sexta-feira, julho 15, 2005

Um retrato tardio

Em 1995, Luciana B. estava em seus 17, 18 anos. Lembro-me dela como de poucas. Não porque se destacasse dentre meus outros colegas de 2º Grau. Pelo contrário, em Luciana, se destaque havia, era justamente o não destacar-se. Se não era exatamente bela, tampouco era feia, situando-se na brumosa média das moças de sua idade. Pele clara, bem cuidada, isenta dos horrores da acne, busto mediano, quadris largos e coxas cheias, denunciando os prováveis duelos com a balança. Os lábios, finos até quase o desaparecimento, encimados pelo nariz reto e bem proporcionado. Ainda assim, não chegava a ser, como disse, bela; antes lembrava uma das pinturas de nobres matronas que enchem nossos museus. Sua juventude não disfarçava certa gravidade, que lhe envelhecia um pouco as maneiras, não se sabe se por educação ou temperamento. A voz não era melodiosa, do tipo que os poetas da idade tanto apreciam louvar. Tinha algo de aveludada, tímida, jamais se elevando além do estritamente necessário. Voz de mulher feita, mais que de adolescente, que se somava à maneira geral de seu porte para sugerir uma maturidade circunspecta. Os cabelos castanho-claros, levemente ondulados, vinham quase sempre presos num coque, de que escapava uma ou fina outra madeixa que lhe dava um toque de improviso.

Como aluna, Luciana era absolutamente comum. Suas notas oscilavam entre seis e oito (a média para aprovação era cinco), com uma ou outra vermelha a dar um pouco de emoção ao seu boletim. Nas aulas, calava-se; se alguma vez ousou dirigir perguntas ao professor, há de ter sido com muita discrição. Comportava-se bem, em geral, e seus pecados estudantis limitavam-se à tagarelice que se espera nas moças de sua idade. Em nosso colégio, as carteiras eram de modelo antigo, acomodando três pessoas na mesma peça. Daí que Luciana contava com a proximidade das mesmas interlocutoras fiéis: Ana Paula à esquerda, Cristiane à direita, e ela própria invariavelmente no meio, a mediar as animadas confabulações diárias. Falavam de tudo, segundo os humores da ocasião: família, dificuldades, planos de futuro, o programa do fim de semana, televisão. Também tudo partilhavam: o material escolar, os esforços nos exercícios, o tempo do recreio, as pequenas intrigas que grassam em toda sala de aula. Era interessante ver como o grau de confidencialidade dos seus assuntos se revelava pela linguagem corporal: o corpo mais projetado para a frente, a voz sussurrante, os rostos próximos, o olhar atento. Pelo menos no que dizia respeito a Luciana, contudo, tais segredos nada tinham de transcendental: não era afeita a grandes especulações filosóficas. Seu mundo era o do dia-a-dia, de sonhos e interesses comuns a todos de sua idade, sem inquietações mais profundas.

Sentava-se bem à minha frente. Nas horas de ócio, mais de uma vez pousei os olhos sobre sua nuca, contemplativo, deixando-me levar pelos fios castanhos que brotavam da pele branca. Era uma visão privilegiada. Até hoje uma vaga memória me traz de volta o aroma de menina asseada que dali se exalava e, vez por outra, se podia sentir de relance. À época, o cronista Artur da Távola elegeu a nuca como a parte mais atraente do corpo de uma mulher. Provavelmente eu teria discordado e visto aí nada mais que pieguice, não fosse já ter descoberto a nuca de Luciana B. De segunda a sexta, das 07h30 às 12h40, ela se punha novamente aos meus olhos, imaculada, nívea e sedosa. Olhar para ela era como encontrar uma estátua grega, cuja perfeição se adivinhava mesmo em seus fragmentos.

Absorta em seu mundo particular, Luciana B. jamais soube que me inspirava essas idéias “neoclássicas”. Nunca foi mais que uma vizinha de fileira, com quem eu mantinha relações cordiais. Uma garota comum, como tantas, sem nada em especial que a destacasse das outras. E, entretanto, dez anos depois da última vez que a vi, ainda posso relembrá-la como se a tivesse visto ontem.

Um comentário:

Anônimo disse...

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