segunda-feira, novembro 13, 2006

Amores e águas turvas

Bridge over troubled water, de Paul Simon e Art Garfunkel, é uma melodia muito conhecida, comum em inúmeras coletâneas baratas de orquestras obscuras. É daquele tipo de música que, se ouvida mais de uma vez, "gruda" no cérebro e nos arrasta para um replay mental que pode durar dias a fio. Tendo-a ensaiado para um coral improvisado há mais de uma semana, eu mesmo ainda estou pagando esse preço, ouvindo-a internamente nas mais diversas horas do dia. Apesar desse "incômodo" -- é uma bela canção, embora repassá-la 3600 vezes não estivesse no plano original --, há um outro motivo pelo qual ela é notável: sua letra.

Antes, uma explicação. Boa parte das canções pop pode ser resumida a uns poucos tópicos de apelo supostamente universal e que se repetem, repetem, repetem... Talvez os mais comuns sejam a paixão não correspondida, a "dor-de-cotovelo", o desejo de desforra, o ciúme a tristeza pela perda, enfim, uma infinidade de variações sobre o "amor". Algumas dessas obras são lindíssimas, um sem-número é de composições banais, mas o que chama a atenção é que versam quase sempre sobre apenas um tipo de amor, o chamado "amor romântico". Essa preferência até se justifica, pela intensidade que caracteriza esse sentimento e o lugar de destaque que ele tem em nossa cultura nos últimos séculos. Porém, em todos os tempos aqueles que procuram um sentido maior para a vida humana não deixaram de observar que esse tipo de amor, tal como é usualmente compreendido, está longe de ser o mais nobre dentre os sentimentos. As razões disso não precisam ser explicadas ao leitor atento, mas uma em particular diz respeito à música de Simon & Garfunkel: a posse.

Não me refiro ao ciúme, aquela vigília contra a concorrência que a Mãe Natureza nos legou e que tantas vezes obscurece o espírito e a alegria de viver. Falo, simplesmente, da condicionalidade, o bom e velho "toma-lá-dá-cá" implicado na paixão, mas que se oculta no auge dessa emoção, quando o apaixonado se sente capaz de mover céus e terras pelo outro sem esperar nada em troca. Ora, esse altruísmo é sincero, sem dúvida, mas costuma ser ilusório, já que toda essa afeição intensa, flamejante, precisa de reciprocidade, do contrário mingua e morre (muitas vezes de forma dolorosa); se correspondida, dá e passa, de modo que, por si mesma, não se sustenta.
Então, se é assim, o que resta? O que lhe falta? E como reconhecer a diferença?

Esse é tema para mentes melhores e corações mais experientes que o deste blogueiro. Mas ficam as perguntas, minhas e de bilhões, sobre como podemos passar da condicionalidade à verdadeira generosidade que constitui o amor genuíno, mesmo em sua forma conjugal. E enquanto esse mistério não se resolve, vamos tateando pela vida, tentando descobrir na prática que amor é esse que tantos trabalhos nos damos para oferecer e pelo qual eventualmente nos deixamos iludir. E se um dia conseguirmos realmente desvendá-lo, aí, quem sabe, teremos condição de descobrir algo que vá além dele, um amor que, afinal, seja Amor.

Ponte sobre as águas turvas
(Adaptação de Evê Sobral)

Se a solidão for demais e em teu coração
não sentires a paz, eu quero estar bem perto
Como alguém que torce por teu bem

Como ponte sobre as águas turvas
Hás de me encontrar


Se a luz que tens se apagar e a escuridão,
meu Pai, ofuscar teu olhar
Verei a luz nas trevas do coração
Com a mão na tua mão

Como ponte sobre as águas turvas
Hás de me encontrar


Vamos navegar, navegar
Em busca de um lugar para a gente sonhar
Somos iguais, eu já sonhei também
Com esta mesma paz, e se acaso precisares de alguém
Hás de me encontrar

Como ponte sobre as águas turvas
Hás de me encontrar

Um comentário:

Anônimo disse...

Lembrou-me uma certa ponte, umas certas 4 "noites brancas"!

"Era uma noite prodigiosa, uma dessas noites que apenas são possíveis quando somos jovens, amigo leitor. O céu estava tão cheio de estrelas, tão luminoso, que quem erguesse os olhos para ele se veria forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens irritados e capri­chosos? A própria pergunta é pueril, muito pueril, mas oxalá o Senhor, amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!..."