Primeiro a dor de cabeça. Discreta, a princípio, das que somem sozinhas após alguns minutos. Mas não quis partir, antes foi ficando, e ficando... Logo, a estranha sensação de um areal recém-surgido na garganta lhe fez companhia. Depois, o enfraquecimento da disposição geral, como se a energia habitual estivesse se dissipando. A dor de cabeça agora parece um eco reverberando pelo crânio, acelerando o cansaço físico. Aos poucos, o corpo se ressente da rotina diária e pede repouso mais cedo. A mente parece fazer coro com ele, a custo absorvendo qualquer leitura e fazendo esforço redobrado por um pensamento. Os olhos, exaustos, ameaçam lacrimejar diante de maior concentração. Vêm então os espirros, a tosse e o golpe fatal, a coriza.
O corpo não vai bem. Precisa diminuir o ritmo, encontrar novas forças, realentar-se. Mas não o fará agora. O processo costuma ser lento, gradual, e ainda por alguns dias os sintomas serão um incômodo, eventualmente até um impedimento para certas atividades. Contudo, a mente se rebela. Também cansada, lenta, ela volta seu foco para si mesma e a relativa impotência em que se encontra. Ativa que é no dia-a-dia, cheia, se não propriamente de idéias, pelo menos de fantasias, ela percebe o quão dependente é, prisioneira de uma máquina que não vai bem. A doença avança, toma espaços, vai espalhando suas perturbações pelos vários órgãos e percepções, minando os empreendimentos da mente desconsolada. É difícil criar quando a maior parte da atenção está concentrada no nariz, ou na garganta, ou na testa que parece latejar em ritmo cruel. Ainda assim, ela insiste, procura ignorar os corrimentos, o frio, a dor, o areal, em busca de qualquer coisa que tome sua atenção e a estimule. Quase certamente não virá nenhuma idéia original,mas sempre se pode elaborar com o material já guardado. Ao pensar em alguma atividade, imediatamente registra o protesto do corpo. Ele quer ficar inerte, esperando a recuperação e a cura; ela se recusa a jogar fora seu tempo com tais exigências. Há tanto para se fazer e meditar, e perder tempo com descanso! Não, não é possível. Deixar-se abater por tão pouco! Resistir, é preciso resistir...
Na pouca energia que lhe resta, ela própria se examina e recorda tudo quanto já deixou escapar. Um torvelinho de pequenas memórias se ergue em seu interior, e num lapso ela repassa tudo que poderia ter sido e se esqueceu... As idéias fulgurantes abatidas pela inanição, projetos deixados de lado após os iniciais arroubos de entusiasmo, os poemas de dois versos jamais desenvolvidos, a pintura cuja técnica não se aprendeu, as frases silenciadas, as réplicas brilhantes e tardias, as cobiças tão repetidamente insatisfeitas, as declarações jamais entregues, cartas sinceras escritas apenas com a tinta de intenção e o resultado da fantasia. E, no fundo de tudo, as pilhas de leituras não completadas, ou nem iniciadas, que agora se amontoam em caixas de arquivos e prateleiras já abandonadas; e a noção tristonha, refletida nas fileiras de lombadas familiares, da extensão dos conhecimentos agora esquecidos... Quantos desses fantasmas a rondar os subterrâneos de uma mente em luta com seu próprio hospedeiro? Impossível dizer, seu nome é Legião. E, todavia, cada um desses elementos tão variados — possibilidades de vida e ação — teve o mesmo berço, ao mesmo tempo tão raso e obscuro, de meu próprio ser. Difícil dizer como nascem, menos ainda como vêm à tona. Não obstante, de alguma forma continuam lá, ressurgindo vez por outra em memórias fragmentadas e fugazes, deixando rastros tênues quase nunca seguidos. Do mais radioso lance de inspiração não desenvolvida ao pensamento mais vulgar, todos talvez voltem para seu abismo primordial, a cada dia, em incontáveis horas. Todo um tesouro que se define pela perda, pela falta, pela dissipação. Por aquilo que não pôde ser, nem poderia ter sido.
Após se debater em vão com seus próprios fracassos, é impossível à mente continuar. O mal-estar físico já lhe nubla os pensamentos mais elementares. É preciso recolher-se, e tudo esquecer novamente.