sábado, abril 23, 2005

Limites

Primeiro a dor de cabeça. Discreta, a princípio, das que somem sozinhas após alguns minutos. Mas não quis partir, antes foi ficando, e ficando... Logo, a estranha sensação de um areal recém-surgido na garganta lhe fez companhia. Depois, o enfraquecimento da disposição geral, como se a energia habitual estivesse se dissipando. A dor de cabeça agora parece um eco reverberando pelo crânio, acelerando o cansaço físico. Aos poucos, o corpo se ressente da rotina diária e pede repouso mais cedo. A mente parece fazer coro com ele, a custo absorvendo qualquer leitura e fazendo esforço redobrado por um pensamento. Os olhos, exaustos, ameaçam lacrimejar diante de maior concentração. Vêm então os espirros, a tosse e o golpe fatal, a coriza.

O corpo não vai bem. Precisa diminuir o ritmo, encontrar novas forças, realentar-se. Mas não o fará agora. O processo costuma ser lento, gradual, e ainda por alguns dias os sintomas serão um incômodo, eventualmente até um impedimento para certas atividades. Contudo, a mente se rebela. Também cansada, lenta, ela volta seu foco para si mesma e a relativa impotência em que se encontra. Ativa que é no dia-a-dia, cheia, se não propriamente de idéias, pelo menos de fantasias, ela percebe o quão dependente é, prisioneira de uma máquina que não vai bem. A doença avança, toma espaços, vai espalhando suas perturbações pelos vários órgãos e percepções, minando os empreendimentos da mente desconsolada. É difícil criar quando a maior parte da atenção está concentrada no nariz, ou na garganta, ou na testa que parece latejar em ritmo cruel. Ainda assim, ela insiste, procura ignorar os corrimentos, o frio, a dor, o areal, em busca de qualquer coisa que tome sua atenção e a estimule. Quase certamente não virá nenhuma idéia original,mas sempre se pode elaborar com o material já guardado. Ao pensar em alguma atividade, imediatamente registra o protesto do corpo. Ele quer ficar inerte, esperando a recuperação e a cura; ela se recusa a jogar fora seu tempo com tais exigências. Há tanto para se fazer e meditar, e perder tempo com descanso! Não, não é possível. Deixar-se abater por tão pouco! Resistir, é preciso resistir...

Na pouca energia que lhe resta, ela própria se examina e recorda tudo quanto já deixou escapar. Um torvelinho de pequenas memórias se ergue em seu interior, e num lapso ela repassa tudo que poderia ter sido e se esqueceu... As idéias fulgurantes abatidas pela inanição, projetos deixados de lado após os iniciais arroubos de entusiasmo, os poemas de dois versos jamais desenvolvidos, a pintura cuja técnica não se aprendeu, as frases silenciadas, as réplicas brilhantes e tardias, as cobiças tão repetidamente insatisfeitas, as declarações jamais entregues, cartas sinceras escritas apenas com a tinta de intenção e o resultado da fantasia. E, no fundo de tudo, as pilhas de leituras não completadas, ou nem iniciadas, que agora se amontoam em caixas de arquivos e prateleiras já abandonadas; e a noção tristonha, refletida nas fileiras de lombadas familiares, da extensão dos conhecimentos agora esquecidos... Quantos desses fantasmas a rondar os subterrâneos de uma mente em luta com seu próprio hospedeiro? Impossível dizer, seu nome é Legião. E, todavia, cada um desses elementos tão variados — possibilidades de vida e ação — teve o mesmo berço, ao mesmo tempo tão raso e obscuro, de meu próprio ser. Difícil dizer como nascem, menos ainda como vêm à tona. Não obstante, de alguma forma continuam lá, ressurgindo vez por outra em memórias fragmentadas e fugazes, deixando rastros tênues quase nunca seguidos. Do mais radioso lance de inspiração não desenvolvida ao pensamento mais vulgar, todos talvez voltem para seu abismo primordial, a cada dia, em incontáveis horas. Todo um tesouro que se define pela perda, pela falta, pela dissipação. Por aquilo que não pôde ser, nem poderia ter sido.

Após se debater em vão com seus próprios fracassos, é impossível à mente continuar. O mal-estar físico já lhe nubla os pensamentos mais elementares. É preciso recolher-se, e tudo esquecer novamente.

sábado, abril 16, 2005

Apetites

Os apetites são caprichosos. Vêm e vão sem grande lógica, invadem-nos sem pedir licença e, com certa freqüência, vão-se da mesma forma, saciados ou não. Alguns orgulhosos hão de querer dar-lhes uma satisfação póstuma, até exagerada, em compensação à espera que tiveram de suportar enquanto seus apetites lhes estalavam o látego. Que seja. Nem por isso o fenômeno perde em interesse: pois o mesmo indivíduo que num momento se sente bem e auto-suficiente, no outro se aflige por alguma vontade misteriosa que lhe surgiu à cabeça, insistente e sempre a cobrar providências. O objeto é sempre variável, pode ser o mais inocente doce ou a mais arriscada volúpia, mas o processo não muda muito. O desejo é o irmão siamês da razão. Possivelmente o irmão mais forte.

Dentre as incontáveis linhagens dos apetites súbitos, uma me tem sido recorrente de uns tempos para cá. Mais pacífica que a média, é até fonte de prazer — por si mesma, independentemente da saciedade que possa lhe proporcionar. Um paradoxo, sem dúvida, pois a razão fria não distingue muito senso em uma carência agradável, afinal ela é uma lacuna, uma imperfeição momentânea, implica certo grau de sofrimento. Mas o fato está aí, não posso negá-lo. Ele se faz presente a cada vez que a vontade ressurge, que o pensamento se deixa arrastar por esse apetite tão exótico... Refiro-me, naturalmente, à fome de beleza.

Sim, “fome”. Pois não há outra palavra que melhor defina o que tem guiado meus olhos de algum tempo a esta parte. Eles simplesmente têm vagado por pessoas, objetos e lugares em busca do doce pousio que só a simetria de cores e formas confere — aquela sensação adorável que se tem quando fitamos alguma coisa agradável de ver. A seu modo, é uma ponta de felicidade surpreender a beleza, seja qual for a forma que tome. Aliás, forma talvez seja o que menos importe, pois a beleza é sobretudo uma sensação. Ela não reside no objeto da maneira como o senso comum estabelece, “Isto é belo, aquilo não é”. Ela é o primeiro impacto, o deslumbramento, a força misteriosa que faz com que foquemos o olhar em alguma coisa e não mais queiramos desviá-lo. A beleza é justamente o que nos prende nesse momento. Alguns felizardos a encontram por toda parte; outros, mais retraídos, talvez vaidosos, parecem mais exigentes e dizem vê-la apenas em certas condições. Há mesmo quem diga que vê-la sempre é não vê-la jamais. Os filósofos certamente terão escrito algumas dúzias de tratados sobre essa instigante diferença. De minha humilde parte, sei apenas o que sinto, condicionado sabe-se lá por que arremates do coração. E o que sinto é a vontade de mergulhar nessa comoção deliciosa e contemplar sem pudores qualquer coisa que cative os olhos por mais de dois segundos. Olhar, olhar, e, enquanto olho, tentar ver... Pois a beleza tem lá sua audácia: ao mesmo tempo que prende, ela também desafia. Não basta apenas olhar, ela quer ser decifrada. Fitamos um objeto; sentimos a beleza que nos inspira; mas, ao senti-la, também não nos pegamos tentando entender do que ela é feita? Qual o detalhe especial que nos faz distinguir aquele objeto dos demais? O que é o belo ali? Talvez por isso a beleza se caracterize pela demora no olhar, já que precisamos de tempo para matar sua charada. Olhamos, percorremos as linhas, as texturas e cores, voltamos a percorrê-las em seguida, procuramos uma outra forma de organizar esses elementos e, se tudo falha, voltamos prazerosamente ao início do processo. Se não tivermos cuidado, pode se tornar um vício.

Ainda sob o acicate dessa fome visual, perguntei-me mais de uma vez como saciá-la adequadamente. Há beleza de mil formas, mas relativamente poucas permitem uma contemplação mais demorada. As paisagens certamente são as mais favoráveis, mas o corre-corre cotidiano e as obrigações de sempre não facilitam muito que as procure... A beleza humana, essa é particularmente traiçoeira, ao menos quando buscada ao vivo, por razões óbvias. Resta a arte, a eterna companheira dos que têm fome do belo em todas as suas manifestações, dócil e franca, a acolher generosamente os olhos famintos que a vêm visitar.

domingo, abril 03, 2005

João de Deus

E ele se foi. Depois de uma geração, ele se foi. Cresci vendo-o na TV quase toda semana, em capas de bíblias, calendários, escapulários, jornais. Habituei-me à sua voz, à sua batina branca, seu sotaque típico. Lembro-me bem da última vez em que veio ao Brasil, quando centenas de milhares, milhões o saudaram em um Aterro do Flamengo apinhado, em uma impressionante demonstração da força que a fé católica ainda tem nestes tempos de exorcismos televisivos e espiritualidade de shopping center. Embora não mais lhe partilhasse as convicções, tinha-lhe um carinho, uma simpatia pelo homem de branco que corria o mundo atiçando a devoção de tanta gente, encarnando uma tradição milenar que ajudou a moldar nossa civilização. E ele sabia se valer disso, trazendo às pessoas toda a autoridade que sua posição lhe conferia. Mas fazia isso, em geral, de uma forma gentil, simples. Para minha geração, que tem com ele, em sua maioria, alguns pontos de discordância inegociáveis em certas matérias de conduta, ele era, no entanto, o Papa. Não mais um, mas o Papa. Parecia lá desde sempre.
E agora se foi. Relutou, é verdade, e foi longa sua luta com a morte. E agora que ela o levou, ele conseguiu o que parecia impossível -- a mim, que nasci já com ele no Trono de Pedro: fazer com que, por alguns dias, a TV e a mídia em geral abandonassem um pouco suas pautas apelativas e se enchessem de mensagens de fé e veneração, de recolhimento e edificação. E a impressão que me deu, vendo multidões comovidas mundo afora, foi como se, por um momento, o mundo se unificasse em torno do Vaticano, e aquelas mensagens tão simples, que um dia foram a base do império que a Igreja se tornaria, tivessem sido finalmente ouvidas. Por um instante, ao badalar do sinos seculares da Santa Sé, o mundo inteiro converteu-se... E lembrou, ainda inspirado pela estranha coragem de um sacerdote agonizante, de enfim erguer os olhos para o Céu...
E, nesse instante, eu me uni a ele.