sábado, abril 16, 2005

Apetites

Os apetites são caprichosos. Vêm e vão sem grande lógica, invadem-nos sem pedir licença e, com certa freqüência, vão-se da mesma forma, saciados ou não. Alguns orgulhosos hão de querer dar-lhes uma satisfação póstuma, até exagerada, em compensação à espera que tiveram de suportar enquanto seus apetites lhes estalavam o látego. Que seja. Nem por isso o fenômeno perde em interesse: pois o mesmo indivíduo que num momento se sente bem e auto-suficiente, no outro se aflige por alguma vontade misteriosa que lhe surgiu à cabeça, insistente e sempre a cobrar providências. O objeto é sempre variável, pode ser o mais inocente doce ou a mais arriscada volúpia, mas o processo não muda muito. O desejo é o irmão siamês da razão. Possivelmente o irmão mais forte.

Dentre as incontáveis linhagens dos apetites súbitos, uma me tem sido recorrente de uns tempos para cá. Mais pacífica que a média, é até fonte de prazer — por si mesma, independentemente da saciedade que possa lhe proporcionar. Um paradoxo, sem dúvida, pois a razão fria não distingue muito senso em uma carência agradável, afinal ela é uma lacuna, uma imperfeição momentânea, implica certo grau de sofrimento. Mas o fato está aí, não posso negá-lo. Ele se faz presente a cada vez que a vontade ressurge, que o pensamento se deixa arrastar por esse apetite tão exótico... Refiro-me, naturalmente, à fome de beleza.

Sim, “fome”. Pois não há outra palavra que melhor defina o que tem guiado meus olhos de algum tempo a esta parte. Eles simplesmente têm vagado por pessoas, objetos e lugares em busca do doce pousio que só a simetria de cores e formas confere — aquela sensação adorável que se tem quando fitamos alguma coisa agradável de ver. A seu modo, é uma ponta de felicidade surpreender a beleza, seja qual for a forma que tome. Aliás, forma talvez seja o que menos importe, pois a beleza é sobretudo uma sensação. Ela não reside no objeto da maneira como o senso comum estabelece, “Isto é belo, aquilo não é”. Ela é o primeiro impacto, o deslumbramento, a força misteriosa que faz com que foquemos o olhar em alguma coisa e não mais queiramos desviá-lo. A beleza é justamente o que nos prende nesse momento. Alguns felizardos a encontram por toda parte; outros, mais retraídos, talvez vaidosos, parecem mais exigentes e dizem vê-la apenas em certas condições. Há mesmo quem diga que vê-la sempre é não vê-la jamais. Os filósofos certamente terão escrito algumas dúzias de tratados sobre essa instigante diferença. De minha humilde parte, sei apenas o que sinto, condicionado sabe-se lá por que arremates do coração. E o que sinto é a vontade de mergulhar nessa comoção deliciosa e contemplar sem pudores qualquer coisa que cative os olhos por mais de dois segundos. Olhar, olhar, e, enquanto olho, tentar ver... Pois a beleza tem lá sua audácia: ao mesmo tempo que prende, ela também desafia. Não basta apenas olhar, ela quer ser decifrada. Fitamos um objeto; sentimos a beleza que nos inspira; mas, ao senti-la, também não nos pegamos tentando entender do que ela é feita? Qual o detalhe especial que nos faz distinguir aquele objeto dos demais? O que é o belo ali? Talvez por isso a beleza se caracterize pela demora no olhar, já que precisamos de tempo para matar sua charada. Olhamos, percorremos as linhas, as texturas e cores, voltamos a percorrê-las em seguida, procuramos uma outra forma de organizar esses elementos e, se tudo falha, voltamos prazerosamente ao início do processo. Se não tivermos cuidado, pode se tornar um vício.

Ainda sob o acicate dessa fome visual, perguntei-me mais de uma vez como saciá-la adequadamente. Há beleza de mil formas, mas relativamente poucas permitem uma contemplação mais demorada. As paisagens certamente são as mais favoráveis, mas o corre-corre cotidiano e as obrigações de sempre não facilitam muito que as procure... A beleza humana, essa é particularmente traiçoeira, ao menos quando buscada ao vivo, por razões óbvias. Resta a arte, a eterna companheira dos que têm fome do belo em todas as suas manifestações, dócil e franca, a acolher generosamente os olhos famintos que a vêm visitar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Teu texto lembrou um dos diálogos de Platão, o qual versou sobre a beleza. Um tema eterno, não?