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25/03/2008
O protesto no mundo tem novas faces
As novas formas coletivas de resistência ao poder
Silvia Blanco
Em Madri
Uma multidão furiosa atira pedras contra os escudos da polícia antidistúrbios. A bandeira chinesa queima e sai fumaça das lojas de souvenires para turistas. Em algumas das confusas (e raras) imagens que chegam de Lhasa, a capital do Tibete, distingue-se o açafrão das túnicas dos monges budistas. A mesma cor que ensangüentou as ruas em setembro em Yangun, capital de Mianmar, antiga Birmânia. Como os birmaneses, os monges tibetanos iniciaram na semana passada manifestações pacíficas para pedir liberdade. A repressão militar fez o resto e milhares de pessoas enfrentaram a polícia para apoiá-los, assim como em Katmandu ou Déli. Eles não são os únicos que abandonaram seus pacíficos mosteiros para sair à rua.
Os estudantes do Irã e da Venezuela, os advogados do Paquistão ou uma anônima funcionária pública belga foram protagonistas dos últimos protestos que tumultuaram esses países. As razões que as movem são muito diferentes e complexas. Os contextos, díspares. Mas esses exemplos revelam que as faces por trás dos cartazes mudaram. "Está ocorrendo um novo tipo de protesto que já não é liderado por grupos bem identificados, sejam ideológicos, étnicos, religiosos ou de classe, mas por outros mais amorfos, que se movem por valores e escapam dos estereótipos", comenta Ivan Brescoe, especialista em Estados em crise do grupo de pensadores Fundação para Relações Internacionais e o Diálogo Exterior (Fride).
Ativista em Nova Déli, Índia, protesta contra ação chinesa no Tibete |
Essa tendência explicaria por que um grupo profissional com certo poder como os juízes e advogados do Paquistão entrou em ação e deixou seus escritórios para terminar a pauladas nas ruas ou na prisão. "Os advogados fizeram mais pelo Paquistão do que todos os partidos de oposição juntos em vários anos", explica por telefone Ali Dayan Hassan, delegado da organização Human Rights Watch em Islamabad.
Uma das chaves para entender como os advogados conseguiram enfrentar o regime e incitar a repulsa dos demais grupos sociais foi sua homogeneidade, embora não política. Estão bem organizados em colégios profissionais, conhecem profundamente as normas -e as brechas- legais. Por isso, quando o general Musharraf decretou em novembro o estado de exceção e simplesmente decapitou a Suprema Corte para substituí-la por juízes afins e legitimar sua reeleição, os advogados entraram em cena.
Também não foi a outrora ruidosa oposição ao presidente Hugo Chávez, atolada em divisões internas, quem conseguiu deter o artífice da "revolução bolivariana". "Eu tinha 14 anos quando Chávez chegou ao poder", conta o estudante de direito Yon Goicoechea, de 23 anos, de Caracas. Ele é um dos líderes universitários que encabeçou o "não" à reforma da Constituição venezuelana, que, entre outros aspectos, tornava a reeleição presidencial ilimitada. "Ele não pode dizer que representamos a oligarquia nem nos ligar à corrupção do passado. Somos novos. Crescemos com ele", declara. O sucesso dos estudantes consistiu no fato de terem optado por sair da trincheira dialética entre o "Alô Presidente" e a oposição para brandir outro discurso: "O referendo parecia uma questão pessoal, queríamos nos afastar do 'sou chavista' ou 'sou antichavista'. Apostamos no 'sou cidadão'", resume Goicoechea.
"Nem guerra nem fascismo", "Viva livre ou morra", "As mulheres devem decidir seu destino, e não o Estado". Lemas mais duros, outro cenário. Isto é Teerã. Em 9 de dezembro, centenas de estudantes se manifestaram na universidade. Não ocorre com freqüência. Enquanto o regime realiza eleições legislativas que a maioria vive com apatia, a liberdade vai sendo gestada em outra parte. O farsi já é o quarto idioma dos blogs na Internet. Há mais de 500 mil blogs de iranianos, um tumulto virtual de vozes que compõem uma nova forma de protesto político que escapa à censura dos aiatolás. "É muito mais difícil controlar os blogs do que os jornais. Há cem diários iranianos proibidos. Além disso, os blogs fortalecem a ligação com o exílio", explica Brescoe.
"O modo como os jovens de hoje protestam é muito diferente do da geração anterior. Os primeiros o faziam do modo clássico: com manifestações, procurando uma mudança de regime, a revolução. Agora a intenção é lutar por mais liberdade social e política, e não por uma completa revisão do sistema", conta por e-mail Azadeh Moaveni, jornalista da revista "Time", autora de "Lipstick Jihad" [A jihad de batom], de 2005, um romance sobre a busca por identidade de uma jovem que, depois de viver exilada na Califórnia, volta a uma Teerã decadente.
Um dos fóruns mais animados é o Global Voices, visitado por cerca de 50 mil pessoas por dia. "A Internet proporcionou uma maneira simples e barata de falar sobre a injustiça para ativistas e cidadãos do mundo todo", diz Georgia Popplewell, uma das editoras. Que digam isso a Marie-Claire Houard, uma funcionária pública belga de 45 anos que em novembro lançou de seu computador pessoal uma mensagem de censura aos políticos, incapazes de chegar a um acordo depois de seis meses sem governo. Recebeu o apoio de 35 mil compatriotas, flamengos e francófonos, que saíram às ruas para mostrar sua indignação.
Mas a Internet não é o paraíso do novo manifestante. "Alguns governos em países onde há repressão instalam severas restrições no acesso à rede", explica Popplewell. O caso de Mianmar é exemplar. A junta militar da antiga Birmânia fechou as fronteiras físicas e virtuais em setembro. Só quando os monges, um grupo de grande legitimidade social, decidiram dar um soco na mesa um punhado de imagens chocantes deu a volta ao mundo. Depois os cidadãos conseguiram filtrar a informação: gravaram com seus celulares, tiraram fotos, colheram provas para mostrar o que estava acontecendo.
O protesto dos monges birmaneses teve um componente "simbólico, se elevou como a voz popular e chamou muita atenção em parte pelo grande impacto visual, por causa das túnicas cor de açafrão", comenta Viçens Fisas, diretor da Escola Cultura de Paz. Os internautas e os monges sabem que chamar a atenção também é protestar: não parece por acaso que o desafio dos tibetanos ao governo chinês, que provocou os distúrbios mais graves em 19 anos, ocorra quando o mundo inteiro observa a China como anfitriã dos Jogos Olímpicos.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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