quarta-feira, outubro 26, 2005

Rosa Parks

Determinadas lutas são de tal modo impressionantes e nobres que naturalmente se tornam míticas. E como não há mitos sem heróis, a campanha pelos direitos civis dos negros norte-americanos também teve os seus. Provavelmente o primeiro que nos vem à cabeça é Martin Luther King Jr., mas poucos lembram que para que o jovem pastor batista se tornasse o símbolo que ainda é, houve um outro que o precedeu: Rosa Parks.


Diz a lenda que ela retornava para casa ao fim de um dia de trabalho, uma senhora respeitável em seus quarenta e dois anos, quando o motorista do ônibus em que estava pediu-lhe que cedesse o lugar a um passageiro branco que acabara de embarcar. Esse tipo de deferência cumpulsória era comum nos Estados do sul dos EUA (Rosa vivia na capital do Alabama, no coração do sul), regidos por uma espécie de apartheid legal e informal que procurou compensar de várias formas a emancipação dos escravos após a Guerra Civil. Rosa, porém, teria se recusado, o que lhe rendeu voz de prisão. Em solidariedade à sua coragem, as lideranças negras locais, entre as quais o pastor King, teriam então convocado um boicote ao sistema municipal de ônibus que durou quase um ano, finalmente pondo abaixo as humilhantes regras discriminatórias no sistema de transporte público.


Na verdade, não foi bem assim. Rosa era uma veterana da National Association for the Advancement of the Colored People (NAACP), uma organização pela defesa dos direitos dos negros que há décadas vinha travando uma cruzada judicial contra a segregação racial nos Estados sulistas. Não sentou na parte de trás do ônibus, destinada aos negros, mas na do meio, normalmente ocupada por brancos, onde negros poderiam sentar desde que não houvesse brancos de pé. O motorista que a mandou levantar, portanto, cumpria regras já estabelecidas, ainda que revoltantes. Indícios, portanto, de que o que entrou para a história como um ato individual de coragem que despertou subitamente a indignação cívica de toda uma comunidade, nada mais foi que a ação provocadora de uma militante que sabia muito bem o que estava fazendo. Finalmente, a decisão da Suprema Corte que proibiu a segregação no transporte pública intra-estadual não foi derivada diretamente desse caso, mas de outro, julgado em 1956. Isso não tira, contudo, o mérito de Parks, a costureira que faleceu anteontem aos 92 anos, venerada como um ícone da luta contra a injustiça racial numa sociedade que, até então, se congratulava pela própria prosperidade enquanto ignorava solenemente a opressão de sua minoria racial mais expressiva, privada até mesmo do status de cidadão pleno. Um tema que, em tempos de furacões racialmente seletivos e teses freakonômicas ligando aborto de crianças negras a quedas na criminalidade urbana, a consciência americana ainda não conseguiu tirar de pauta.

Para Rosa, que deixou uma fundação de auxílio a estudantes, a luta terminou. Que o exemplo da brava costureira do Alabama continue inspirando os que ficaram, pois infelizmente ainda há muito a ser feito.

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