris, nos anos 50.

Vergès:
Eu fui um líder estudantil comunista na época, e estava em contato com muitos estudantes estrangeiros dentro do meio esquerdista. É verdade que também conheci Saloth Sar, que posteriormente passou a se chamar Pol Pot. Ele era um jovem que adorava Rimbaud e ficava profundamente comovido com seus poemas. Ele também tinha senso de humor.

Spiegel: Humor? Ele foi um assassino em massa. Fora Hitler, Mao e Stalin, provavelmente o pior do último século.

Vergès:
Uma coisa é clara, que Khieu Samphan era o mais intelectual dos estudantes khmer que estudavam em Paris com bolsas fornecidas pelo rei Sihanouk. Ele escreveu uma dissertação inteligente sobre o desenvolvimento econômico no Camboja. É verdade que eu contribuí, de certa forma, para sua politização. Saloth Sar e Khieu Samphan, como outros, estavam à procura de modelos para conduzir a luta anticolonial em seu país de origem. Khieu Samphan se tornou um marxista.

Spiegel: Quando o senhor o viu de novo?

Vergès:
Apenas após 2004. Ele me disse, na época, que esperava enfrentar as acusações. Então fui ao Camboja e nos sentamos por quatro dias em sua casa, próxima da fronteira tailandesa, para chegarmos a uma estratégia de defesa.

Spiegel: E que linha ela segue?

Vergès:
Simplesmente, meu cliente nunca ocupou uma posição de autoridade na polícia ou forças de segurança do país. Seu papel era meramente técnico. Como chefe de Estado, ele representava o país, mas não foi responsável pela repressão. Ele é uma pessoa gentil. Ele é inocente.

Spiegel: O senhor realmente acredita nisso?

Vergès:
Sim, é claro. Tudo o que ele queria fazer era abolir uma casta política, não os cidadãos que faziam parte dela. Ele era um idealista que buscava idéias revolucionárias. Você sabe, o Ocidente está constantemente tentando censurar a todos, mas deveria fazê-lo quando, como no caso dos Estados Unidos, matou milhares de civis em guerras com a suposta meta de disseminar a democracia, e quando é responsável por coisas como Guantánamo e Abu Ghraib? Ou quando um país como a França está envolvido em tamanha sujeira como na Argélia?

Spiegel: Em 1957, o senhor defendeu muitos membros da Frente Nacional de Libertação (FNL) argelina, ganhando renome como advogado. Seus clientes usavam métodos de terror e revolta contra seus mestres coloniais franceses. O senhor declarou sua solidariedade a eles.

Vergès:
Sim, eu lhes disse na época: eu entendo sua raiva, eu entendo sua luta, e apóio o que estão fazendo. Eu também endossei a violência que empregaram. Eu via a FNL como uma agente de resistência.

Spiegel: O senhor sofreu tanto em sua vida a ponto de demonstrar tamanho entendimento dos atos de violência?

Vergès:
Sabe, parece estar na moda usar a própria condição de vítima como justificativa para as ações de alguém. Eu abomino isso! É verdade que meu pai teve que renunciar ao seu posto de cônsul na Indochina colonial por ter se casado com uma mulher vietnamita. Ele então nos levou a Reunião, a um departamento de ultramar francês além da costa africana, onde trabalhou como médico. Eu sou uma criatura de origem dual, mas não tive uma existência torturada. Eu não nasci com raiva nas minhas entranhas. Eu apenas adquiri essa raiva sozinho.

Spiegel: Todavia, os filhos protegidos das famílias de Paris provavelmente tiveram experiências diferentes.

Vergès:
É claro. Eu conheço discriminação desde minha infância. Certa vez, em Madagascar, eu vi um casal europeu incrivelmente gordo sendo puxado em um riquixá por um homem esquelético local. Quando queriam parar, eles simplesmente chutavam o homem. Eles não tratariam uma mula daquela forma. Eu experimentei o significado do colonialismo desde a infância. E desprezo ele desde pequeno.

Spiegel: O senhor embarcou em um navio com destino à Europa em 1942 e se juntou à resistência francesa contra os nazistas. Por quê?

Vergès:
Aos 17 anos, em 1942, eu lutei com as Forças Francesas Livres de Charles de Gaulle contra a ocupação nazista. Porque eu queria defender a França que, fora a França que eu desprezo como potência colonial, eu passei a valorizar e amar: a França de Montaigne, Diderot, Robespierre e da Revolução. E gostei muito de servir sob De Gaulle, sob alguém que tinha sido sentenciado à morte pelo governo francês. Nós fomos treinados na Inglaterra e na Argélia, e lutamos na Itália e na França.

Spiegel: Não foi algo extremamente perigoso?

Vergès:
Sim, no princípio foi. Mas eu sofri apenas um único ferimento naquela época, um corte profundo na mão, bem aqui, que aconteceu enquanto eu estava abrindo ostras além da Ile d'Oléron.

Spiegel: O senhor aparentemente tinha um anjo da guarda.

Vergès:
Eu sou imune a balas, vamos colocar desta forma.

'Eu transfiro eventos para fora da sala do tribunal'
Spiegel: Em seu primeiro grande julgamento como advogado, o senhor assumiu um caso perdido em 1957: a defesa da combatente da resistência argelina Djamila Bouhired, que foi acusada de realizar atentados a bomba que também mataram civis.

Vergès:
Eu estava completamente do lado dela. Ela era uma patriota. Ela foi brutalmente torturada na prisão.

Spiegel: No julgamento, o senhor introduziu, pela primeira vez, sua agora famosa estratégia de ruptura, ou "defesa de ruptura", o princípio de lançar uma defesa com um contra-ataque político. Por quê?

Vergès:
Os outros advogados franceses que estavam encarregados da defesa em Argel tentaram abrir um diálogo com os juízes militares de lá. Os juízes viam a FNL como um grupo criminoso. Mas os réus argelinos viam seus ataques como um ato necessário de resistência. Em outras palavras, não havia consenso em torno dos princípios que deviam ser aplicados para se chegar a um veredicto. Para mim, significava que eu tinha que transferir os eventos para fora da sala do tribunal e conquistar a opinião pública para os réus.

Spiegel: Funcionou. Após uma campanha internacional que o senhor ajudou a organizar, Bouhired, que foi sentenciada à morte, foi solta, e posteriormente se tornou sua esposa. Em março de 1963, o senhor foi à China acompanhado dela para beber chá com Mao Tsé-tung. Como o senhor conseguiu uma audiência com o Grande Timoneiro?

Vergès:
Na época eu dirigia um jornal na Argélia, o "Révolution Africaine", que era apoiado pela FNL. Os chineses convidaram membros da equipe editorial para irem a Pequim. Nós tivemos muitas discussões políticas sérias. Mas o lado humano de Mao me surpreendeu. Havia algo tocando nele. Ele me perguntou, com toda a seriedade, se pretendia me casar com Djamila. Eu disse que sim, e ele respondeu: "Faça isso. Certamente será um relacionamento difícil, mas o amor é uma força subversiva".

Spiegel: O senhor ainda se sente tão positivo em relação a Mao, dado o conhecimento que temos hoje, o conhecimento das 30 milhões de mortes por fome pelas quais ele já era responsável na época, em conseqüência de seu "Grande Salto à Frente"?

Vergès:
Eu acredito que todo mundo tem qualidades e fraquezas. Eu tive a sorte de conhecer apenas o lado positivo de Mao.

Spiegel: O senhor também conheceu Che Guevara.

Vergès:
Sim, em Paris. Ele estava retornando de uma viagem à Suíça. A primeira esposa dele trabalhava em nossa redação. Ele era impressionante, um homem com um carisma incrível.

Spiegel: O senhor posteriormente foi suspeito de ter ajudado pessoalmente terroristas. Isso foi verdade? O senhor já pensou em se juntar às causas de seus clientes?

Vergès:
Eu tenho respeito pelo que muitos deles fizeram, mas não o faria pessoalmente.

Spiegel: Respeito por terroristas? Como é possível conciliar isso com sua consciência, com sua percepção da lei?

Vergès:
Magdalena Kopp, por exemplo, a parceira de vida de Carlos por muitos anos, era uma jovem alemã que estudou fotografia e queria se tornar jornalista. Então ela abandonou tudo e foi ao Oriente Médio lutar ao lado dos palestinos oprimidos. Aquele foi um ato extremamente abnegado, pelo qual só posso sentir simpatia.

Spiegel: Mas, como advogado, o senhor não está cruzando uma linha vermelha com esses sentimentos?

Vergès:
O que exatamente essa linha vermelha significa? É minha obrigação, como advogado, defender qualquer um, especialmente aqueles com as acusações mais sérias contra eles. Segundo, eu não posso me identificar com esses atos. Se meu cliente Klaus Barbie me pedisse para defender a superioridade da raça ariana em meus argumentos finais, eu teria dito a ele: sinto muito, não posso fazer isso. Eu sou Maître Vergès, um advogado com licença para praticar em Paris, não um Obersturmführer.

Spiegel: O senhor hesitou bastante antes de aceitar a defesa de Klaus Barbie, o ex-chefe da Gestapo, o "Açougueiro de Lyon"?

Vergès:
Nem um segundo. No julgamento de Barbie em Lyon, em 1987, eu enfrentei 39 advogados no lado oposto e o juiz. Isso por si só era motivo suficiente para assumir a defesa de Barbie.

Spiegel: O senhor precisou de proteção policial após apontar um espelho para a França na sala do tribunal e acusar muitos franceses de terem colaborado com os nazistas.

Vergès:
A beleza de um julgamento pode ser medida pelo rastro que deixa para trás, muito após a sentença ter sido pronunciada.

Spiegel: E qual foi sua impressão de Barbie?

Vergès:
Ele era um homem surpreendentemente comum, sem personalidade notável. Mas, é claro, é preciso não esquecer que se passaram mais de 40 anos entre os crimes que ele cometeu e o julgamento. Ele não era mais o mesmo homem.

Spiegel: O senhor deve saber, já que também desapareceu sem deixar traço nos anos 70. Sem nem mesmo avisar sua família, o senhor sumiu por oito anos. Até hoje, ninguém sabe onde o senhor esteve naquela época.

Vergès:
André Malraux já disse que a verdade sobre um homem está principalmente naquilo que ele não diz...

Spiegel: ...em outras palavras, o senhor não tem intenção de algum dia esclarecer este mistério?

Vergès:
E por que deveria? É extremamente divertido o fato de ninguém, em nosso moderno Estado policial, não conseguir saber onde estive por quase 10 anos. Já foi conjeturado que passei algum tempo com o Khmer Vermelho no Camboja, na Palestina, na China e na França. Eu adorei ler meus obituários. Eles falavam de um jovem altamente dotado que tinha partido deste mundo.

Spiegel: O senhor assume muitos de seus casos sem pagamento. O senhor defendeu prostitutas e crianças pobres. Como o senhor financia seu escritório de advocacia?

Vergès:
Não se preocupe. Eu também represento algumas empresas industriais e elas me pagam muito bem, então certamente há algum dinheiro sobrando.

Spiegel: Também há rumores de que o senhor está na folha de pagamento de potentados africanos ou lhes prestando consultoria. O político congolês Moise Tshombé, que esteve envolvido no assassinato de (Patrice) Lumumba (o ex-primeiro-ministro congolês), seria um deles, e que o senhor teria processado a Anistia Internacional em nome do violento ex-presidente de Togo, Gnassingbé Eyadéma?

Vergès:
...porque ela alegou coisas que não eram verdadeiras. Mesmo boas organizações devem respeitar certos limites.

Spiegel: Eyadéma, Tschombé e sua laia... não são pessoas sobre as quais o senhor poderia dizer: eu não quero ter nada a ver com elas?

Vergès:
Sim, eu poderia fazer isso, mas seria a mesma coisa que um médico dizer ao seu paciente: "Sabe de uma coisa, você tem Aids, mas não gosto de negros. Eu acho que são criminosos e isso me enoja, então não vou tratar você".

Spiegel: Um médico deve fornecer ajuda, mas como advogado, o senhor não é obrigado a aceitar todo cliente.

Vergès:
Se você encontrar um médico que não consegue ver sangue, pus ou ferimentos abertos, ele está na profissão errada. Se você encontrar um advogado que não goste de criminosos ou ditadores, é a mesma coisa.

Spiegel: "Minha moral e estar contra toda moral, porque ela busca amarrar a vida", o senhor escreveu certa vez.

Vergès:
Sim, em um livro autobiográfico ao qual batizei como um jornalista certa vez me chamou, "Le Salaud lumineux", ou "O Bastardo Brilhante".

Spiegel: Pode ser que o senhor use sua profissão principalmente como uma permanente provocação intelectual.

Vergès:
Eu a uso principalmente para permanente enriquecimento intelectual. Nossa visão de mundo muda com o tempo, porque o vemos sob diferentes pontos de vista. Graças à minha profissão, eu agora estou familiarizado com a visão de mundo do ponto de vista do terrorista e do policial, do criminoso e do idiota, do virgem e do ninfomaníaco. E posso lhe dizer que isso aprimora a visão própria de uma pessoa.

Spiegel: Maître Vergès, obrigado por esta entrevista.

Tradução: George El Khouri Andolfato

3 comentários:

Niña disse...

Nossa, adorei, os repórteres são completos idiotas, mas o cara é um gênio!!! Phantastisch!!!
Desde pequena sempre adorei filmes ligados a julgamentos, coisas do gênero, e foi isso que me levou a pensar em fazer direito um dia, mas desisti a tempo, até porque nem sempre a profissão é tão interessante assim... (risos)... e no fundo não era para mim...
Mas o cara é um profissional, o bom profissional, o bom advogado tem que estar disposto a defender qualquer um que seja, sem levar em consideração “questões morais”...
E isso, acredito eu, é que é o desafio... e tal tipo de coisa é o que motiva alguém...
Bem, o cara brilhante, e com um senso de humor espetacular.. têm uns trechos assim meio “sarcásticos” super legais...
Mas, em especial, gostei da parte que ele diz: “Eu não nasci com raiva nas minhas entranhas. Eu apenas adquiri essa raiva sozinho”, mas especificamente essa ultima frase... hehe

Beijos,

Paula.

Anônimo disse...

Um dos caras mais brilhantes que deve estar vivo...essa história de ter ficado sumido oito anos e ninguém saber...é muuuito louco !

Anônimo disse...

Inteligente e tal... mas é claro que a conversa de que ele é indiferente aos julgamentos morais é conversa para boi dormir. Não é que ele seja capaz de defender qualquer atrocidade, ele é capaz de defender as atrocidades com as quais ele concorda, mesmo que parcialmente. Ele não seria capaz de defender o estruprador pedófilo da sua própria filha ou filho. É óbvio que existe um viés ideológico, que fica claríssimo (menos, é claro, para os entrevistadores) nas suas declarações.